Em janeiro deste ano, o prêmio Pritzker – considerado o mais importante da arquitetura mundial – foi concedido a Alejandro Aravena, primeiro chileno e terceiro latino-americano a ganhar ao longo de 41 edições da honraria. Além de ter realizado uma série de obras públicas e privadas em seu país, o feito de Aravena reconhecido pelo Pritzker foi a construção de mais de 2.500 habitações populares, para algumas das quais aplicou o conceito de “casa incremental”. A ideia é que a população a quem se destinam tais moradias tenha participação ativa no processo, de modo que a casa é entregue “incompleta” e depende da intervenção dos indivíduos que vão habitá-la, de acordo com suas prioridades. É emblemático que o prêmio tenha optado por um projeto arquitetônico de viés social e coletivo, em detrimento da exuberância material e da criação em geral hierarquizada, porque sinaliza sua vontade de dialogar com as problemáticas contemporâneas. Em tempos de devastação ambiental, guerras prolongadas, tensões nos fluxos migratórios, precarização das cidades e desigualdades sociais cada vez mais evidentes, cabe ao arquiteto deste século (também) projetar para modificar os espaços e melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Aravena é responsável ainda pela curadoria da 15ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza – em exposição até o dia 27 deste mês –, cujo tema Notícias do front pretende chamar a atenção do espectador para demandas fundamentais e urgentes, que transbordam os limites arquitetônicos e põem em evidência o caráter multidisciplinar da arquitetura e sua capacidade de agenciar processos que tocam a política, a economia e a ecologia. “Nós gostaríamos de aprender com arquiteturas que, apesar da escassez de meios, intensificam o que está disponível em vez de reclamar sobre o que está faltando. Nós gostaríamos de entender quais ferramentas de projeto são necessárias para subverter as forças que privilegiam o ganho individual sobre o benefício coletivo”, afirmou o chileno, por ocasião da abertura do evento.
Com surpresa, Bruno, Chico e Lula receberam a notícia de que o projeto deles da Escola Novo Mangue – localizada na comunidade do Coque, na Ilha de Joana Bezerra, área central do Recife – havia sido selecionado para compor o pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza, denominado Juntos. A inclusão de O Norte no evento mundial está repleta de simbolismos, na opinião dos três.
“A obra do Coque foi uma das primeiras que realizamos, em 1999, ou seja, éramos jovens recém-saídos da faculdade, sem muita experiência”, comenta Lula. E continua: “Além do mais, foi marcante porque comemoramos a maioridade da oficina em meio a uma participação no maior evento de arquitetura do mundo”. Ainda é quase inevitável associar a bienal a construções grandiosas e grupos consolidados, e a quebra dessa lógica causa um estranhamento positivo. “A gente pensa que a bienal fala de trabalhos excepcionais, e o nosso projeto parecia pequeno, foi realizado na periferia de uma cidade e de um país periférico. Aquilo que parecia ínfimo tinha e ainda tem algo a acrescentar no debate contemporâneo”, acredita Bruno.
ESCOLA NOVO MANGUE
O contexto de construção da escola foi, para dizer o mínimo, conturbado. Se ainda hoje os moradores do Coque sofrem com o estigma da pobreza e da criminalidade, além de a área apresentar um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da Região Metropolitana do Recife, no final da década de 1990 o cenário era pior. Naquele período, a Unicef fez uma pesquisa e concluiu que a comunidade era a mais violenta da cidade. Diante do resultado, resolveu fazer uma doação em dinheiro, em parceria com a rede de TV e rádio de Luxemburgo, para que fosse construído um equipamento de melhoria social, a ser definido pelos próprios moradores. A mediação foi feita pela ONG Centro de Cidadania Umbu-Ganzá, que já atuava na comunidade, com crianças de 7 a 14 anos em situação de evasão escolar. O terreno no qual o projeto se desenvolveu representava um local estratégico para a desova de corpos de jovens assassinados pela guerra do tráfico. “A escola foi construída justamente entre o Rio Capibaribe e o pontilhão do metrô. A comunidade optou por tornar aquele lugar que representava a morte num símbolo de vida”, aponta Chico Rocha. Houve uma seleção fechada, na qual 10 projetos de diferentes escritórios foram apresentados, entre eles o de O Norte, que acabou escolhido.
Lula Marcondes acredita que o diferencial da proposta deles em relação às demais foi a de “dar protagonismo ao rio”. A partir daí, foram muitas discussões para se chegar a um acordo que agradasse a todos os envolvidos. A população tinha demandas próprias, a ONG apresentava propostas e a prefeitura, por ser detentora do terreno e responsável pela gestão futura do local, também se posicionava. Uma das exigências, por exemplo, era de que o equipamento construído apresentasse o mínimo de portas e janelas, para evitar riscos de vandalismo ou arrombamentos, já que foi identificada no entorno a presença de infratores. Os três arquitetos amenizaram essa ausência de aberturas com “rasgos” no teto para se ver o céu.
A sensação de enclausuramento também foi resolvida com paredes perfuradas, por meio de tijolos vazados, como cobogós, para promover ventilação e iluminação naturais. Elementos simples, como o pátio interno, com jardim e abertura para o rio, estimularam ainda o cuidado constante e o reflorestamento da vegetação que margeia o Capibaribe. Em uma equação equilibrada, envolvendo limitações orçamentárias, espaciais e negociações, a equipe de arquitetos conseguiu realizar uma estrutura edificada que segue até hoje cumprindo sua função inicial: agregar crianças e adolescentes a um local que estimulasse cultura e cidadania e fosse “incorporado ao patrimônio urbanístico do Recife”, sublinha Chico.
ARQUITETURA DA CARÊNCIA
A Escola Novo Mangue, e sobretudo seu resgate pela Bienal de Veneza, funcionou como um lembrete aos três amigos e sócios, de algo que eles já sabiam, mas é sempre necessário repetir: o que deve contar é o olhar diferenciado sobre os processos criativos envolvendo a arquitetura, ou, como afirma Bruno Lima, “pequenas ações reverberam e podem ter uma voz muito ampla”. Ele acredita que o projeto apresentado por O Norte está em consonância com boa parte de ações presentes em muitos pavilhões da mostra italiana, que define como retratos de uma “arquitetura da carência”.
E o que seria isso? “Na América Latina, em geral, construímos na carência diariamente, e esse não deve ser um motivo para pararmos. Será, por exemplo, que é o recurso monetário que limita e qualifica o espaço? É possível agregar a técnica, a criatividade, a persistência e o conhecimento humano para vencer a limitação”, pondera.
Para Chico Rocha, o foco do evento mundial e da visão arquitetônica como um todo estão basicamente centrados na ideia de ativismo, em contraponto a uma “função decorativa, de enfeite”. Como, então, definir a arquitetura? Nos anos 1980, após construir o Sesc Pompeia – centro de cultura e lazer localizado em São Paulo –, Lina Bo Bardi respondeu ao questionamento de alguns alunos que visitavam o local: “Arquitetura, para mim, é ver um velhinho ou uma criança com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço de nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva”. Certamente os criadores de O Norte se irmanam com a simplicidade monumental do entendimento de Lina, uma vez que, mais que projetos e formas, a eles interessa, nas palavras de Chico, “um discurso que enfatize o nosso papel dentro da comunidade”.