“O brasileiro médio ignora a América Hispânica”, observa o professor de espanhol, poeta e tradutor Wellington de Mello, um dos organizadores e tradutores da antologia Miguel Hernández – Ventos do povo, editado pelo Instituto Cervantes/Recife, em 2010.
O livro, uma pequena celebração de um dos maiores poetas de língua espanhola, foi praticamente a única lembrança do escritor, em português, no ano do seu centenário. “Entre os iniciados em literatura espanhola, você vai ter gente que leu até Jorge Luís Borges, mas dificilmente chegará a Juan Rulfo”, lembra.
A opinião de Mello é compartilhada por Martin Palácio Gamboa, uruguaio recém-chegado ao Recife, e professor do Cervantes. Há 12 anos trabalhando com literatura, dando aulas, traduzindo, ele deixou em Buenos Aires uma biblioteca de 3 mil livros, mas observa que há também um processo inverso.
“A América Latina sempre se interessou pelo Brasil. Falo da literatura, do cinema, da música. Num passado recente, houve uma grande articulação cultural das esquerdas. O Tropicalismo e Ferreira Gullar chegaram em minha casa”, observa.
Exílios, durante as ditaduras no Cone Sul da América Latina, fizeram com que escritores se deparassem com os vizinhos. Ferreira Gullar escreveu o clássico Poema sujo num período de desespero, quando achava que iria morrer, em Buenos Aires.
Palácio observa, porém, que o Brasil “começa a perceber” que faz parte da América Latina. Nos últimos cinco, 10 anos, avalia, há mais aproximações, traduções, encontros. Ele cita os programas das universidades, que vêm passando por grandes mudanças.
Em muitos casos, o interesse pessoal, a curiosidade, a vontade de ampliar horizontes acabam se tornando o impulso para os encontros. “Conheci Murilo Mendes já velho”, exagera Palácio, que tem 33 anos. “Mas, em literatura, nada se perde, pode chegar atrasado também. Por iniciativa própria, conheci Arnaldo Antunes, Roberto Piva, Lau Siqueira.”
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Em 1973, Eric Nepomuceno foi morar em Buenos Aires, fez inúmeros amigos, e começou a traduzir, para que seus amigos daqui lessem o que era produzido em língua espanhola. “Assim comecei a traduzir: por afeto”, diz. Ao longo de 35 anos, são mais de 60 livros traduzidos.
Ele avalia que lemos muito mais os hispano-americanos do que eles nos leem. Mas observa que recebemos muitos autores que “não passam de fenômenos de mídia”, deixando muitos outros de fora. Depois, pergunta: “Quantos de nós são conhecidos por eles?”
Sobre o mito de que o Brasil dá as costas para a América Latina, ele vai ao ponto. “Acho que o Brasil tem demorado demais a se assumir como um país latino-americano”. Mas observa que o panorama começa a mudar. “Espero que seja uma mudança definitiva.”
O escritor, tradutor e editor Mário Hélio, à frente da Editora Massangana, nos últimos oito anos, conseguiu incluir no catálogo vários autores de língua espanhola, especialmente na área da Antropologia. Dotado de uma memória prodigiosa, é capaz de citar dezenas de autores do mundo hispano-americano, que leu no original, e que não foram traduzidos. Ele também avalia que o Brasil está “mudando o olhar”, nos últimos anos. Aos poucos, o país vai se abrindo para “outras literaturas”, diz.
Curador do Festival Literário de Porto de Galinhas (Fliporto), Hélio recorda que a presença de escritores de língua espanhola já se incorporou de forma natural à programação. Em 2009, o uruguaio Eduardo Galeano fez a conferência de encerramento da Fliporto. Em 2010, foi a vez do argentino Ricardo Píglia – que tem quase todos os seus livros traduzidos para o português. Hélio acredita que “Pernambuco é que está abrindo mais seu horizonte.”
Ele concorda com o grande interesse do mundo de língua hispânica em torno da literatura brasileira. Cita uma viagem do poeta Affonso Romano de Sant’anna à Colômbia. “O tempo inteiro, as pessoas perguntavam a Affonso se ele conhecia um poeta brasileiro, chamado Geraldino Brasil.” Numa de suas muitas viagens à Espanha, Hélio encontrou, em uma grande livraria de Madri, uma “antologia” de Geraldino. Em 2010, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) publicou A intocada beleza do fogo, com os poemas do alagoano Geraldo Lopes Ferreira, o Geraldino Brasil, morto em 1996.
Um exemplo desse interesse de fora é o livro Un clásico fuera de casa – Nuevas miradas sobre Machado de Assis, que será lançado em março pela Editora Massangana. A obra é fruto de uma jornada sobre o escritor carioca, no Centro de Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca, sob a coordenação de Ascensión Rivas Hernández.
Nepomuceno diz que “continuam faltando autores fundamentais” em língua portuguesa, como os argentinos Hector Tizón, Juan Forn, o venezuelano Luis Britto García, o cubano Eduardo Heras León, o nicaraguense Sérgio Ramirez e o mexicano Juan Villoro.
“Repare que não mencionei ícones, como o nicaraguense Juan José Arreola, o peruano Júlio Ramón Ribeyro ou o guatemalteco Augusto Monterroso.” Os dois últimos foram traduzidos, mas “meio que em brancas nuvens”, afirma o tradutor.
A lista é enorme. O autor deste texto levantou, junto com seus entrevistados, alguns grandes autores de língua espanhola, cujas obras ainda não chegaram em língua portuguesa: Antônio Muñoz Molina, José Maria Merino, José Pacheco, Benjamin Valdívia, David Huerta, Eriberto Cypes (México), Cesar Vallejo (Peru), Julio Inverso (Uruguai), Vicente Huidobro, Nicanor Parra (Chile), Roberto Juarroz, Antonio Porchia (Argentina). Mas, como diz Nepomuceno, a lista é “longa, longuíssima”.
SAMARONE LIMA, jornalista, escritor, blogueiro e autor do livro Viagem ao crepúsculo.