Ensaio visual

A fauna da terra dos papagaios

Livro ‘Terra papagalorum’ compila desenhos de animais da artista italiana Gerda Brentani para os quais o zoólogo e compositor Paulo Vanzolini escreveu, posteriormente, textos bem-humorados

TEXTO MARIANA OLIVEIRA
ILUSTAÇÕES GERDA BRENTANI

05 de Maio de 2020

O sinimbu, espécie de iguana, é uma das ilustrações presentes no livro (1961, nanquim,  50 x 35 cm)

O sinimbu, espécie de iguana, é uma das ilustrações presentes no livro (1961, nanquim, 50 x 35 cm)

Ilustração GERDA BRENTANI/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 233 | maio de 2020]

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“Um bicho não existe em si, existe nos olhos que o veem. Chega um zoólogo, vê um lagarto e diz LS 12-19 (14.7, 1.59) 43; CT 2-11 (5.0, 2.20) 40 (similar to fig. 2B); e vai por aí afora. Outro diz do mesmo bicho que Lacerta cauda tereti mediocri, digitis subtus imbricatis, corpore verrucoso. Pedibus exhalat venenum in esculentis (na urina?) Hasselqv. Mansueta; homo asylum. Eu prefiro a Gerda. Os bichos que os olhos dela veem e as mãos exatas recriam têm uma doce humanidade animal, um ar de participação irônica, uma cumplicidade implícita”, escreveu o zoólogo, médico, cientista e compositor Paulo Vanzolini (1924 -2013) referindo-se aos diversos desenhos de bichos realizados pela artista italiana, radicada no Brasil, Gerda Brentani (1906 -1999). Em seus traços em nanquim, ela nos revela animais com tantas personalidades que estabelecem conosco um diálogo, uma troca com seus olhares e expressões familiares.

Esses desenhos que, por si só, já falam tanto, ganham ainda mais vida com as descrições – pequenos verbetes – escritas por Vanzolini e que fogem completamente ao rigor das classificações científicas, ainda que nos tragam informações e curiosidades desconhecidas. “O sinimbu ou camaleão mora nas árvores de beira de rio, e mergulha com habilidade quando precisa. É um dos poucos lagartos vegetarianos. Ele e seus primos próximos são indispensáveis à indústria cinematográfica. Com alguns efeitos de papelão e fotografados de perto, são os astros dos filmes pré-históricos. São verdes em vida, muito bonitos quando de pele recentemente trocada.”

Jacaré-coroa, s/d, nanquim

Este é o verbete de Vanzolini para o desenho de uma espécie de lagarto (página ao lado) feito por Gerda dentro da série Terra papagalorum que, agora, compõe o livro homônimo publicado pela Imprensa Oficial de São Paulo. Os desenhos de Gerda são acompanhados por 80 verbetes inéditos de Vanzolini sobre espécies da fauna brasileira. Os trabalhos da artista já haviam sido vistos em exposições, mas os textos leves e bem-humorados do zoólogo, feitos justamente para os desenhos da amiga, nunca vieram a público.

Gerda produziu a série em 1961, mas não se sabe ao certo quando Vanzolini iniciou a produção dos textos. Entretanto, 20 anos depois, no início da década de 1980, ele expressou o desejo de publicar o livro, unindo seus textos aos desenhos. Foi naquele período que o zoólogo apresentou Gerda à organizadora do livro, Cecília Scharlach, tornando possível o início da articulação que, finalmente agora, permitiu a publicação do material.


Iças, s/d, nanquim

No meio cultural, Paulo Vanzolini é conhecido, principalmente, pela composição de sambas que se tornaram clássicos da música brasileira, como Praça Clóvis, Volta por cima e Ronda. Mas, acima de tudo, considerava-se um cientista. Formou-se em Medicina, na Universidade de São Paulo, mas nunca a exerceu. Fez doutorado em Zoologia em Harvard, foi um dos fundadores da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e dirigiu, por anos, o Museu de Zoologia da USP.

Circulando com muita desenvoltura pelos ambientes científicos e culturais, conviveu com vários intelectuais e artistas. Alguns deles, levou em suas expedições pelo Brasil. Em uma delas, teve como companhia o pernambucano José Cláudio, que pintou uma série de telas durante um trajeto no Rio Madeira, que hoje faz parte do acervo do Palácio dos Bandeirantes e cujo registro também virou livro (leia texto de José Cláudio a seguir). O seu caminho cruzou com o de Gerda quando a artista italiana, que havia chegado ao Brasil em 1939 e trabalhado junto com artistas como Mario Zanini, Alfredo Volpi, Rebolo e Giuliana Giorgi, visitou o Museu de Zoologia da USP. Assim como ele, ela nutria um forte interesse por bichos, o que logo fez nascer uma amizade entre eles.

Para o zoólogo, a italiana deveria ser considerada “uma espécie típica do Brasil”, decorrente da mistura de faunas. “Em alguns casos, como o das antas, o grupo se extinguiu no seu lugar de origem (EUA) e apareceu hoje como tipicamente sul-americano, puramente nosso. Assim como a Gerda”, escreveu em texto dedicado à amiga, cujo trabalho admirava profundamente.


Pirarara (bagre-sapo), 1961, nanquim, 50 x 35 cm

A sensibilidade trazida por Gerda em seus traços e os textos cheios de bom-humor de Vanzolini parecem ter nascido uns para os outros e fazem da publicação um misto de livro de arte com elementos da ciência, atraindo a atenção tanto de uma criança quanto de um pesquisador. Nele, os animais são classificados entre pássaros, pernaltas, insetos, peixes, anfíbios, répteis e quadrúpedes. 

Admirando os desenhos e lendo os verbetes, ficamos sabendo que as araras se aninham juntas e têm a carne dura. “As araras são mais ou menos cinco. Uma é raríssima. Aninham juntas e são muito alegres ao entardecer, quando voltam para casa. São muito magras, mas a plumagem dá vulto. A carne é dura, mas deliciosa. Cinquenta minutos da panela de pressão.” (Ainda bem que hoje não podemos nos imaginar cozinhando araras…)

Arara, 1961, nanquim, 50 x 35 cm

Arara, 1961, nanquim, 50 x 35 cm

Também sabemos que a temida caranguejeira não tem um gênio tão forte assim e consegue ser vencida por um maribondo. “A caranguejeira é feia mas não é brava. Pode ser desenhada com máscara de guerreiro oriental. Seu nome de grupo é migalomorfas. O marimbondo-caçador não se impressiona. Paralisa o sistema nervoso sem matá-la, injeta e desova na carne viva e assim garante o futuro da prole.” Ou que o jacaré coroa é diferente dos outros: “Sabe-se dele que não tem, em frente ao olho, a travessa óssea que os outros possuem”, e que a piranha é misteriosa e de várias espécies (“Às vezes ataca mesmo, e reduz um corpo a esqueleto em minutos”). 

Os papagaios, que batizam a publicação Terra papagalorum (Terra dos papagaios), não levam falta. “Dentro do verde básico, do bico indisfarçável e dos pés com dois dedos para trás e dois para a frente, uma grande variedade. Há um papagaio cor de ouro e outro cor de vinho. Há um anacã de coleira roxa tremida que se eriça em auréola. A inteligência não é das maiores, mas a disposição para o debate amplo ruidoso é exemplar. Terra papagalorum”, descreve.

E a onça (jaguatirica), outro bicho tão presente no imaginário brasileiro, é feliz de viver nesta terra? “Esta onça está visivelmente amolada. Talvez não tenha gostado de ser empacotada em uma terra papagalorum. Mas, é isso aí”. Fica o convite para conhecer desse modo idiossincrático o pica-pau e o sabiá; a garça e a ema; o bicho-pau e o escorpião; o baiacu e o surubim; o sapo-cururu e a sucuruji; o tatu e a capivara, pela visão de Gerda e Vanzolini.

Caranguejeira, 1961, nanquim, 50 x 35 cm

Caranguejeira, 1961, nanquim, 50 x 35 cm

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Extra:
Confira o comentário do atista plástico José Cláudio sobre a obra: Paulo Vanzolini e os bichos.

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MARIANA OLIVEIRA, jornalista, editora assistente da revista Continente.

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