Ensaio

Cinema queer em Pernambuco

Realizador observa produção audiovisual que tematiza questões de gênero

TEXTO ALEXANDRE FIGUERÔA

01 de Fevereiro de 2019

Cena do longa-metragem 'A seita' (2017), do coletivo Surto & Deslumbramento

Cena do longa-metragem 'A seita' (2017), do coletivo Surto & Deslumbramento

Foto Chico Lacerda / Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 218 | fevereiro de 2019]

contribua com o jornalismo de qualidade

A produção audiovisual em Pernambuco vive um momento de intensa movimentação em termos de quantidade de projetos realizados, acompanhada de uma diversidade de propostas estéticas. Entre dezenas de filmes de longa e curta-metragem, observamos a existência, por um lado, de obras afinadas com os cânones do cinema clássico de ficção e não ficção e, por outro, de trabalhos navegando pelos diversos caminhos, hoje possíveis, da construção imagética contemporânea, ou seja, produtos audiovisuais que flertam com o experimentalismo e com a quebra dos códigos narrativos convencionais e que assim buscam escapar dos padrões normativos, tanto do ponto de vista formal, quanto de conteúdo.

Nessa miscelânea de proposições, observamos, ainda, que um relevante número de filmes sobre questões de gênero, dentre eles os de temática LGBT, estão sendo realizados em Pernambuco, mobilizando um número crescente não só de cineastas com algum tempo de carreira no cinema, como realizadores estreantes que, sozinhos ou agrupados em coletivos, graças à acessibilidade proporcionada pelos equipamentos digitais, vêm injetando na produção local uma expressiva renovação do nosso olhar sobre o que antes era classificado apenas como cinema gay ou lésbico. Esse cinema insurgente vem revendo o estatuto da imagem em diversos sentidos, colocando em perspectiva as questões coletivas, as identidades e os processos subjetivos, potencializando ainda os fluxos sociais, culturais e artísticos em seus aspectos estéticos e políticos de tudo o que diz respeito à diversidade de desejos e comportamentos relacionados com a sexualidade. Algo que, diga-se de passagem, revela-se, nesse momento de emergência de forças conservadoras, um importante foco de resistência ao obscurantismo e à mediocridade que se instalou nos centros de poder político do país.

O porteiro do dia (2016), do diretor Fábio Leal, filma com naturalidade o sexo entre dois rapazes. Foto: Ponte Produções/ Divulgação.

Sob tal perspectiva, podemos identificar na produção local elementos que conectam o que vem sendo feito aqui com o termo cada vez mais recorrente para classificar esse tipo de obra audiovisual, ou seja, reconhecer a existência no estado de um cinema queer – que, a despeito de uma série de questionamentos sobre a validade e pertinência do conceito, não deixa de ser uma boa chave para alinharmos filmes que, de uma forma ou de outra, estão se abrindo para além do binômio homossexual/heterossexual e quebrando com a familiar representação do gay e da lésbica cristalizada pelo cinema em geral, até bem pouco tempo. Em muitos projetos feitos em Pernambuco nos últimos cinco anos, vemos como se expande o alcance das identidades de gênero para incluir em suas narrativas travestis, bissexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros etc. E vão além, pois, entre outras coisas, discutem questões de raça, de política do corpo, de performatividade, olham para dentro das ações políticas dos movimentos LGBT e movem personagens que sempre estiveram nas margens para o centro do processo de criação.

Essa sensibilidade queer se apresenta também na ruptura dos limites dos padrões estéticos, mostrando e assumindo intertextualidades, contaminações de linguagem e derrubando e invertendo hierarquias, nas quais o erudito, o pop, o kitsch e o pornográfico caminham lado a lado sem a menor cerimônia. Além disso, embora sejam filmes marcados, em geral, por uma evidente limitação dos recursos financeiros e técnicos, seus realizadores e equipes buscam contornar tais condições reforçando o perfil autoral de seus trabalhos, em que a liberdade de expressão e a vitalidade dos personagens enfocados – reais ou fictícios – são potencializadas.

Um dos trabalhos mais expressivos nesse sentido em Pernambuco é, sem dúvida, o desenvolvido pelo coletivo Surto & Deslumbramento, composto por Chico Lacerda, André Antônio, Rodrigo Almeida e Fábio Ramalho. Formado em 2012, o grupo, desde os seus primeiros trabalhos audiovisuais, vem quebrando padrões estéticos e de conteúdo caros à produção pernambucana e questionando os procedimentos usuais de realização e difusão. Irreverência, olhar crítico, desmitificação, ironia e sensibilidade queer são marcas indeléveis em todos os seus filmes, entre eles, os curtas Mama, Estudo em vermelho, Conto de outono, Casa Forte, Virgindade e o longa A seita.

Como iniciativa independente, o grupo se organizou desde os primeiros projetos segundo uma dinâmica marcada pela mobilidade de funções, pela discussão compartilhada dos processos e pela diversidade dos modos de divulgação, levando em conta a particularidade de cada proposta. Os filmes do coletivo foram, de certa forma, uma reação ao desconforto com relação à produção pernambucana da primeira década dos anos 2000, considerada por Chico, André, Rodrigo e Fábio muito heterossexual e politicamente conservadora, ou seja, uma ideia de política que, às vezes, desconsiderava as outras políticas ou tentava ler essas outras políticas numa única chave. Essa atitude foi assumida antes mesmo do coletivo se constituir formalmente, quando Chico e Rodrigo participaram do projeto Torre gêmeas, um longa reunindo a visão de diversos cineastas sobre os dois enormes edifícios construídos no Cais de Santa Rita, no Recife. O trecho deles é uma longa cena com dois rapazes lado a lado, enquadrados da barriga até as coxas, se masturbando até ejacularem. Houve um incômodo muito grande quando a cena foi mostrada aos organizadores do projeto audiovisual. Eles não queriam colocar a cena e só a aceitaram quando Chico inventou um discurso político relacionando falo e poder.

A postura a favor de uma sensibilidade gay é algo que toca os integrantes do Surto & Deslumbramento naturalmente. O grupo a explora de forma explícita e sem subterfúgios, acrescentando a isso um olhar debochado sobre a realidade. Ela aparece nos diversos curtas e assume aspectos diferentes, seja questionando a percepção do funk de Valeska Polpozuda, tema do filme Mama, seja parodiando o universo pop, a exemplo de Estudo em vermelho, ou explorando as relações entre cinema e pintura, como pode ser visto em Conto de outono, dirigido por André Antônio. O cinema feito pelo coletivo busca, dessa forma, distanciar-se da heteronormatividade e faz dos corpos, das palavras e dos gestos do imaginário gay uma mistura de provocação e tomada de posição em que o inusitado é regra e os excessos são sempre bem-vindos.

Casa Forte, dirigido por Rodrigo Almeida, tem como ponto de partida a observação de que muitos dos edifícios nos bairros de Casa Forte e Parnamirim são nomeados com palavras que remetem diretamente ao período colonial e ao ciclo do açúcar em Pernambuco, a exemplo do condomínio Senzala do Megahype. Mas, para não fazer um filme apenas sobre os edifícios do Recife, Rodrigo acrescentou a ideia de mostrar um rapaz, espécie de sinhozinho moderno, que mantém uma relação fetichista com pessoas negras. A conhecida interseção sexual entre o senhor de engenho branco com os subalternos de origem escrava é introduzida no enredo, mas, ao mesmo tempo, pensa o corpo negro enquanto um corpo de desejo e estabelece um jogo invertido no qual o personagem negro subverte essa situação.

Virgindade
, dirigido por Chico Lacerda, lança mão de histórias da sua adolescência e infância e narra suas memórias sexuais antes de ele ter praticado sexo. O filme usa imagens captadas pelas ruas do Recife, enquanto a voz over do próprio cineasta vai descrevendo suas lembranças. Esse fluxo narrativo ilustrado por imagens aleatórias é interrompido apenas por uma sequência de imagens bucólicas com corpos masculinos nus e uma trilha musical que remete aos tempos de adolescente do narrador. A estética e o tipo de registro definido nos remetem diretamente ao estilo do-it-yourself, um formato que ganhou seguidores a partir da proliferação do uso de câmeras digitais amadoras ou semiprofissionais.

No primeiro longa-metragem do coletivo, A seita, dirigido por André Antônio, a sensibilidade gay e a rejeição ao realismo são visíveis, reafirmando a proposta estética do grupo por um cinema no qual predominam o artifício, o exagero e a frangagem. A seita é uma ficção científica que se passa no Recife em 2040, quando um jovem habitante de uma colônia espacial resolve voltar para a Terra. Aqui, ele encontra uma cidade quase fantasma e passa a viver como um dândi, num palacete semiabandonado. Num cenário em que a estética kitsch e as alegorias camp andam abraçadinhas, o recém-chegado passa a maior parte das horas do seu dia lendo livro de poesias, histórias em quadrinhos e bebendo chá em xícaras de porcelana. Quando sai para as ruas, fica vagando pelas ruínas da cidade onde flerta com outros rapazes que acabam indo para sua cama. E é nessas caminhadas que ele descobre a existência da seita.

O filme, contudo, está bem longe de ser uma ficção científica dentro do modelo estabelecido para o gênero. Ele brinca com essa expectativa, e o futuro decadente representado no filme é composto por cenários reais do Recife contemporâneo. André explora a plasticidade da imagem em proveito de um refinamento estético de modo a sensibilizar o espectador com uma mise-en-scène antinaturalista. A narrativa é marcada pela frivolidade, pela contemplação e pela indolência. O permanente estado de languidez vivido pelo personagem revela alguém que faz do seu comportamento uma arma contra o mundo contemporâneo – representado pela colônia espacial que ele deixou – com suas exigências de ordem, produtividade e felicidade a qualquer preço. A seita pode parecer um filme frívolo, mas, se prestarmos atenção, veremos que sua volta ao passado, num futuro que existe no presente, é um ato político.

Na verdade, a postura do Surto & Deslumbramento não tem muito a ver com o ativismo gay nos moldes tradicionais. Quando iniciam um projeto, eles não pensam se o filme vai ter um gay na história ou dois homens se beijando. O interesse principal do grupo é a pesquisa estética que tem a ver com a beleza, com o artificialismo, ou seja, totalmente fora dos padrões normativos da heterossexualidade. O grupo gosta de afirmar a sua identificação com o rótulo “obra gay”, mas com o intuito de problematizá-lo. Nos seus filmes, a questão não é brigar pela representação do personagem gay, mas mostrar que, se, para a sociedade heteronormativa, o gay é um nicho que não consegue escapar dessa marca de gênero, os filmes heterossexuais também formam um nicho que dialoga com um tipo de sensibilidade heterossexual. Os cineastas heterossexuais, portanto, não podem reivindicar para si uma suposta universalidade dominante para seus filmes e classificar os que não se enquadram nos seus padrões como estéticas desviantes ou à margem.


Elementos do campo conceitual queer estão presentes em Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda. Foto: Flávio Gusmão/Divulgação.

***

O posicionamento dos integrantes do Surto & Deslumbramento dá bem a medida do universo do cinema queer hoje, de desvinculação das amarras de uma sistematização engessada, como já observamos. Todavia, é preciso ressaltar que, bem antes dessa onda, esse espírito de libertação e sensibilidade estava presente na produção fílmica pernambucana ao resgatarmos os filmes feitos em super-8, nos anos 1970 e 1980, por Jomard Muniz de Britto.

Em seus curtas experimentais, Jomard registrou o desbunde do grupo de teatro Vivencial – pioneiro em colocar no palco, com o mesmo destaque, atores e transformistas de diversos extratos sociais; questionou os padrões de comportamentos heteronormativos e a moral conservadora da classe média local; e deu protagonismo a personagens até então ausentes das telas dos filmes produzidos no Recife, como o pai de santo Mário Miranda, figura central do documentário Babalorixá Mário Miranda, Maria Aparecida do Carnaval. Em (Ré)cife em noturno maior, nada mais queer do que o vampiro bissexual interpretado pelo diretor teatral Antonio Cadengue, que percorre os bares e boates da noite recifense envolvendo-se eroticamente com bichas, mulheres, marginais e boêmios.

Por essa razão, eu arriscaria afirmar que uma parcela da produção de filmes sobre o universo LGBT em Pernambuco tem suas raízes no pioneirismo de Jomard. Elas podem ser detectadas nas obras do Surto & Deslumbramento, nos filmes de Sócrates Alexandre (Sosha), no longa Tatuagem, de Hilton Lacerda, ou no crescente número de filmes protagonizados por travestis e transexuais da periferia.

Os filmes de Sosha, feitos sem recursos e repletos de referências à cultura pop, encarnam a diversidade e a irreverência e desestabilizam a ideia de um cinema gay ao gosto da classe média urbana intelectualizada pela espontaneidade de suas abordagens. O curta Recife XXI exprime com perfeição essa atitude ao mostrar a top model internacional Brenda, que reside em Londres, voltando ao Recife para curtir a novidade mais quente da cidade com a amiga Tanya: a Praia Aurora, literalmente uma praia imaginária instalada na margem do Rio Capibaribe entre as pontes Duarte Coelho e Princesa Isabel. O filme mistura cenas rodadas por Sosha com imagens copiadas de filmes disponíveis na internet, algo bem próximo das ideias vistas nos filmes de Jomard Muniz de Britto, de um cinema de bricolagem, de câmera na mão, filmado de forma improvisada nas ruas.

Tatuagem é outra obra com elementos bem afeitos ao campo conceitual do queer, a começar pela trama central, que tem como ambiente de desenvolvimento o cotidiano de um grupo teatral de criação coletiva inspirado no Vivencial. Além disso, aborda o afloramento do desejo homoerótico em meio a soldados de um quartel militar, estabelecendo um contraponto interessante com a vivência do grupo de teatro, ou seja, entre liberdade e repressão, entre a alegria da vida livre e o fascismo entranhado nas relações da caserna. Embora, do ponto de vista narrativo, o filme tenha uma estrutura convencional, ao contrapor utopia e opressão, Hilton Lacerda traz à tona uma questão essencial de nossas existências: quando o desejo de sexo e afeto aparece, a forma de vivenciá-los e por onde eles circularão definirão a extensão de nossa humanidade e se, por fim, seremos libertários ou autoritários.

***

A inclusão das reconfigurações da classificação de gêneros no universo da produção audiovisual tem trazido para as telas grupos sociais que não tinham grande visibilidade ou eram flagrados de forma unilateral, sempre num mesmo contexto a partir de um olhar altruísta ou folclórico sem problematizar de fato suas vidas. É o caso das travestis e das transexuais que paulatinamente foram ganhando voz como personagens e agora reivindicam espaços mais amplos para sua atuação.

Em Tubarão (2013), o cineasta Leo Tabosa observa intimidade das relações homoafetivas. Foto: Alex Costa/ Divulgação.

No Festival de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero do Recife (Recifest), nos últimos anos, tem crescido visivelmente a presença de curtas que enfocam esses segmentos como é o caso de Garotas da moda, de Tuca Siqueira; Retratos, de Leo Tabosa, Valéria Brasil, de Almir Guilhermino; Luciana, de Chico Ludermir, entre outros. Na edição de 2018, o grande vencedor foi o curta Desyrrê, uma realização coletiva sobre uma transexual feminina no Sertão do Pajeú. Bichas, de Marlon Parente, com relatos de seis pessoas sobre suas experiências, é outro documentário pernambucano de grande repercussão, e cuja trajetória foi totalmente impulsionada pela internet, evidenciando como hoje esse meio é um importante espaço para a circulação de filmes alternativos.

A movimentação das mulheres cis, lésbicas e trans no sentido de conquistar mais espaço na produção audiovisual também vem ganhando força e seus reflexos já podem ser sentidos quando mapeamos os filmes realizados recentemente.

O documentário Por nós, pelas outras, por mim, de Ingrid M. Abage, Larissa Araújo e Lorena Monteiro, e Mulheres (ES)Pelhos, de Rayza Oliveira, refletem o interesse de jovens realizadoras de encararem questões como machismo, feminicídio, racismo e misoginia. No primeiro, temos uma radiografia dos preparativos da Marcha das Vadias no Recife, apresentando em detalhes os temas e as discussões que pautam o evento e a articulação dos grupos feministas em atuação na cidade. O curta de Rayza foi fruto do curso de Produção Audiovisual para Mulheres, realizado pela Secretaria da Mulher de Pernambuco, tendo como mote as pesquisas que apontam que 77% das mulheres já foram vítimas de abusos físicos/sexuais, e que 10% desses crimes aconteceram dentro das suas próprias casas. O filme tenta perceber, a partir de relatos, como essas mulheres se encaram e o que elas conseguem enxergar em seus próprios reflexos.

Tais trabalhos podem não trazer exatamente propostas estéticas inovadoras ou transgressoras, mas são fundamentais para consolidar uma produção audiovisual feita por quem protagoniza essas questões. E essa consolidação permite avanços que já podem ser observados em filmes que ousam na experimentação, como podemos constatar em Quanto craude no meu sovaco, de Duda Menezes e Fefa Lins, exibido no último Recifest. O trabalho brinca com a linguagem audiovisual e, a partir de um plano fechado na axila de uma mulher, debate o cenário de opressão contra a mulher e os abusos contra a imagem, corpo e intimidade feminina. A quebra de paradigmas e a paródia também já são vistas em filmes produzidos por mulheres, como é o caso de Irma, era uma vez no sertão, de Camilla Lapa e Lorena Arouche, no qual uma estranha forasteira perverte todos os clichês de filmes de mocinho e bandido.

Outro aspecto relevante a ser observado no audiovisual voltado para os temas LGBT é o da preservação da memória das lutas e figuras, cujas atitudes e comportamentos precederam aos movimentos organizados e foram essenciais para pavimentar as conquistas que temos hoje. Filmes como Eternamente Elza, realizado por mim em parceria com Paulo Feitosa, e o de minha autoria Kibe Lanches, ambos realizados em colaboração com o Surto & Deslumbramento, registram pessoas que já eram queers antes de o termo virar moda e que assumiram seus papéis, a despeito do preconceito ou discriminação os quais pudessem sofrer.

Elza Show, transexual negra, cantava nos bares e saunas do Recife, desde a década de 1970, músicas de Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Núbia Lafayete e viveu sua sexualidade de forma livre. Luiz Ferreira de Araújo, mais conhecido como O Barão, manteve da década de 1980 até o início dos anos 1990, no Bairro do Pina, o Kibe Lanches, estabelecimento que – nas noites de sexta-feira, graças a um palco improvisado nos fundos da lanchonete – se transformava num dos principais pontos de encontro da comunidade gay do Recife. Nele, realizavam-se shows de transformistas e o desfile de rapazes que ficou conhecido como “as rolinhas do Barão”. Sem esses filmes, portanto, a história desses personagens seria lançada no limbo.

Resgate da memória de lutas LGBT está inserido em Kibe Lanches (2018). Imagem: Frame do filme Kibe Lanches/ Divulgação.

A porta aberta pela chave do cinema queer nos permite ver ainda uma leva de filmes feitos em Pernambuco que se voltam para a intimidade das relações homoeróticas, desprovidos de um olhar preconceituoso. Esses trabalhos permitem encarar práticas e trocas sexuais que antes seriam consideradas desviantes e “fora” do normal, apenas como mais uma possibilidade de encontro entre pessoas, sejam elas de sexos diferentes ou do mesmo sexo. O cineasta Leo Tabosa realizou dois filmes emblemáticos seguindo essa trilha. O primeiro foi Tubarão, em que um homem de meia-idade, após perder o amante, um jovem surfista vítima do ataque de um tubarão, só se realiza sexualmente filmando cenas de pessoas que praticam atos em banheiros públicos. O seguinte foi o documentário Baunilha, no qual ele adentra no universo de um mestre de práticas sadomasoquistas.

Outro realizador que transita pelas relações homossexuais masculinas desvelando com extrema naturalidade e bom humor esse tipo de convivência é Fábio Leal. Seus curtas O porteiro do dia e Reforma lançam um olhar terno e irreverente sobre personagens que assumem sem grandes dramas suas escolhas amorosas. A câmera de Fábio não está nem um pouco preocupada com os padrões morais e os bons costumes e, sem hipocrisia, flagra os enamorados como vieram ao mundo, agarradinhos, mostrando que não tem nada demais um homem aquendar outro. Aquendar, para quem não sabe, é uma das definições de transar em pajubá, a linguagem criada pela comunidade LGBT no Brasil e que tem origem no iorubá e nagô.

Atualmente, há um movimento questionando a expressão queer pela carga colonialista que ela carrega. O pajubá foi até questão do Enem, mas, pelo que andam dizendo por aí, os novos comandantes da pátria não gostam nem de pajubá e muito menos de cinema queer. Portanto, preparem as trincheiras da resistência: a luta continuará diante e por trás das câmeras.

ALEXANDRE FIGUERÔA, professor da Unicap, crítico, pesquisador e realizador de cinema.

Publicidade

veja também

Hirosuke Kitamura

Berlinale 2019

Os vários ângulos de um mesmo Jorge