FOTOS CHICO LUDERMIR
01 de Outubro de 2011
O jovem clarinetista Higino diz ter música no sangue
Foto Chico Ludermir
[conteúdo vinculado à reportagem de "Música" | ed. 130 | outubro 2011]
Não tão evocado quanto outros ícones da religiosidade nordestina, como Padre Cícero e Frei Damião, Padre Ibiapina (1806-1883) mereceria ser lembrado, no mínimo, por praticar assistencialismo social em um século no qual sequer existia esse conceito. Cearense de Sobral e morto em Solânea (PB), José Antônio de Maria Ibiapina perdeu o pai fuzilado, por este ter combatido ao lado dos separatistas da Confederação do Equador (1824), e veio a se formar na Faculdade de Direito do Recife, após desistir do Seminário de Olinda.
Segundo os panegíricos mais difundidos sobre o clérigo, ele trilhou carreira de juiz, delegado e deputado federal, quando, viúvo, voltou a se enclausurar em Olinda e pôde enfim se ordenar sacerdote, aos 46 anos. Daí, iniciou-se sua obra pelo interior do Nordeste, do Piauí a Pernambuco: Padre Ibiapina construía cacimbas, açudes, casas de caridade, igrejas, cemitérios, tudo o que fosse necessário para firmar e dar suporte a vilarejo isolados e castigados pelos problemas climáticos.
Entre os mais de 20 vilarejos que ajudou a estabelecer, estava Gravatá de Jaburu, em que mandou erguer todas as citadas benfeitorias e onde também sepultou uma de suas irmãs. No povoado, em 1919, surgiu a Sociedade Musical 24 de junho, cujo tocador de tuba foi, durante 56 anos, o senhor Braziliano Pereira de Melo. Seu Braziliano, em 1960, testemunhou as comemorações do centenário de sua terra e a mudança do nome dela para Gravatá do Ibiapina. Naquela data, ele posou para uma foto que encontramos com seus descendentes.
Taquaritinga do Norte, município que incorpora o distrito de Gravatá do Ibiapina, vivenciou também uma história de missionarismo religioso na região, em torno de 1790, com a chegada da congregação de São Filipe Néri e a conseguinte construção da Igreja de Santo Amaro. A igreja deu mais dinamismo às terras que um dia abrigaram uma aldeia indígena – por isso o nome da cidade vem do tupi-guarani (“grande buraco de pedra branca”) – e depois seriam distribuídas pela fidalga D. Maria Ferraz de Brito, que as havia recebido da Coroa Portuguesa. Com os anos, a fama do município foi associada às abundantes dálias da Serra da Taquaritinga.
Para alguns dos integrantes esta foi a primeira ida à capital
Voltando a Seu Braziliano, falecido há uns tantos anos, descobrimos que ele tinha mais ciúme de sua tuba do que das filhas, como relata uma delas. D. Berenice nos recebeu em sua casa, na avenida principal de Gravatá do Ibiapina, por havermos encontrado seu neto, por acaso, na sede da sociedade musical. João Higino de Sousa Neto, 16 anos, estava observando com outros jovens nossa conversa com Ilza Maria, até ter sido por esta dedurado em nosso bate-papo prévio.
Primeira secretária e esposa do presidente da Sociedade Musical Padre Ibiapina, Adailton Costa, Ilza integrou-se à banda este ano tocando sax alto. “Sempre tive amor pela banda. Não foi uma coisa que eu cheguei aqui de repente, não”, conta ela, que passou 20 anos fora de Gravatá do Ibiapina, mas que já flertava com a movimentação musical da SMPI antes disso. Ilza, assim como boa parte da população de Taquaritinga do Norte, continua a trabalhar com confecção e atende encomendas da cidade vizinha de Santa Cruz do Capibaribe.
À medida que o diálogo com a saxofonista, sem querer, começou a ficar incômodo, pela extrema timidez dela ante nossas sucessivas perguntas, procuramos outro personagem. Saí da sede da SMPI e expliquei a Ilza nossa demanda de informações, daí ela ter apontado para Higino, clarinetista da sociedade há três anos e – para minha sorte e do fotógrafo Chico Ludermir – um rapaz bem loquaz quando instigado. Ao dar suas credenciais logo de cara, “Tenho herança de músico no sangue”, descobri que havíamos achado a pessoa certa...
Com 75 anos, D. Dora viu o mar pela primeira vez
Certa, para tentarmos resgatar de forma mais viva um pouco que fosse da memória afetiva da SMPI e de sua ligação com a comunidade, tal qual atestou o espontâneo Higino, aluno da oitava série: “Na banda é onde estou até hoje e onde quero morrer”. Ele explica que, inicialmente, tocava flauta, mas depois veio a chance de aprender clarineta. Com nosso convite para que posasse dedilhando o instrumento, fomos à casa de sua avó, D. Berenice – por sua vez, filha de Seu Braziliano – e nos contentamos com a recepção.
Enquanto Higino dava uma palhinha, D. Berenice mostrava fotos do pai e da banda, incluindo uma da época do centenário do distrito, com a data e o nome de todos os integrantes da SMPI anotados no verso. A conversa inteira ocorreu sob os olhares do cãozinho Lupe, (segundo Higino, escreve-se Lupphyi) antes de pararmos para comer doce de mamão e uma boa porção de bolinhos de goma oferecidos pela dona da casa.
MÚSICA E PLANTAS
Estava prevista uma visita nossa ao Sítio Cumbe, próximo à sede do município de Taquaritinga do Norte, contudo fomos avisados de que havia chovido na noite anterior e, assim, a estrada não favorecia a passagem de nosso veículo da reportagem. Nessa localidade, um grupo de tradicionais plantas medicinais acabou inspirando um interessante pot-pourri de canções da MPB em que hortelã, muçambê, mastruz, acônito – e a dália – ganham destaque.
Dona de uma propriedade no Sítio Cumbe, a artista plástica Sônia Lessa imaginou uma forma de promover a interação entre os habitantes da região e os de Gravatá do Ibiapina. O projeto, intitulado A arte na farmácia: alguns cultivos entre a música e botânica, foi agraciado em um edital de interações estéticas da Funarte e resultou em quatro apresentações nos meses de fevereiro e março, alternadas entre Gravatá do Ibiapina e Sítio Cumbe.
A apresentação foi na Faculdade Pernambucana de Saúde
Sônia Lessa confiou à SMPI a criação e execução de arranjos (para banda e cantor popular solista) de canções que mencionassem as plantas cultivadas, a exemplo de Penas do tiê, de Hekel Tavares, que cita o muçambê; Drops de hortelã, de Oswaldo Montenegro; e Mastruço e catuaba, de Aldir Blanc. O acônito ficou por conta de Severino Xavier, músico da banda, que compôs Chá de ervas medicinais, mas descobrimos que Higino não ficou para trás e escreveu um jingle em ritmo de baião em que fala do muçambê e da erva cidreira, chamado As plantas.
A arte na farmácia, que rendeu um livro, não se limitou a estruturar uma apresentação musical intercalada por explanações sobre as plantas. Nos quatro encontros, houve leitura de poemas, exposição de fotografias, aulas de culinária, distribuição de mudas e preparo de exsicatas (amostras de folhas secas prensadas em papel cartolina) para posterior identificação no Instituto Agronômico de Pernambuco – IPA. Meses depois, a Faculdade Pernambucana de Saúde tomou conhecimento da iniciativa e convidou os integrantes do projeto a irem ao Recife, viagem essa que acompanhamos até a chegada à capital.
TRAJETO
Às cinco e meia da manhã do último dia 25 de agosto, sob um frio de 15°C, todos estávamos em frente à Igreja de Santo Amaro, prontos para a ida – não sem uma descontraída foto oficial, feita por Chico. Uma Toyota havia trazido o pessoal do Sítio Cumbe, enquanto o ônibus passara primeiro por Gravatá do Ibiapina e, detalhe, pudera cumprir sem preocupação o horário de chegada graças à pavimentação recente da estrada que liga o distrito à BR 104, único acesso à sede do município.
Paramos às sete e dez para um café da manhã regional em Gravatá (na Serra das Russas) e nos sentamos à mesma mesa que Higino, consternado por Chico recusar a carne de sol (nosso pequeno amigo nunca vira um vegetariano em pessoa), e três moradores do Sítio Cumbe. Seguimos viagem às oito, tendo em mente que a primeira parada seria na orla de Boa Viagem, já que a maior parte dos membros da delegação não costuma ir à capital e esta seria uma excelente oportunidade.
Mesmo com uma chuva inesperada e indesejada sobre o Recife, manteve-se o percurso pela praia. Descemos a 100 metros do Edifício Acaiaca, encrencamos com o céu fechado e decidimos passear pela areia de todo jeito, para ver o mar revolto. D. Dora e D. Maria Porto, organizadoras da horta do Sítio Cumbe, não se importavam com o tempo ruim. D. Dora, em particular, perita no manuseio das flores de muçambê, estava vendo o mar pela primeira vez, no alto de seus 75 anos, e não cabia em si: “Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Se eu morresse hoje, morria feliz” – era também a primeira vez que saía de Taquaritinga do Norte, e um de seus netos tratou de levá-la mais para perto das águas, que ela nem sabia que eram tão salgadas.
Cumprida a etapa inicial, a SMPI, o pessoal do Sítio Cumbe e os cantores Saulo e Sara apresentaram-se na FPS, sob as saudações do presidente Adailton Costa e a participação especial de Colorau Pires (o trompetista ministrara oficinas para a banda no início do ano através do projeto Bandas de PE, vide matéria anterior). De lá, o grupo almoçou e seguiu para uma escola pública em Boa Viagem, terminando o giro pelo Sítio Histórico de Olinda – só que era preciso voltar a Taquaritinga do Norte no mesmo dia, pois a SMPI e o plantio não podiam parar.
Em Gravatá do Ibiapina, a responsabilidade pesa mais no momento: a sociedade musical transformou-se em ponto de cultura e então passou a ministrar aulas de dança, teatro, música e canto, além de manter os ensaios gerais da banda nas segundas, sextas e domingos à noite, a cargo do maestro Aldemar Carneiro Filho. Ficamos na torcida para que outras histórias como a de Braziliano, D. Berenice e Higino se construam e seus conterrâneos permaneçam na vila fundada pelo Padre Ibiapina (mas que possam ver o mar ao menos uma vez, como D. Dora).
CARLOS EDUARDO AMARAL, mestre em Comunicação Social pela UFPE e crítico de música clássica.
CHICO LUDERMIR, fotógrafo, estagiário da Continente.