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“Aqui sou um completo estrangeiro”

Atualmente morando em Berlim, na Alemanha, Karim Aïnouz traz a questão do imigrante, do seu "desenraizamento", como pano de fundo em 'Praia do Futuro'

TEXTO André Dib

01 de Maio de 2014

Karim Aïnouz

Karim Aïnouz

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Claquete" | ed. 161 | mai 2014]

CONTINENTE
O personagem Donato abandonou tudo para viver em outro país. Quais são as suas motivações?
KARIM AÏNOUZ São milhões de razões, mas é importante não deixar claro o motivo da mudança. A falta de resposta pode causar frustração em parte do público, mas é preciso haver um lugar no cinema contemporâneo onde se possa imaginar, em vez de ter uma resposta clara. No caso do Donato, o que me interessa é mostrar um personagem que pertence a um lugar de maneira tão forte, que, para poder existir, ele precisa se desenraizar completamente. Isso para mim é uma questão central, no sentido psicológico, do personagem. Donato pertence muito àquela água, àquele pedaço de praia. Mas, como salva-vidas, fica 80% do tempo olhando para o horizonte. Ele é um cara calado, não articula o que sente. Faz e depois tenta entender, de maneira atrapalhada. Mas, como explicar por que se apaixona por alguém? São razões que não se podem articular.

CONTINENTE Talvez essa seja uma das condições do imigrante.
KARIM AÏNOUZ É a condição de quem se desarvora de um lugar e se enraíza em outro. Achei importante falar do desconforto de estar em algum lugar e de como isso pode se resolver com a travessia, com a viagem. De como essa inquietude tem um preço.

CONTINENTE Considerando a sua história, essa parece ser uma questão bastante pessoal.
KARIM AÏNOUZ Depois que vim para cá, tive uma sensação muito próxima de quando morei na França. Lá, eu era tratado como argelino, por isso fui embora, pois era algo que eu não sabia o que era. Depois, fui fazendo as pazes, isso deixou de ser um problema, para ser parte de mim. Em Berlim, o que me interessa é que eu não tenho lastro. O máximo que pode acontecer é alguém achar que sou turco, e fica por aí. Aqui, sou um completo estrangeiro, estou em outro lugar do mundo. Para quem procura sensação de casa pode parecer estranho, mas tenho a noção de que esta é uma cidade que nunca vai me pertencer. Não sei até quando isso vai me inspirar, mas hoje é algo que me dá muito prazer.

CONTINENTE Quais os prós e contras em trabalhar no sistema de coprodução?
KARIM AÏNOUZ Realizamos algo que nunca foi feito antes, que envolve mecanismos precisos e complexos. Por outro lado, é sempre bom contar com o olhar crítico lançado de ambos os lados. Quero fazer de novo, mas, da próxima vez, seria bom contar com um agente de vendas desde a largada, observando o que pode funcionar em cada país. Em Praia, a Match Factory entrou depois do filme pronto.

CONTINENTE Como Wagner Moura se inseriu no projeto? O fato de ele ter interpretado o Capitão Nascimento influenciou em algo?
KARIM AÏNOUZ Tenho vontade de trabalhar com ele desde Abril despedaçado, no qual fui roteirista. Mas não tinha surgido um papel em que ele fizesse sentido. Quando Praia começou a tomar forma, ele já era um ator famoso. E surgiu a excitação de tirar um personagem de um contexto e colocar em outro, completamente diferente. Claro que não foi por conta da bilheteria de Tropa de elite, seria muito ingênuo da minha parte. Criar esse “ruído” foi bonito e muito produtivo, pois precisamos de uma provocação política para que o discurso avance.

CONTINENTE A dinâmica do filme fica mais intensa na parte final, quando entra Jesuíta Barbosa.
KARIM AÏNOUZ Fiz isso de propósito. Até certo ponto, há uma construção clássica, um personagem que não se define, outro sem curvas dramáticas. No momento em que Jesuíta entra, com um registro de interpretação completamente diferente, ele assume função de vetor dramático. Para você ter uma ideia, coloquei-o para fazer boxe por quatro meses.

CONTINENTE Esse é seu primeiro trabalho com o fotógrafo turco Ali Olay Gözkaya. Como isso influenciou a parte criativa?
KARIM AÏNOUZ Estamos construindo uma colaboração. Ele admira Fassbinder como eu, temos um filme em comum, O medo devora a alma, e, a partir daí, encontramos uma série de coincidências, como a vontade de trabalhar com melodrama. O que foi bonito no trabalho do Ali e que, enquanto eu estava no caminho de certo naturalismo, ele foi buscar um registro próprio para o filme. Foi um diálogo complexo, que começou bem, mas, no processo, passou por atritos, com ele buscando algo mais formal enquanto eu queria a impureza. Ali foi formado na Escola de Berlim, em que a precisão é tanta, que filmar um ator e uma cadeira parece a mesma coisa. É um projeto de dramaturgia que eu não dou conta, me interesso por outras coisas. Não estou acostumado com o rigor, costumo buscar o erro, o acidente cinematográfico. Brigamos muito, sempre com o objetivo de chegar a um lugar que faça sentido para o filme.

CONTINENTE O que você considera um acidente cinematográfico?
KARIM AÏNOUZ É quando não tem aposta clara de cena, ou um plano definido. No Praia, tem uma cena toda vermelha, com os personagens dançando. Ali quis fazer em tripé, e eu disse a ele: “Sem chance”. Levaria mais de um mês para desenhar aquela cena e entrar no modo de produção Kubrick, o que não era o nosso caso. A busca pelo acidente foi colocar os personagens naquela situação e ver como eles vivem a ação. E fazer isso foi complicado, pois Ali aposta em cenas muito precisas e eu acho que, às vezes, é necessário um certo frescor no ato de filmar, que é também o de documentar.

CONTINENTE Por outro lado, você trabalha com preparadora de elenco, a Fátima Toledo, o que demonstra algum desejo de controle.
KARIM AÏNOUZ Pelo contrário, ela fez uma preparação para o descontrole, de deixar o ator em carne viva, cansá-lo, para ficar à flor da pele e não pensar muito. Isso deixa o ator zerado, desconstruído. E quando se trabalha com uma mise-en-scène predefinida e colocamos um ator, ele até pode sair de quadro, mas não há o que ser descoberto visualmente, em termos de espaço. Por isso nossa decupagem foi planejada, mas a movimentação dos atores, não.

ANDRÉ DIB, jornalista e crítico de cinema. 

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