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Ganhando meu pão

TEXTO José Cláudio

01 de Dezembro de 2015

'Tudo no mesmo lugar pelo menor preço'. Alvenaria, tinta, tijolos e estrutura de ferro (2002)

'Tudo no mesmo lugar pelo menor preço'. Alvenaria, tinta, tijolos e estrutura de ferro (2002)

Imagem Marepe

Peço licença a Moacir dos Anjos, muito sério estudioso das artes, como tem demonstrado nas árduas tarefas que lhe têm sido confiadas, para meter meu bedelho onde não fui chamado, curioso que sou desses assuntos, mais por tempo de serviço, por força do ofício, do que outra qualificação. O título do seu livro Local/Global: Arte em trânsito me chamou atenção antes de mais nada pela oportunidade de aprender alguma coisa sobre o assunto, já que eu havia tratado dele, completamente de oitiva, sem maiores ambições, como na crônica Comer e descomer (Continente, outubro/2015).

Tomei conhecimento do título do livro de Moacir dos Anjos pelo número de set./2015 da mesma Continente aqui vale uma pequena explicação. Perguntei ao amigo pintor Gil Vicente, um dos entrevistados juntamente com Moacir e outros (Artes Visuais/O papel das instituições, Luciana Veras e Mariana Oliveira) como poderia adquirir o Local/Global: Arte em trânsito. Prometeu-me então o amigo trazer-me um exemplar do livro, o que somente ocorreu depois de a minha matéria já ter sido entregue à revista, coisa que faço habitualmente no dia 1º do mês anterior; pretendo eu aqui explicar ter escrito o artiguete Comer e descomer antes de saber da existência do Local/Global: Arte em trânsito, e isso para mostrar que o assunto está no ar e assim as coincidências se sucedem. Aliás já escrevera uma outra crônica, Arte local, que está para sair (Continente, nov./2015).

Talvez fosse oportuno declarar logo os dois temas que mais me interessavam e não posso dizer sejam os assuntos a que o livro de Moacir se dedica: meios de subsistência do artista e a arte engajada; quanto a este, cito aqui para maior compreensão do tema, o extraordinário Arte para quê?/a preocupação social na arte brasileira 1930-1970 de Aracy Amaral. Só por esse livro Aracy deveria estar no mínimo na Academia Brasileira de Letras.

No dia que recebi o livro trazido por Gil, chegou o belo catálogo da exposição Pernambuco Experimental. Museu de Arte do Rio, MAR, 10/dez./2013-30/mar./2014, organizada por Clarissa Diniz, mostra a que compareço, entre outras coisas, com o quadro-letreiro Primeiro a Fome Depois a Lua, óleo sobre eucatex, 82x62cm, 1968. Aliás, nesse quadro eu referia-me à fome do mundo inteiro, às “vítimas da fome” como tem no hino da Internacional, enquanto no Comer e descomer trato da subsistência do artista, do pintor de quadro, do escultor, nos dias atuais.

A crônica Comer e descomer termina assim: “Quando Sócrates perguntou a um menino qualquer na rua onde encontrar os bens necessários à vida, o menino, que se chamava Xenofonte, respondeu sem titubear: no mercado. Sei que mercado hoje pode ser o mundo todo. Dizem que um ricaço na Grécia tinha avião para comprar pão em Paris. Mas mercado de que falou Xenofonte dá para ir a pé. Fica bem ali na esquina. E, decorrência disso, de se viver uma vida local, é o surgimento de uma arte local, sem alarde, sem patrocínio, sem preconceito, sem manifesto”.

A coincidência que eu achei é ter sido ilustração da capa e motivo de comentário no interior do livro Local/Global: Arte em trânsito a obra do baiano Marepe, natural de Santo Antônio de Jesus, no recôncavo, que “transportou um enorme muro de sua cidade (dois metros de altura e seis de extensão) para o prédio da Bienal de São Paulo, situado a quase dois mil quilômetros de distância. Sobre essa parede feita de tijolos e cimento, se destacava, em amarelo e azul, a propaganda de um antigo e conhecido armazém local — Comercial São Luís —, oferecendo ‘tudo no mesmo lugar pelo menor preço’. (...) Sem intenção irônica, o slogan pintado no muro afirma, ademais, o quanto o local está embebido de toda parte no mundo contemporâneo”.

“Tudo no mesmo lugar pelo mesmo preço”: isto é, no mercado, como respondeu Xenofonte, ontem na Atenas de Sócrates ou hoje no Comercial São Luís em Santo Antônio de Jesus.

Outro tema de que pouco se fala é de arte engajada. No meu tempo, arte tinha ideologia. Nem se fala nem se pratica e sendo assim a série de Gil Vicente dos assassinatos é pioneira. Toda arte tem ideologia, mesmo que o artista que a produz não saiba nem queira saber disso. Feliz ou infelizmente fui recrutado pelo Atelier Coletivo de Abelardo da Hora e carrego desde sempre esse compromisso.

Os adeptos da arte pela arte combatiam o menor vestígio de “engajamento” ou “participação”. Quando comecei, em 1952, o Brasil de norte a sul, a intelectualidade brasileira na arte e literatura era de esquerda e boa parte militante do Partido Comunista, embora na clandestinidade, no exílio como Jorge Amado ou na cadeia como Graciliano Ramos. Eu era contra Miró e briguei com um cara na esquina da Sertã, só faltamos ir às tapas, exaltando ele um livro de João Cabral de Melo Neto sobre o pintor. É inimaginável que daquela época para cá, no trajeto de uma vida, o panorama seja totalmente outro, como se todo o acervo riquíssimo tivesse sido soterrado, sem deixar rastro. Éramos contra o formalismo e o cosmopolitismo. Nos causavam horror os alienados, os narcisistas, trotskistas e contrapúnhamos à escola de Paris os muralistas mexicanos.

Quando saiu Arte para quê? de Aracy, 1984, tomei até um susto, da eternidade que fazia que esse assunto não vinha a tona, como se todos se envergonhassem de algum dia ter falado nisso. Talvez fosse preciso hoje explicar aos mais jovens ou já não tão jovens que tipo de arte era essa, mostrar-lhes o informe Zdanov, falar de arte e alienação. Stalin era “o guia genial dos povos”. Eu até hoje sigo um dos seus ensinamentos, qual seja o de pintar o que conheça profundamente; ele disse isso sobre escrever, que se fosse escritor escreveria sobre o que conhecesse profundamente. Como Máximo Gorki em Ganhando meu pão... 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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