Cobertura

O que significa ser nordestino?

Eis a pergunta da peça 'A invenção do Nordeste', do Grupo Carmin, de Natal (RN), que contribui para tirar a região das caixinhas habituais

TEXTO Olívia Mindêlo

04 de Junho de 2018

O elenco de 'A invenção do Nordeste': Robson, Mateus e Henrique (de óculos escuros)

O elenco de 'A invenção do Nordeste': Robson, Mateus e Henrique (de óculos escuros)

Foto Rogério Alves/Divulgação

Desde que um nordestino ascendeu à Presidência da República do Brasil pela primeira vez, em 2002, os significados de Nordeste foram reposicionados. Nas eleições de 2014, contudo, assistimos à insistência de algumas pessoas em conferir um sentido reducionista à(s) identidade(s) de nossa região – impossível esquecer os tuítes xenófobos da época, por exemplo. Mas, afinal, o que significa ser nordestino? Eis a pergunta do espetáculo A invenção do Nordeste, do Grupo Carmin (RN), encenado pela primeira vez no Recife, na última sexta (1/6), como parte da programação do Trema! Festival.

“Sou um ator norte-riograndense, serei eu capaz de interpretar um nordestino?”, questionou Henrique Fontes na abertura da peça dirigida por Quitéria Kelly. O espetáculo nasceu justamente da inquietação da diretora/atriz ao ver reações preconceituosas contra os nordestinos durante a eleição presidencial que reelegeu Dilma Rousseff há quatro anos. Sua ideia era criar algo que contribuísse, a partir dos palcos, para a desconstrução do velho mito de Nordeste – pobre, seco, flagelado, analfabeto. O ponto de partida, então, foi o livro A invenção do Nordeste e outras artes, de Durval Muniz de Albuquerque Junior, consultor intelectual da montagem cujo texto tomou outro rumo pelas mãos de Pablo Capistrano e do próprio Henrique Fontes, que assinam a dramaturgia.

Em cena, o mote “ser nordestino” tem como resposta uma solução dinâmica e contemporânea, com uso de metalinguagem e inferências da “realidade” por meio de projeções em vídeo. A interpretação de Mateus Cardoso, Robson Medeiros e Henrique segura muito bem a proposta do trabalho; na verdade, são o ponto de sustentação de uma narrativa tragicômica sobre um diretor empenhado em escalar um ator para fazer um personagem nordestino. Os candidatos são Robson e Mateus e Henrique faz justamente esse diretor contratado por uma grande produtora para tomar uma decisão que, por fim, não virá dele, mas da contratante. Em vez de escolher um dos atores do Rio Grande do Norte, em teste/treinamento, a empresa opta por contratar o ator carioca Cauã Reymond. Mesmo assim, envia um recado de consolo: quer chamar os candidatos para um novo teste.

O grande ganho da peça está na habilidade para transformar em riso inteligente um assunto espinhoso – e arriscado do ponto de vista estético e social. É justamente pelo viés da comédia que o grupo consegue sair do lugar-comum e trabalhar a desconstrução do Nordeste como uma unidade regional diminuída pelos clichês. Entre alfinetadas e ironias, não escapa ninguém: do elitismo pernambucano de Gilberto Freyre ao coronelismo de Padim Ciço. Além disso, a peça é didática, ao deixar claro o quanto a divisão de um mapa é uma decisão geopolítica, e do quanto a imagem de uma região é uma construção histórica e cultural quase sempre determinada por quem não vive nela. Os paulistas, por exemplo, estão no alvo. Michel Temer também não passa batido, aparecendo como o “imperador” e sua célebre frase proferida em discurso: “Sou de São Paulo, mas espero ser para vocês o melhor presidente nordestino que o Brasil já teve”.


Não faltam ironias na peça... Foto: Rogério Alves/Divulgação

Mais importante do que desconstruir a ideia de Nordeste perpetuada desde o século XIX, como explicam em cena, é mostrar que não existe um Nordeste nem um Brasil nem um Rio Grande do Norte. Existem vários, e isso é tão óbvio quanto a diferença entre rapadura e mel de engenho. Desse modo, a resposta para a pergunta “o que significa ser nordestino?” deve ser no plural, para dizer o mínimo. Um nordestino pode ser definido pelo seu corpo? Pelo seu sotaque? Pelos seus hábitos culturais? A missão da peça é justamente dizer que não, por mais que se diga e se legitime por aí o contrário. E se a resposta fosse sim, como isso seria possível? Há diferenças dentro de um mesmo estado, quanto mais entre os estados. “São nove estados, sabia?”, lembra um dos atores em uma dada cena.

Indo mais a fundo, a peça do Grupo Carmin – que já veio ao Trema! com Jacy (2016) e é a cara do festival – nos faz pensar sobre como as questões de identidade são quase sempre permeadas por reducionismos. Isso porque a estrutura do nosso pensamento tende a colocar em caixinhas as definições de mundo que costumam escapar às classificações. Com os simples exemplos dados pelo espetáculo, a partir da relativização de corpos e sotaques distintos de atores conterrâneos, qualquer tentativa de apreensão positivista de mundo cai por terra. Não existe essência, nos dizem esses artistas. Quanto aos pontos em comum, que sirvam à partilha não à separação. Se a arte é o espaço da desconstrução por “natureza”, A invenção do Nordeste só tem, portanto, a contribuir – com toda a sagacidade e potência próprias do teatro.

OLÍVIA MINDÊLO é jornalista e editora da Continente Online.

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