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Diante de Deus, um Apocalipse

Na chegada aos 80 anos, Tereza Costa Rêgo volta às telas de grandes dimensões, com painel de doze metros que será exposto pela primeira vez em setembro, no Mepe

TEXTO OLÍVIA MINDÊLO
FOTOS BRENO E GABRIEL LAPROVITERA

01 de Agosto de 2009

Tereza Costa Rêgo

Tereza Costa Rêgo

Fotos Breno e Gabriel Laprovitera

Entrando no Sítio Histórico de Olinda pela Praça do Carmo, basta subir a rua Prudente de Morais, dobrar à esquerda nos Quatro Cantos e passar pelo Mercado da Ribeira para se chegar ao número 344 da Rua de São Bento. Lá está o Museu do Mamulengo – Espaço Tiridá. O endereço, que abriga um acervo de 1.500 bonecos, tem sido, nos últimos meses, o refúgio de uma obra de arte digna de ser descortinada.

Não se trata de nenhum fantoche ou boneco gigante, mas de um painel de 12 m de largura por 1,80 m de altura, fracionado em cinco partes, que acaba de ser concluído por Tereza Costa Rêgo, nos seus 80 anos. Até dar as últimas pinceladas em sua tela monumental, a pintora evitou mostrar o trabalho em processo. Passada essa fase, a Continente pôde conferir em primeira mão o mural que anuncia o Apocalipse de Tereza, e que poderá ser visto pelo público no início de setembro, data prevista para a abertura da exposição retrospectiva em homenagem à artista no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), no Recife.

Foram necessários mais de seis meses de labuta até o painel ganhar feições de “pronto”, ou quase isso. Durante esse tempo, ela mergulhou no silêncio da garagem que alugou nos fundos do Tiridá. O museu, dirigido por ela, pareceu-lhe o espaço ideal para dar à luz a uma tela que não pode ser captada em poucos minutos. “Foi um parto laborioso, esse. É meu último quadro em grande dimensão”, afirma uma extenuada Tereza, que diz ter ganhado marcas no corpo e noites de insônia por causa dessa pintura.

Olhando a obra à distância, vê-se uma cobra gigante que atravessa uma imensidão rubra. Ela tem os olhos em formato triangular, como na Santíssima Trindade. Chegando mais perto, figuras de todos os tipos e proporções emergem do ventre do bicho. Tatus, gatos, mulheres nuas. Cenas de surubas, batalhas, procissões. Uma reunião dos personagens e das cenas mais recorrentes na pintura narrativa de Tereza, com exceção da grande imagem masculina que surge despida no centro do mural, uma novidade no trabalho da artista. Conhecida por pintar mulheres, ela diz que esse corpo simboliza Adão. Um Adão de carne e osso, sem face, sem culpa, que se entrega em igualdade a Eva – aqui tão humana quanto seu parceiro.

Caveiras, arcanjos e cavalos são outros elementos pouco familiares à pintura da artista, que, ao contrário de Adão, se inserem como detalhes para serem apreciados de perto. A pintora diz que todos os seres vivos ou inanimados brotaram de suas mãos de forma intuitiva, de modo que o resultado dialoga com um embate entre o sagrado e o profano, muito recorrente no seu trabalho. “Eu vou pintando. Aí faço uma suruba, essa danação. Só que logo depois eu peço desculpa e pinto uma procissão. É a minha repressão judaico-cristã”, explica a olindense.

Trechos do Apocalipse, um dos livros bíblicos preferidos de Tereza, circundam o mural, reforçando um pano de fundo religioso que trava um jogo de amarra-liberta na mente da artista. É daí que surgem contrastes surpreendentes, nos remetendo à riqueza de detalhes de quadros que marcaram a história da arte, como O jardim das delícias terrenas, do pintor flamengo Hieronymus Bosch (1450-1516). Talvez Tereza pense como ele: o destino provável da humanidade é a danação eterna. Nem céu nem inferno. O purgatório.

No seu novo painel, a pintora pernambucana só poupa os bichos. Nem a igreja escapa. É só olhar direitinho para a segunda prancha do quadro e lá está Dom José, ex-arcebispo de Olinda e Recife, famoso por sua amargura, de salto alto. Enquanto isso, Dom Hélder hasteia a bandeirinha branca lá de cima para ele. São toques de ironia que dão novos sabores à pintura de Tereza. Vale a pena se perder na imensa tela.

Sua proposta estética se mantém nesse mural, dialogando diretamente com a série anterior, Sete luas de sangue (2000). Mas não há nada na obra de Tereza Costa Rêgo que se compare ao esforço e à magnitude dessa pintura, capaz de fazer serpentear nosso olhar pelo seu imenso poder de sedução. 

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