Nascido inicialmente de um curta-metragem dirigido pelo diretor do espetáculo, Edson Bastos, com este trabalho, o ator baiano redimensiona o olhar para além das questões de gênero, dialogando, em sua narrativa, com o campo da religiosidade (Joelma, desde cedo, dizia ser visitada pelas “13 almas benditas, sabidas e entendidas”), sendo a casa atual de sua personagem, uma espécie de centro espiritual. Dois terrenos polêmicos nos quais o ator navega com intensidade cênica.
Para o crítico Valmir Santos, a peça resulta habilidosa “na dimensão ética de não expor a Joelma da vida como ela é, em suas filigranas, idiossincrasias e alteridades”. “O espectador do cinema ou do teatro tem subsídios para chegar às próprias conclusões no liame do que é invenção e do que é verdade. De como ela sublimou na espiritualidade, por exemplo, toda forma de opressão, ciente de que a solidão pode inspirar ou aspirar a um estado de vigília existencial, mesmo no contexto da vida a dois. Edson Bastos, Fábio Vidal e equipe foram sutis sem abdicar das dores e das delícias em habitar o mundo refratário em vários aspectos, a começar pelo machismo, sem recuar da determinação de ser feliz, amar e ser amada. Outra perspectiva evidente é a do papel da sociedade, a hipocrisia de “atores” fundamentais numa cidade interiorana, como a igreja, a família, a imprensa e a polícia. Em Bastos, sendo ipiauiense, o curta e o solo ressignificaram aquela comunidade em suas fissuras”, escreveu.
Também nordestino, o Coletivo Artístico As Travestidas possui como foco de sua pesquisa exclusiva a abordagem sobre o universo das travestis e transformistas, objetivando compreender para além do estereótipo e preconceitos. Com mais de 12 anos de trajetória, o coletivo nasce com a criação do espetáculo Uma flor de dama, solo do ator Silvero Pereira, inspirado no conto Dama da noite, de Caio Fernando Abreu.
Entretanto, é com BR-Trans, estreado em 2013, que Silvero finalmente é “descoberto” por todo o país e alçado à referência artística nacional na pesquisa sobre o tema. O espetáculo, criado a partir de fragmentos de vidas reais, coletados através de conversas com travestis, transexuais e transformistas da cidade de Porto Alegre, circulou por quase todas as capitais, esgotando sessões, além de ter se apresentado em festivais internacionais.
Para o crítico Gustavo Fioratti, da Folha de S.Paulo, “alguns espetáculos de perfil político-discursivo causam impacto porque são contundentes naquilo que se propõem a defender ou atacar. Outros, e este é o caso de BR-Trans, criado por Silvero Pereira e Jezebel de Carli, conseguem mais, fazem o discurso abrir-se para sequências de enigmas”.
Outra importante obra sob sua direção e que foge do caráter de solos é Quem tem medo de travesti, traçando uma pesquisa histórica do papel da travesti no teatro, em comunhão com uma reflexão sobre a decadência e marginalização da figura “trans” na nossa atual sociedade. Nessa obra, percebe-se uma maior abertura para a performatividade de gênero, por meio do deslocamento poético das identidades de travestis e transexuais para a cena.
O ator, que atualmente pode ser visto na novela da Rede Globo Força do querer, acredita que “a marginalidade da travesti é fruto de uma sociedade excludente. Portanto, essa sociedade deveria acolher os filhos que ela joga nas ruas”.
SOBRE TRANS FAKES
Quando nos deparamos com essa temática tão provocante sob diferentes aspectos, é quase impossível não encontramos outro ponto de vista para esses trabalhos. No último dia 11 de março, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, foi lançado o Movimento Nacional de Artistas Trans (travestis, mulheres e homens trans de todo Brasil). Nele, é posto em questão o fato de personagens trans não estarem sendo interpretados por atores trans, apontado uma possível incongruência em um ator cisgênero interpretar um personagem transgênero, tornando-se, portanto, fake (trans fake = trans falso).
A necessidade de visibilidade e representatividade, não só nos palcos, mas principalmente na oportunidade de empregos, surge como justificativa principal desse movimento que tece críticas ao próprio Luís Lobianco, ao escolher recontar a história de Gisberta sem uma trans no elenco, acusando-o ainda de ser integrante do Porta dos Fundos, um dos canais mais transfóbicos.
O movimento ainda pontua a escritora Gloria Perez, que convidou a atriz cisgênero Caroline Duarte para viver um homem trans na novela Força do querer, lembrando, ainda, que a autora toca no tema da transexualidade e travestilidade há um bom tempo: em 1995, em Explode coração, Floriano Peixoto interpretava Sarita; em 2012, na novela Salve Jorge, trouxe Maria Clara Spinelli e Patrícia Araujo.
Lobianco, em outro texto postado em rede social, intitulado Manifesto Gisberta, responde aos questionamentos: “Se estamos falando de sobrevivência, o teatro, que tem seus estimados 82 mil anos, é um dos maiores resistentes da história. É um senhor que abraça todos e todas as causas – todas as intenções. Que sejam bem-vindos e nobres – nele – todos os debates contemporâneos que estamos conquistando. E que o palco, o ritual, nunca seja censurado. Sabemos dos arranhões que a censura deixou recentemente nas artes, temos o dever de zelar para que nada parecido seja reproduzido”.
O que parece não ter sido levado em consideração na escrita do manifesto trans fake é que estes projetos, com exceção das novelas globais, são batalhados e viabilizados pelos próprios artistas, enfrentando também inúmeras dificuldades para viabilizá-los.
A compreensão de que não é possível construir nenhum tipo de luta negando o outro ainda nos é cara. Entretanto, tamanha a procura do público por essas obras parece-nos, ao menos, o apontamento de um estágio inicial em que, finalmente, nossa sociedade busca reparar as questões relacionadas à homofobia e transfobia.