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Isaac Asimov: Digno representante da era de ouro da sci-fi

Com o aquecimento desse segmento da literatura, editora investe no relançamento de obras do autor, a exemplo de 'Eu, robô' e da 'Trilogia da fundação'

TEXTO Priscilla Campos

01 de Dezembro de 2014

Isaac Asimov

Isaac Asimov

Foto Divulgação

Duas características constantes, de origens aleatórias, são puro deleite para os fãs de ficção científica: a coerência narrativa tão próxima do cotidiano e a possibilidade do cruzamento de referências entre autores e obras do gênero. No seriado britânico Doctor Who, clássico dosci-fi desde os anos 1960, diversos diálogos e monólogos (estes últimos, sempre presentes na trajetória do personagem principal) oferecem tais desdobramentos ao público. Entre as incontáveis divagações já proferidas pelo “último” Senhor do Tempo, existe uma que elucida com espantosa precisão geek a obra do escritor e bioquímico russo, naturalizado norte-americano, Isaac Asimov. “We are all stories in the end. Just make it a good one”, disse o Doutor para Amelia Pond, uma de suas companheiras de viagem. Desde suas primeiras publicações em revistas científicas, Asimov explora com propriedade a simples afirmação feita pelo décimo Doutor: o futuro e a realidade são apenas histórias; o importante é vivê-las (e contá-las) da melhor forma possível.

Em outubro deste ano, o cientista Arthur Obermayer, amigo do escritor, divulgou um ensaio inédito no qual Asimov disserta sobre a criatividade. De acordo com Obermayer, o texto, escrito em 1959, descreve não só o processo criativo e a natureza das pessoas inventivas, como também explica o tipo de ambiente que pode promover momentos de inspiração. Ainda nos primeiros parágrafos, o escritor constrói um pensamento focado no surgimento de novas teorias e em como as gerações se organizam para formulá-las. Asimov então afirma que, para criar ou descobrir algo novo, não são suficientes apenas pessoas com conhecimentos em campos específicos, “é necessário também que os indivíduos sejam capacitados a fazer conexões entre dois itens que, normalmente, não estariam conectados”. Essa aptidão para soluções com alto teor imaginativo e, muitas vezes, científico, pode ser encontrada em boa parte de sua obra literária. A escrita de Asimov alcança a melhor recepção que uma narrativa de ficção científica pode almejar – leitores confiantes e, ao mesmo tempo, curiosos com o que está por vir.

“A importância de Asimov para a literatura de ficção científica é a mesma de Paul McCartney para o rock. Ele foi um marco. Junto com Artur C. Clarke, foi o principal representante da ‘era dourada’ da FC. Além de ser um excelente criador de histórias, com as tramas extremamente inventivas e deliciosamente surpreendentes, Asimov era um cientista, e adicionava muita veracidade e plausibilidade às suas histórias. A sua influência no universo literário, e além, é gigante. A própria criação das três Leis da Robótica é um exemplo, algo incorporado por diversos outros autores em muitas histórias de robôs”, afirma o publisher e sócio da Aleph, Adriano Fromer.


Imagem: Divulgação

Nos últimos anos, a editora paulista tem ampliado seu catálogo de sci-fi e relançado alguns clássicos do escritor, como a Trilogia dafundação e Cavernas de aço, este último, importante título para compreender as três leis da robótica. O último hit que está de volta às prateleiras é a coletânea de contos Eu, robô, publicada pela primeira vez em 1950.

Na introdução de Cavernas de aço, Asimov relata como surgiu o primeiro texto da compilação, intitulado Robbie. Leitor assíduo de várias revistas sci-fi, o escritor russo confessa que estava à espera de “algo melhor” em relação às novelas de robôs, e encontrou na edição de dezembro de 1938 da Astounding Science Fiction. “Essa edição continha Helen O’Loy, de Lester Del Rey, uma história na qual um robô era retratado de modo compassivo.” E continua: “Quase na mesma época, na edição de janeiro de 1939 da Amazing Stories, Eando Binder retratou um robô simpático em I, robot. (…) Comecei a ter uma vaga sensação de que queria escrever uma história na qual um robô seria retratado afetuosamente”. De início, Robbie foi recusada pelo editor da Astounding, pois estava muito parecida com a narrativa de Lester Del Rey. Outra revista aceitou publicá-la, e, posteriormente, ela foi incluída no livro lançado em 1950. De acordo com Asimov, o editor da Gnome Press, responsável pela primeira tiragem de Eu, robô, não se incomodou com o fato da publicação ter o mesmo nome da história de Eando Binder. “‘Quem se importa?’ disse o editor (embora seja uma versão editada do que ele realmente disse) e, constrangido, eu permiti que ela me persuadisse”, escreve.

Utilizar a primeira história de robôs escrita por Asimov como abertura do livro foi uma ótima escolha para destacar a evolução do processo imaginativo do escritor. Naquele conjunto textual, estava o marco zero “teórico” das tão faladas e discutidas Leis da Robótica: 1) um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano venha a ser ferido; 2) um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei; e 3) um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou com a Segunda Lei.


Imagem: Divulgação

Assim como acontece na Trilogia da fundação, as premissas da Série dos robôs criam um universo que mantém em constante diálogo o real e o simbólico. Asimov desenvolvia um equilíbrio narrativo sem excessos. Suas histórias pareciam ter saído de um esboço atento ao prazer de invenção, sem esquecer-se de referências ao então presente político, científico, privado e cultural. “As boas obras de ficção científica têm uma função muito importante: fazer com que o leitor se distancie do universo em que ele vive para, paradoxalmente, desenvolver um olhar mais crítico e atento ao seu próprio universo”, observa Fromer.

PERSONALIDADES
Uma das particularidades na escrita de Asimov é a composição dos personagens. Seu método certeiro nesse aspecto narrativo pode ser observado na Trilogia da fundação. Nos livros da série, o escritor desenvolve com mestria os personagens que a professora, crítica literária e ensaísta Beth Brait classifica como “agentes da ação” (condutor da ação, oponente e coadjuvante). Três deles merecem destaque: Hari Seldon, Salvor Hardin e Hober Mallow. Asimov não opta por fluxo de consciência ou descrições estéticas detalhadas. A força de seus agentes concentra-se nos diálogos e nos posicionamentos escolhidos por cada um durante a trama. Outro ponto interessante é a ideia de que as relações entre eles avançam em paralelo ao desenvolvimento do enredo. Salvor Hardin não existiria se não fosse a psico-história, ciência que mistura história, matemática e sociologia elaborada por Seldon; Mallow, por sua vez, relembra frases emblemáticas e momentos decisivos na administração de Hardin para decidir quais rumos tomar em termos políticos.

A estrutura tipo “quebra-cabeça” (utilizada em várias obras de ficção científica) é estendida, então, para todos os personagens. Talvez, a diferença entre Asimov e outros autores do gênero seja essa preocupação em encaixar todos os elementos da história em seu “molde” particular. O “caráter inspirativo”, citado por Frommer como uma terceira característica permanente da literatura sci-fi, também pode surgir a partir dos espaços (abstratos e concretos) ocupados pelos indivíduos naquele mundo modificado. “Você ter contato com um futuro que ‘pode vir a acontecer um dia’, por mais absurdo que ele seja, é uma experiência única, e serve como propulsão para a própria criatividade e o poder de imaginação do leitor”, conclui o editor.


Imagem: Divulgação

Isaac Asimov in persona também era um grande personagem. Para além da literatura, o russo esteve envolvido em pesquisas científicas, trabalhos sobre astronomia, química, Shakespeare; além de ter sido membro da Baker Street Irregulars, uma sociedade temática sobre Sherlock Holmes. Querido e respeitado por escritores e produtores cinematográficos de obras sci-fi, Asimov era convidado com frequência para exercer consultoria científica. Isso aconteceu, por exemplo, no primeiro filme Jornada nas estrelas, lançado em 1979. Em 2009, uma cratera em Marte foi batizada de “Asimov”, em homenagem ao célebre literato geek. Sua produção editorial foi massiva. A estimativa é que Asimov tenha escrito ou editado mais de 500 livros. Durante entrevista antológica concedida ao jornalista Bill Moyers, em 1988, o escritor mostrou-se incomodado com a importância que o público dava aos números. “No fim das contas, fico com a impressão de que ninguém liga para o que eu escrevo.”

Hoje, no Brasil, o comportamento dos leitores de sci-fi é diferente. De acordo com Frommer, o gênero de ficção científica está “finalmente transcendendo o nicho”. “A literatura geek passou de uma categoria de ‘leitura excluída’ para a de um produto cultural cool,hype. Não ter lido Isaac Asimov ou Philip K. Dick, hoje em dia, é quase uma heresia literária, não importa muito em qual meio a pessoa está inserida. Acredito que a questão da imersão nos bytes e a ‘tecnodependência’ na qual estamos inseridos também contribui para esse interesse”, aponta.

Se mudanças são observadas no padrão de consumo e receptividade dos leitores, muitas premissas levantadas por Asimov tornaram-se atemporais, permanentes. Ele próprio parece ter definido sua literatura na conversa com Moyers: “A história humana é uma coisa caótica. Pequenas mudanças apresentam grandes resultados em direções imprevisíveis”. 

PRISCILLA CAMPOS, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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