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O desenho de potência crítica

Falecido há um ano, o artista pernambucano Rodolfo Mesquita terá montagem de exposição e lançamento de livro, do qual extraímos o trecho a seguir

TEXTO João Lima

01 de Fevereiro de 2017

O artista Rodolfo Mesquita

O artista Rodolfo Mesquita

Foto Carlos Montenegro

 [conteúdo da ed. 194 | fevereiro 2017] 

Certa vez, Rodolfo Mesquita colocou no papel que “escrever e desenhar são atividades idênticas na superfície e no fundo”. O traço, sua forma de escrita, foi também a maneira – talvez única e inegociável – de estar no mundo, de sobreviver a ele. Nascido em 1952, o artista fez de sua arte uma potência crítica necessária a tempos críticos, como escreve a seguir João Lima, coreógrafo, ator e também filho deste que é um dos desenhistas mais importantes da história da arte pernambucana. Neste mês, faz um ano que Rodolfo faleceu. Para lembrar a força do seu legado, a Cepe Editora publica o primeiro livro sobre a vida e a obra do artista. Inédito, o texto a seguir é parte da publicação que, junto a uma mostra no Museu do Estado, trará ao público a oportunidade de conhecer a força do pensamento e do gesto do artista.

Iniciarei estaspalavras com uma advertência: o texto que o leitor está prestes a ler é assumidamente afetado pela proximidade entre o que é descrito e aquele que o descreve. Não poderia ser diferente. Sou filho de Rodolfo Mesquita e aqui traçarei algumas linhas sobre a sua vida e obra. É uma missão arriscada, eu sei. Além da familiaridade, vejo-me diante do impasse de escrever à revelia das convicções do artista, que sempre se demonstrou contrário à autoexposição. Radical, Rodolfo acreditava que a arte devia falar por si, chegando a escrever uma vez: “É preciso falar por necessidade e ficar em silêncio pela mesma razão”.

Como não poderia ser de outra maneira, a obra de Rodolfo Mesquita está vinculada às circunstâncias em que ele viveu. Desse modo, o seu fazer artístico está estreitamente ligado ao Recife, à cidade onde nasceu, passou a maior parte da sua vida e onde morreu recentemente, em fevereiro de 2016. Foi na capital pernambucana que o artista elaborou seu trabalho, extraindo dele muitos dos seus personagens e cenas, integrando-os a elementos universais, através de uma perspectiva pessoal. No entanto, ainda que a realidade recifense de sua época tenha sido um cenário importante para as suas representações, a sua arte se afirma para além das fronteiras geográficas e é capaz de inspirar novas leituras através do tempo.

Rodolfo era um atento observador de sua época. Mas, ainda assim, em alguns aspectos ele parecia situar-se em outra temporalidade, chegando, por vezes, a se posicionar anacronicamente em relação ao seu tempo. O certo é que a sua consciência histórica lhe permitia uma atitude crítica diante de algumas tendências contemporâneas, em especial diante da apologia ao novo e do culto ao progresso, característicos da modernidade. Rodolfo percebia que o desenvolvimento técnico se devia ao sangue e suor de gerações e que só representava uma melhor qualidade de vida para poucos, submetendo grande parte da civilização a um regime dependente e destrutivo. Além disso, sua desconfiança com a noção de progresso também procedia da compreensão de que o conceito se originava, antes de tudo, de uma exigência de mercado, o qual ele recusava com veemência.

O ceticismo de Rodolfo em relação ao progresso histórico se estendeu, portanto, ao mercado cultural e à sua constante imposição de novidade. Nada menos do que o acelerador de uma imparável máquina de produção e acumulação de capital. Desse modo, a obra de Rodolfo, elaborada constante e pacientemente, se revela um manifesto contra o império do novo, tão caro à atualidade. No mesmo sentido, sua atividade artesanal, resultado de um processo acumulativo de várias etapas, contrasta com a ideologia da racionalidade tecnológica e sua exigência por resultados instantâneos. Diante da crescente desvalorização do trabalho manual, é significativo lembrar que, até o fim da vida, Rodolfo guardaria consigo o martelo do seu avô marceneiro. Ao que tudo indica, o artista entendeu desde cedo que a tecnologia apenas lhe serviria como ferramenta e que ele já possuía os instrumentos de que precisava: papel e caneta.

Rodolfo escolheu seus materiais e foi longe com eles, redefinindo constantemente a sua arte. Sendo autodidata, ele nunca se conformou com as formas e estruturas preestabelecidas, buscando criar com seus próprios recursos, através de uma exploração incessante dos limites do desenho. Assim, ele logo percebeu que as convenções da arte e as restrições da superfície do papel lhe serviriam como parâmetros favoráveis ao aprofundamento, para finalmente impulsionar a elaboração de uma linguagem gráfica original. Ao olhar os seus trabalhos, torna-se evidente que toda a sua obra compõe uma série contínua de experimentação e redefinição do seu próprio fazer artístico, sempre deixando os procedimentos à mostra.

Frente à progressiva desmaterialização do objeto artístico, os desenhos e as pinturas de Rodolfo Mesquita colocam em evidência a questão da técnica, e revelam um saber específico: a coordenação artesanal entre o olho e a mão. Trata-se de um movimento de duplo sentido, mediado pela subjetividade: através da articulação entre a mão e o olhar, a visão se une ao tato. Daí em diante, a mão se converte em olho e o traço assume uma forma de olhar.

Ao insistir no envolvimento direto com as suas criações, o artista reivindica a dimensão da experiência, travando um corpo a corpo com seus materiais e formas. É por meio desse contato que Rodolfo se dedica a solucionar certos enigmas, charadas que só poderiam ser resolvidas pelo ato de desenhar. Assim, cada desenho se inscreve num movimento contínuo entre pensamento e ação, numa incessante busca de sentido. O termo sentido, na obra de Rodolfo, implica, antes de tudo, direções, vetores, linhas, traços e formas. Essa indagação por uma orientação expressa à perplexidade do artista diante de uma realidade muitas vezes difícil de compreender ou aceitar.

Sem temer a luta por sentido, a obra de Rodolfo Mesquita também poderia surgir da sua ausência. Muitas vezes, parece ser o colapso de significado aquilo que desencadeia o processo de criação. E ele não tinha problemas em assumir o lugar de fala de uma consciência incômoda. Essa consciência do seu lugar de observação podia acarretar vertigem, mas era inevitável para o artista. Sua arte é crítica porque os tempos são críticos. Mesmo assim, se, por um lado, o seu trabalho deve a sua motivação, em grande medida, a um sentimento de inconformidade, por outro, seria insuficiente se o reduzíssemos a isso. O conjunto de suas criações também evidencia uma dimensão lúdica, de humor, no qual se pode perceber o prazer e a satisfação do artista em elaborar suas figuras. Mas Rodolfo era avesso à ideia de arte como meio de autoexpressão e, além desse aspecto, a obra dele também aponta uma rigorosa pesquisa formal.

Salta aos olhos que, nos traços do artista, os elementos que compõem a realidade sejam tratados como uma série de experimentos. Através dos seus exercícios de figuração, Rodolfo é capaz de colocar à prova a própria realidade em que estava inserido. Para isso, a sua fonte de inspiração mostra-se diversa, indo desde observações do seu cotidiano pessoal, seu hábito de leitura, até o interesse pela linguagem da mídia em geral – cartazes de publicidade, fotografias de jornais, mapas, catálogos de máquinas, utensílios domésticos, manuais vários et cetera. Qualquer coisa que estivesse ao seu alcance poderia lhe servir como material bruto. E, assim, em sua busca por dissecar a realidade, o theatrum mundi servia de gatilho para o seu processo criativo.

Rodolfo parecia querer colocar em questão tudo o que estava ao seu redor. E, para isso, processava o acúmulo de referências e o combinava entre si. Seja qual fosse o ponto de partida, imagens que ele encontrava por acaso ou visões próprias, o artista parecia operar através de uma criteriosa “mastigação” daquilo que o afetava, para, em seguida, agitar as formas e, finalmente, revelar uma perspectiva desconhecida. Em sua particular apropriação do real, Rodolfo costumava proceder por subtração, isolando os elementos essenciais para depois rastrear direções. Desse modo, os seus traços designam mapas de relações, dando a ver, por meio de linhas e pontos, as coordenadas de uma geografia própria de pensamentos e sentimentos.

A permanente invenção que Rodolfo exercia na folha do papel era a sua forma particular de questionar o campo do possível. O artista colocava em tensão os elementos da realidade para fazer surgir a sua linguagem, uma expressão capaz de sacudir a nossa sensibilidade de forma direta. Entretanto, Rodolfo era contrário ao sentimentalismo e à sedução do público, sendo frequente, em seus procedimentos, a deliberada interrupção da ilusão pictórica. Por meio de recursos de distanciamento, que se assemelham aos do teatro épico de Brecht, as suas composições não nos deixam esquecer que estamos diante de figuras desenhadas. Do mesmo modo, em suas obras, a forma reivindica a sua concretude. Seja pelo uso de metacomentários ou através da intromissão da realidade das manchas de tinta, o autor nos adverte das evidências do ato criativo e de sua materialidade. A partir daí, somos convidados a ter consciência da obra de arte enquanto objeto, com acesso aos vestígios da sua elaboração. E, assim, reconhecemos que não existe olhar neutro.

Um traço sui generis do trabalho de Rodolfo Mesquita é a sua contínua busca por figurar e desfigurar os personagens que desenhava. Sua trajetória foi dedicada especialmente à representação de figuras humanas, tendo o registro caricatural marcado fortemente a sua etapa inicial. Essa insistência em delinear homens e mulheres, com especial atenção aos seus semblantes, pode ser vista como uma estratégia para desvelar o rosto da sociedade de uma maneira geral. Como se, através da fisionomia de cada sujeito, ele pudesse capturar uma sensibilidade coletiva. Assim, no elenco de personagens de Rodolfo, encontramos figuras anônimas, reconhecíveis pelas suas expressões, estados de espírito e outros códigos sociais. São soldados, burocratas, mulheres diversas, loucos e “homens comuns”, cada qual com a sua máscara determinada pelo uso.

Em suas cenas, aparecem indivíduos isolados ou comunidades imaginadas e, por meio delas, parecemos ter acesso à algaravia humana, com suas nuances e tensões. Nessas composições de grupo, surgem turbas interagindo ou multidões dispersas, através das quais Rodolfo tende a representar a massa humana como uma força indeterminada, sem autoconsciência. Aqui, cada uma das figuras exerce seu papel, sendo também frequente vê-las à espera, em delírio, deslocadas de suas atribuições. E assim, a cada quadro, surgem coreografias banais ou inusitadas, em que Rodolfo desdobra lúcidas análises das condições sociais.

A desfiguração nos desenhos do artista vem a ser um recurso desenvolvido meticulosamente, atuando como meio para dar vazão à sua visão crítica de sociedade. Ao mesmo tempo, através disso, se manifesta uma forma singular de subjetividade coletiva. Se, tradicionalmente, o rosto humano é o elemento mais destacado da representação identitária, Rodolfo parece ir na mesma direção para, contudo, recusar os valores habituais e finalmente revelar uma figuração marcada pelo grotesco. Esta seria a sua forma de renunciar aos tradicionais valores de beleza, associados à autocomplacência, e dizer sim ao assombro e à inconformidade. Eis o seu meio para sacudir a estabilidade do nosso sistema de representação, historicamente movido por um narcisismo exacerbado. Através do grotesco, Rodolfo realiza um gesto de dissenso contra o reflexo atávico de reconhecimento que parece apontar uma dimensão desconhecida.

FIGURAS, OBJETOS
Sapatos, lâmpadas, chapéus, guarda-chuvas, facas, pistolas, malas, carros e aviões. Esses são alguns dos objetos aos quais Rodolfo dedicou especial atenção em seus desenhos. Suspensos na folha do papel, os objetos frequentemente surgem desprendidos das suas funções instrumentais, retirados dos seus usos e necessidades. Inutilizados pelo artista, aparecem antes como natureza-morta do que como mercancias, manifestando-se como vestígios de outras épocas. Assim, Rodolfo parece extrair capacidades intempestivas dos seus objetos e daí surge uma certa melancolia, sentimento característico da modernidade. A partir disso, as coisas falam, deixando entrever uma dimensão fetichista da nossa sociedade. Através dessa poética, Rodolfo elabora uma crítica, muitas vezes bem-humorada, ao progresso capitalista e dá vazão a formas improváveis.

Além dos objetos reconhecíveis, Rodolfo também foi um inventor de máquinas, engrenagens e dispositivos diabólicos. Por meio dos seus instrumentos fictícios, surgem diagramas, estruturas entrecruzadas, sempre com perspectivas inusitadas. São as suas abstrações, que nunca abandonam a dimensão material e acabam se convertendo em uma grande máquina de “moer” figurações.

Atento ao poder da imagem e à sua estreita relação com a memória, Rodolfo era consciente da dimensão política da sua obra e, sendo assim, os seus trabalhos também podem ser vistos como relatos de uma época. Desse modo, em suas composições, o artista também assume o papel de narrador, contando, através da caricatura, certos costumes absurdos da burguesia, assim como aspectos sombrios da história dos perdedores. Incapaz de ignorar o sofrimento humano, Rodolfo se dedicou a desenhar cenas de opressão e violência, apresentando corpos fracos, esquecidos pela história oficial e retirados do nosso campo de representação. Através de uma linguagem fragmentada, surgem antinarrativas e, com frequência, a superfície do papel se apresenta como o campo de batalha de uma sangrenta luta de classes, na qual uma estranha memória parece vir à tona. Aqui estão implícitas algumas ruínas, catástrofes morais que evidenciam uma decadência civilizacional.

Apesar de desenvolver composições com fortes componentes contestadores, Rodolfo não estava interessado em lançar mensagens. Mesmo com a presença de textos (que mais tarde seriam abandonados), suas obras são, na maioria, amorais, sem pretensão de exemplaridade e, com frequência, recusam a adesão fácil dos seus espectadores. Ele costumava dizer que seus trabalhos não eram políticos, apenas falavam de política. Talvez essa fosse uma forma comedida de se referir à dimensão política dos seus desenhos. O certo é que, em constante desconfiança com regimes de poder, Rodolfo se recusou a servir como propaganda, renunciando a criar agitprops, seja para qual fosse a ideologia, preferindo manter o seu olhar e a sua arte livres de qualquer etiqueta política.

Ainda que no fundo fosse uma pessoa solitária, Rodolfo não era antissocial como alguns poderiam pensar. Sua introspecção não tinha nada de alienação; pelo contrário, era um espaço vital cheio de movimento e compromisso com o seu tempo. Tenho a impressão de que ele entendia a solidão como algo necessário e intrínseco à sua forma de viver. Uma forma de vida que prezava pelo tempo para si, para a reflexão e para o silêncio. Mesmo recluso, poucas coisas lhe davam tanta alegria como um bom diálogo. E admiro a capacidade que ele tinha de conversar com todo tipo de gente, sempre com a fala sincera e uma sonora gargalhada.

Nas últimas décadas, Rodolfo atravessou algumas transformações. Voltou a expor com um pouco mais de regularidade, chegando a receber um reconhecimento mais declarado tanto da mídia local quanto das gerações mais novas. Suas obras dessa etapa refletem um artista maduro, ainda mais econômico em seus meios, mas sem abandonar as características que o marcaram: a verve inquieta e o traço singular.

Entre os temas recorrentes no trabalho de Rodolfo, a morte foi um deles. Abordar essa questão talvez tenha sido a forma que encontrou para compreender a sua própria finitude. Mesmo assim, o fenômeno do desaparecimento permanece indecifrável. Ao revisitar as páginas do volume de Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline, livro que Rodolfo leu e releu, encontramos o seguinte parágrafo sublinhado pelo artista:

A grande derrota, no fundo, é esquecer, e sobretudo aquilo que fez você morrer, e morrer sem nunca compreender até que ponto os homens são cruéis. Quando estivermos com o pé na cova, nada de bancarmos os espertinhos, nós aqui, mas também nada de esquecer, vamos ter de contar tudo sem mudar uma palavra do que vimos de mais celerado entre os homens e depois calar o bico e depois descer. Isso aí é trabalho suficiente para uma vida inteira. (p. 35)

Rodolfo faleceu de forma abrupta no dia 24 de fevereiro de 2016, aos 64 anos de idade, deixando um imenso legadoartístico. 

 

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