Verbete surrado ou evocado sempre quando o contemporâneo se põe em questionamento – como manter sua identidade quando não existem mais fronteiras, quando há uma crise mundial de refugiados ou quando não se sente representado nos espaços existentes? – e palavra recorrente, ei-la aqui na 68a edição da Berlinale. Exibidos um logo após o outro para a imprensa, Dovlatov, coprodução Sérvia/Polônia/Federação Russa com direção de Alexey German Jr., e Transit, do alemão Christian Petzold, apontavam para o enclave entre passado e presente que (im)possibilita a predição de qualquer futuro e o reconhecimento de si próprio como sujeito/agente do processo histórico.
Dovlatov narra a semana do aniversário da Revolução Russa em Leningrado, em 1971, e as desventuras de Sergei Dovlatov (Milan Maric, já favorito ao prêmio de atuação masculina), um escritor que anseia por publicar seus relatos mas é constantemente rechaçado e precisa escrever para jornais de estaleiros ou publicações oficiais numa União Soviética que não acolhe as vozes dissidentes. Interessante reparar que o filme, arquitetado em cima de vários planos-sequências em que as situações cotidianas, com seus excessos e momentos esdrúxulos, surgem quase como num documentário, é sobre um escritor que de fato existiu (Dovlatov morreu em Nova York, já nos anos 1980) mas que não conseguiu ver nenhum livro seu publicado. A sua identidade de escritor, a que ele mais desejava, lhe era negada pelo Estado (mesmo Estado que, em 2018, ainda persegue quem ousa se contrapor ao regime de Putin).
Em Transit, Christian Petzold mais uma vez constrói seu jogo narrativo em cima da busca por uma identidade ou algo – um nome, um passaporte, um visto – capaz de definir um sujeito. E, mais uma vez, a apropriação do passado e de histórias pregressas é vista com um meio de sobrevivência para o protagonista – nesse caso, Georg (Franz Rogowski), que foge de Paris na iminência da ocupação durante a guerra e chega a Marselha com os documentos e os escritos de alguém chamado Weidel, cuja identidade ele toma para si.
Transit' aborda dilemas morais durante a Segunda Guerra Mundial. Foto: Marco Krüger
Em sua quarta participação na Berlinale, o cineasta alemão retoma temáticas que lhe são caras, como as fraturas que se impõem em tempos guerra (assim o fez em Barbara, de 2012, e Phoenix, de 2015), mas adiciona um elemento intrigante: o texto, a conduta, o vestuário dos seus personagens remetem à França de 1945, porém a Marselha é a de 2018, com carros de polícia contemporâneos, navios atuais e uma vizinhança miscigenada.
Então, Transit fala da II Guerra Mundial ou dos portos lotados de refugiados de hoje? Para o diretor, não importa: “Quando se está viajando, em trânsito, as pessoas não têm nada a não ser o que carregam, o que levam consigo. Não me importava muito estabelecer, de imediato, se o filme se passava no passado ou no momento atual, e sim acompanhar aqueles personagens. A narração em off confere quase uma atmosfera de sonho. A ideia era essa – como se comportam as pessoas em estado de fuga quando a vida delas depende de pequenos detalhes”.
Mas a opção proposital de não determinar se Georg, Marie (Paula Beer, atriz luminosa) ou os outros personagens se movem a partir de eventos passados ou de hoje, bem como a escolha do realizador de Dovlatov de não enveredar por uma via demasiado pedagógica, reforça uma dos questões simbólicas e mais fortes a repercutir na Berlinale: o que define uma identidade? O tempo, o lugar, o espaço? Cada filme amplia o horizonte de respostas possíveis.
Algumas desapontam. O coreano Kim Ki-Duk trouxe Human, space, time and human para o Panorama e, em vez de alinhavar com maestria a filosofia oriental e a delicadeza de obras anteriores como Casa vazia (2004) e Primavera, verão, outono, inverno e primavera (2003), errou a mão em sua concepção de uma Arca de Noé pós-moderna em que os instintos mais selvagens subjugam qualquer sentimento de nobreza entre homens e mulheres que são passageiros em um antigo navio de guerra. Talvez os arquétipos escolhidos por ele não consigam dar conta da complexidade que é perseguir uma identidade para chamar de sua.
Mais feliz, e em completa consonância com os tempos de hoje, foi o cineasta argelino-brasileiro Karim Aïnouz. Seu novo documentário, Zentralflughafen THF, é uma coprodução Alemanha/França/Brasil que acompanha um ano na vida de dois imigrantes asiáticos no grande abrigo em que se transformou Tempelhof, um aeroporto localizado no meio de Berlim. O filme é marcado por signos em árabe que determinam a passagem dos meses, a começar por junho. Na entrevista coletiva, Karim revelou que precisou dar tempo ao tempo, como se diz no Nordeste, para que o projeto deslanchasse: “Eu passei seis meses indo lá para filmar e conheci muitas pessoas que moravam ou trabalhavam nos hangares, mas não conseguia sentir e ter a certeza de que conseguiria abrir a câmera para ninguém até junho de 2016.”
Ibrahim, da Síria, e Qtaiba, do Iraque, são estrangeiros acolhidos no aeroporto que outrora significou a expansão do Reich de Adolf Hitler, e buscam, a cada hora do dia, sentir-se “em casa” a milhares de quilômetros das suas famílias e trajetórias. O que os define? São imigrantes, refugiados ou “protegidos” pela Alemanha? Como se sentem dividindo o espaço com tantos outros deslocados de suas existências? Zentralflughafen THF traz a câmera próxima que caracteriza o cinema de Karim Aïnouz e um olhar generoso para dois homens cuja identidade não pode ser mais medida por nada que eles conheçam, mas que ainda assim permanece como alvo contínuo de uma busca da qual não podem, nunca, se apartar.