Portfólio

Romy Pocztaruk

Artista gaúcha investiga o modo como o tempo incide sobre cidades, projeto e ideias

TEXTO Luciana Veras

31 de Outubro de 2017

'Beelitz I', impressão jato de tinta sobre papel algodão, 160 x 100 cm, 2013

'Beelitz I', impressão jato de tinta sobre papel algodão, 160 x 100 cm, 2013

Foto Romy Pocztaruk/Divulgação

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 203 | novembro 2017]

Em Blade runner, não importa à qual das versões do clássico sci-fi de Ridley Scott se tenha assistido, um dos momentos mais agudos é o solilóquio de Roy Batty, personagem defendido por Rutger Hauer. No confronto com o Rick Deckard de Harrison Ford, o androide, exausto e ensanguentado, decreta a hora de partir: “I’ve seen things you people wouldn’t believe… Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched c-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die”. Todos esses momentos – naves de ataque em chamas nas bordas de Orion, partículas de césio a brilhar no escuro perto do Portão de Tanhäuser – esvair-se-ão no tempo, como lágrimas na chuva, constata o replicante. É tempo de morrer.

O tempo, contudo, não morre. E suas marcas deflagram novos modos de se refletir sobre a passagem de dias, anos, séculos. Investigar o modo como as camadas temporais se imbricam em cidades, projetos, ideias é um dos motores do trabalho da artista visual Romy Pocztaruk. O nome estrangeiro, de origem judaica por parte de mãe e pai, herança de famílias que migraram da Polônia e da Rússia fugindo da perseguição da Segunda Guerra Mundial, serve de apresentação e pista para compreender a narrativa que se forma a partir das suas fotografias, vídeos, instalações, enfim, do conjunto erigido a partir de sua percepção e atuação no campo da produção imagética.

No enclave entre passado e presente, na confluência entre o que tudo poderia ser e o que de fato se constituiu, e no cruzamento entre as imagens que das ruínas se desprendem e as sensações que delas se derivam está o olhar de Romy, gaúcha nascida em 1983, criada em Porto Alegre, porém, cidadã global. Nomadismo, aliás, é algo que lhe apetece. “Já morei em Israel, quando tinha uns 15 anos, estudando em uma escola de kibbutz, passei um tempo na Alemanha, fiz uma residência em Nova York. Trabalho a partir do deslocamento. Entre 2011 e 2015, viajei muito e pude incursionar por trabalhos investigativos em vários lugares. De 2016 para cá, fiquei mais no Rio Grande do Sul e acabei produzindo trabalhos bem diferentes”, situa.


Argonauta, fotografia digital, 160 x 100 cm, 2013. Foto: Romy Pocztaruk/Divulgação

A constatação dela, que poderia ser de tantos outros, mas que ganha lastro no seu acentuado sotaque gaúcho, é a seguinte: a arte não se dissocia da vida e de suas fases, oportunidades e desejos. E há muito que seu apetite como artista está voltado para “estabelecer pontes entre o passado e o Brasil de hoje”. Romy, nesse sentido, atua como uma detetive também, a escavar arquivos, percorrer estradas e visitar locações que bem poderiam estar em filmes de ficção científica: “Talvez, o gatilho da minha investigação como artista seja procurar os elos entre os projetos grandiosos que a ditadura militar, por exemplo, havia criado para o país, o imaginário a partir disso e a construção de um ideal de Brasil”.

Foi isso que a levou a imaginar a série Bombrasil (2017), presente no 35º Panorama da Arte Brasileira, aberto à visitação até dezembro no MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo. As fotografias não estariam deslocadas em qualquer galeria europeia; Pocztaruk é sobrenome alheio ao português e os interiores de usinas nucleares compõem paisagens recorrentes no Velho Mundo. Porém, o que elas desvelam na mostra sob a curadoria de Luiz Camillo Osório, no museu encravado no Parque Ibirapuera, é o programa nuclear idealizado no Brasil com intuito de construir uma potência internacional.

“Um dos grandes projetos da ditadura militar era forjar um Brasil de poder tecnológico. Havia a questão sociopolítica de ter a possibilidade de um armamento nuclear, o que casava com a ideia da ditadura de um nacionalismo exacerbado. Era, na verdade, a fantasia de uma grande nação e a construção do imaginário de um país do futuro. Todo mundo conhece as usinas de Angra, mas até pouco tempo eu não sabia, por exemplo, que havia outro projeto secreto. Eram, na verdade, dois programas nucleares: um que era o oficial e compreendia as usinas – Angra I, III e III – e um paralelo, que era o segredo do exército, e no qual se trabalhava para que o Brasil tivesse uma bomba atômica e um submarino nuclear”, revela Romy.

A sensação que emana de Bombrasil é de uma violenta desconexão. Como pode um país tão desigual investir milhões em usinas que, até hoje, não operam em toda a sua capacidade? “Angra III está há 30 anos em construção”, pontua a artista visual, que já nutria a vontade de pesquisar o Brasil nuclear e, ao ser convidada para esta edição do bienal Panorama, recebeu o aval do curador para seguir adiante. “Adiante”, nesse caso, também significa aprofundar sua minuciosa inquirição sobre as iniciativas faraônicas nacionais.

A última aventura, bandeiras, impressão jato de tinta sobre papel algodão, 70 x 50 cm/170 x 120 cm, 2011. Foto: Romy Pocztaruk/Divulgação

É impossível, pois, não vislumbrar um elo entre Bombrasil e as séries Última aventura e Last utopia, que ela desenvolveu em 2011. Na primeira, Romy empreendeu uma viagem de carro que atravessou uma parte dos quatro mil quilômetros da Transamazônica, outro mito criado pelos militares no auge da campanha ufanista do Brasil: ame-o ou deixe-o. “A ditadura via a construção da rodovia como um marco: era a estrada que poderia ser vista da lua”, lembra. O projeto original consistia em traçar uma linha longitudinal da Paraíba até a Amazônia. Na segunda, centra seu foco em Fordlândia, pequeno município no interior do Pará imaginado e cinzelado para reproduzir, não apenas no nome, uma cidade norte-americana.

O que ela busca são, também, os vestígios do dia, para aludir à obra mais famosa do recém-apontado Nobel de Literatura, Kazuo Ishiguro. O que permanece após décadas de submissão à força do tempo – no sentido metafísico e, também, no aspecto das intempéries e da natureza que vêm reclamar seu devido lugar? Que fantasmas persistem em lugares que mais parecem impor à palavra “utopia” o desvio que caracteriza a “distopia”? Para prosseguir nessa averiguação, Romy Pocztaruk perscruta não apenas as contradições do seu país de origem, mas diversos espaços que se mostram à deriva, até, das definições.

Em Red sand (2012), antigas instalações militares no litoral da Inglaterra surgem como torres imponentes no mar. Há algo de assustador naquelas ruínas; ora parecem vivas, como robôs ou máquinas alienígenas que a qualquer instante podem arregimentar suas peças e alçar voo, ora simbolizam a pequenez ou o fracasso humanos ante a imensidão do oceano. Não estariam descontextualizadas, decerto, em Blade runner ou em qualquer outro escrito de Phillip K. Dick. Beelitz (2013), um sanatório abandonado que atendeu tanto o jovem Adolf Hitler na década de 1910 como os combatentes soviéticos depois da libertação de Berlim nos anos 1940, evidencia os escombros como espectros da existência humana.

Aliás, chama a atenção, justamente, essa ausência. Não são os homens e mulheres que importam nas composições, e, sim, o produto de sua megalomania, os territórios conquistados, ocupados e posteriormente descartados, os objetos que resistem a despeito do malogro das teses que os conceberam. São cenários apocalípticos que a própria artista remete “aos filmes de ficção” e nos quais ela não interfere. “Não mexo nos lugares, não crio cenas, não modifico a imagem depois do registro. Trabalho com ajustes, mexo nas cores na pós-produção, mas não tiro nem coloco nada”, aponta. Doutor Fantástico, de Stanley Kubrick, vem à mente quando ela pensa na bagagem que a ficção acrescenta ao seu trabalho. “No filme de Kubrick, o mundo vai acabar porque alguém errou um código e os Estados Unidos vão detonar a bomba atômica. É quase como se tivessem criando uma estratégica para manter a civilização, quase como se estivéssemos vivendo o fim dos tempos e a natureza que dê um jeito de engolir tudo”, corrobora a artista.

Red sand, impressão jato de tinta sobre papel algodão, 130 x 90 cm, 2012. Foto: Romy Pocztaruk/Divulgação

Olympia: Igman, impressão jato de tinta sobre papel algodão, 100 x 150 cm, 2013. Foto: Romy Pocztaruk/Divulgação

Por exemplo, nas fotografias da série Olympia (2013), a natureza se apossa das cidades que outrora sediaram os Jogos Olímpicos, apresentadas no esplendor da sua obsolescência. As instalações monumentais engolidas pelo mato ou pelo desgaste do concreto em Sevilha, Sarajevo e Berlim evocam, também, o interesse da artista em sempre questionar o modus operandi do Brasil. O Rio de Janeiro, primeira capital federal, afinal, recebeu as Olimpíadas em 2016. Quando as megaestruturas cariocas começarem a se esvair, o que Romy fotografará?

“Minha investigação não é para denunciar, é para trazer e colocar esses assuntos em pauta. Quais são os grandes programas e os grandes investimentos feitos no Brasil pós-ditadura e no que eles vão se transformar?”, indaga. Ainda não existem registros do Rio em Olympia, mas o declínio dos projetos nas cidades europeias registradas neste work in progress opera quase como um oráculo para o que já está em curso no país do futebol, onde a maioria dos estádios construídos para a Copa do Mundo de 2014 é mero enfeite nas irregulares paisagens urbanas das metrópoles.

A artista visual não esconde o fascínio pelo que está a ruir: “Acredito que as ruínas trazem um tempo que ficou parado. Nesses grandes projetos, como a Transamazônica ou as cidades que receberam as Olimpíadas, há algo de iniciado e nunca terminado. Estradas que nunca foram pavimentadas, obras nunca finalizadas. Eles trazem desenvolvimento, mas também a atmosfera de algo estancado. Aquele tempo já era uma falência, já era uma ruína, antes mesmo de tudo aquilo começar. Penso que meu trabalho é para colocar todos esses tempos juntos no presente”.

Contudo, ao contrário do replicante Roy Batty em Blade runner, Romy Pocztaruk não acredita que tudo que ela viu e vem fotografando há de se perder como lágrimas na chuva. Ela guarda registros em vídeos das entrevistas e anotações dos encontros que cada série lhe propiciou. E tem consciência de que, ao erguer uma janela para que passado e presente dialoguem, abre espaço para que seja possível entender e debater o Brasil de hoje. “Estamos vivendo um momento muito assustador e tenebroso. Outras coisas piores estão por vir e isso tudo tem a ver com o imaginário do país criado pela ditadura militar”, observa. A memória é uma forma de resistência.

LUCIANA VERAS, jornalista, repórter especial da revista Continente.

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