Portfólio

Hirosuke Kitamura

Entre corpos fantasmagóricos

TEXTO OLÍVIA MINDÊLO*

01 de Fevereiro de 2019

Imagem do ensaio 'Casa de encontro' (2002-2017)

Imagem do ensaio 'Casa de encontro' (2002-2017)

FOTO Hirosuke Kitamura/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 218 | fevereiro de 2019]

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Em um endereço oculto de Salvador, vive uma mulher. Ela é uma das pessoas que trabalham no casarão abandonado com vista para a Baía de Todos-os-Santos. O local de escassas luzes é agora frequentado por esses poucos que um dia foram muitos. Tinha os filipinos, recém-desembarcados no Porto da Bahia, para onde ela e suas colegas desciam, a fim de atender aos desejos imediatos de seus clientes. Foi num navio, conta, onde escutou Hotel California pela primeira vez. Dizem que ela é mentirosa, esse papo de filipino nunca existiu. Não importa. Não faltam histórias quando se trata dos bregas, como são popularmente conhecidos os prostíbulos cada vez mais decadentes nas ladeiras da Montanha e da Conceição.

Estamos na virada do século, anos 2000, e as meninas do brega passam Kolene repetidamente no cabelo; outras lavam-se detrás da cortina vermelha amarrada no meio. Quando menos esperam, chega um gringo novo na área. Não quer exatamente fazer sexo, mas fotografá-las. Elas estranham, querem dinheiro. Ele oferece algum trocado e promete presenteá-las com seus retratos. Elas topam e, a cada fotografia trazida de uma, ele ganha a simpatia de outra. Assim nasceu o ensaio Casa de encontro, um desses trabalhos impactantes na história recente da fotografia brasileira.


Imagem do ensaio Casa de encontro (2002-2017)

Mesmo sendo o testemunho de um homem estrangeiro sobre corpos de negras brasileiras, ou seja, passível dos velhos estereótipos de dominação, o olhar do japonês Hirosuke Kitamura ousa atravessar as fronteiras sociológicas e políticas para ganhar o território do mistério, o campo do sutil; das coisas que acontecem quando simplesmente as ignoramos. O olhar de Oske, como é conhecido o “China” radicado em Salvador há 26 anos, não deixa de ser a perspectiva de um gringo e também incomoda por isso. Em contraponto, o artista oferece beleza e sensibilidade, conseguindo, como resultado dessas imagens (diferentes das presenteadas às moças), alçar seu voo mais profundo. Por fim, interessa a ele menos o desejo que esses corpos ensejam – o seu uso – do que o melancólico assombro que suscitam.

Casa de encontro é um trabalho de imersão realizado durante mais de 15 anos – de 2000 a 2017, entre idas e vindas. Nos bregas, Hirosuke construiu e firmou, com disciplina e persistência, uma linguagem capaz de consagrá-lo, tornando-se base para os desdobramentos de sua obra em outras séries apresentadas nestas páginas. Entender esse ensaio é imprescindível para conhecê-lo. As texturas, as paredes descascadas, a penumbra amarelada, os movimentos borrados da câmera em baixa velocidade, as sobreposições, a luz vermelha, o uso da película, a pós-produção digital das imagens, tudo isso corrobora um interesse pela criação artística e não documental em stricto senso. Nesses termos, investe na carga subjetiva como se fosse um diretor de fotografia em um set de filmagem. Dirige as cenas sabendo quase sempre o que quer levar para dentro de sua Nikon FM2 (analógica) ou Hasselblad, câmera de médio formato.


O gesto é para abrir os olhos do artista. Série Doce obsessão (2016), em parceria com Kalor Pacheco

O artista cria situações e a noite é sua matéria-prima. Ao insone Oske, importa a nostalgia, a decadência fantasmagórica, o tempo em suspensão. O que são aqueles corpos senão vultos, almas à deriva? Em imagens desta e de outras séries, como Hidra (2012) e Doce obsessão (2016), a figura é mais entidade que identidade; a construção é de um corpo etéreo e, por isso mesmo, situado no campo do invisível. Não está ele a falar de realidade?

***

O trabalho de Hirosuke Kitamura, sobretudo Casa de encontro, findou por colocá-lo entre os grandes nomes das artes visuais do país, especialmente do campo fotográfico. Em 2002, sua produção foi incluída na 11ª edição da prestigiada Coleção Pirelli/Masp de Fotografia, ao lado de 17 nomes como Adenor Gondim, Ricardo Teles, Alex Flemming e apenas uma mulher, Neide Jallageas. Oske já expôs em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Nova York, Tóquio, Brasília, Belém e Havana, em Cuba.

É bastante comum, no meio das artes visuais, comparar a obra de Oske à de Miguel Rio Branco – relação evidente em uma primeira mirada, mas irrelevante em uma segunda. Não é por acaso. Quando começou a deixar de fotografar samba, céu azul, alegria de cartão-postal em meados dos anos 1990, ele foi justamente apresentado pelo amigo Márcio Lima (fotógrafo pernambucano radicado em Salvador) aos livros de Miguel Rio Branco, outro estrangeiro que vive no Brasil. O trabalho do artista espanhol chamou a atenção de Oske, incluindo o de pintura. Miguel havia fotografado as prostitutas do Pelourinho, em Salvador, o submundo de Havana, era cineasta experimental e tinha sido correspondente da Agência Magnum em Paris. “Miguel Rio Branco e Mário Cravo Neto me deram o reverso do Brasil, dessa sociedade. Comparo ao jazz, ao tango, a um lado mais melancólico do país”, disse Hirosuke Kitamura em entrevista à Continente, durante o Fotofestival Solar, em Fortaleza, onde expôe ensaios inéditos na coletiva Terra em transe, curada por Diógenes Moura.

Oske já chegou a trabalhar com Miguel Rio Branco nas séries Hidra (2012) e Samsara (2014). A primeira é uma espécie de ramificação de Casa de encontro, embora foque mais naquilo que é “difícil de definir, difícil de resolver”, como contou, referindo-se ao “monstro da mitologia grega”. A segunda é um ensaio produzido a partir de uma de suas viagens à Índia, onde procurou o antirretrato do país, por meio do seu turno favorito, a noite. Uma leitura contemporânea e subjetiva dos indianos que, neste caso, faz lembrar as fotografias dos penitentes de Guy Veloso (PA). Ainda em Samsara, vemos sua aposta no suporte díptico, também presente na obra de Rio Branco. Estão lá o galo, as penas, o fogo e os vultos, em um caminho estético semelhante a Breu, no qual o artista investe numa linguagem mais abstrata, recorrendo a desde formas indefinidas até figuras como um galo vivo-morto clicado na Feira de São Joaquim, em Salvador. Aqui, mais uma vez, ele carrega na “tinta” vermelha. Em Breu, particularmente, Oske atendeu a pedidos da Galeria Biographica, que expôs seu trabalho na Doc Galeria, em São Paulo.


Dípitco da Série Samsara, realizada na Índia (2014)

O artista diz não se sentir plenamente à vontade em integrar o métier da fotografia, embora se considere parte dele. Hoje em dia, prefere seus trabalhos em videoarte, realizados a partir de séries fotográficas como Doce obsessão, desenvolvida numa residência em Belo Horizonte, em parceria com Kalor Pacheco, e Samsara (assista aos vídeos abaixo). De fato, são interessantes e anunciam uma inquietação do artista em sair de sua “zona de conforto”; um artista, aliás, com vocação para o cinema.

“Pode ser que depois não faça nem vídeo nem foto, que eu vá fazer outra coisa. Mesmo assim, se perguntam para mim o que faço, digo que sou fotógrafo. Mas não quero ficar preso à fotografia. Não quero dizer: ‘A fotografia é maravilhosa!’. Não me sinto nada com essas coisas. Acho que me interessa mais a criação.” A fala é curiosa. O mais velho de uma família de três irmãos, Hirosuke Kitamura nasceu em Osaka, no Japão, e passou parte da infância na Tailândia, pingando depois em várias cidades de seu país, porque seu pai era vendedor de moto Honda. Na infância/adolescência, quis ser trompetista e depois pugilista. Diz que japonês adora imitar os outros (lembra que se vestia como o Rocky de Silvester Stallone), mas acabou se formando em Letras e especializando-se em literatura portuguesa. “Eu queria estudar português. Gosto da sonoridade de idiomas latinos. Italiano, espanhol, português. Tatatata… Talvez pela música, a sonoridade da salsa, do samba... Clara Nunes foi para o Japão e eu a escutei na rádio. A locutora falou que, se a pessoa entendesse o português, seria mais divertido. Essa também foi uma das razões, mas não gostava muito da minha faculdade. Eu queria conhecer a cultura brasileira e vim através de intercâmbio. Não queria ficar muito tempo, mas gostei. Tinha 22 anos, hoje tenho 51”, contou. Já em Salvador, antes de ser fotógrafo, pensou em ser também cabeleireiro.

Atualmente, Oske trabalha com Bubbaloo, uma trans que faz performance com objetos catados na rua. O artista já a encontrou algumas vezes, e procura, mais do que fotografá-la, estabelecer uma relação de confiança e amizade. Mesmo assim, não demonstra hoje o mesmo entusiasmo por Salvador. Se antes ficava feliz até com fila de banco, o que não existe no Japão, hoje se queixa das transformações urbanas sofridas pela capital baiana.



Imagens da trans Bubbaloo (2018)

Vindo de um país onde ninguém diz “eu te amo”, Oske parece buscar, ao menos naquilo que vê, uma paixão perdida, uma saudade inexplicável e um contraponto a um estereótipo de japonês trazido em sua própria bagagem. Por isso, a língua entrando em seus olhos. O gesto lascivo, diz, é para abrir o olhar e destravar a mente que não sabe bem aonde quer ir, mas sabe muito bem como chegar.

EXTRA
Assista a outros vídeos de Hirosuke Kitamura:
http://hirosukekitamura.com/video

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista, editora da Continente Online.

*A jornalista viajou a convite do Fotofestival Solar, em Fortaleza, onde Kitamura expõe até março.

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