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Páscoa: O legado da Quaresma

Tempo de penitência e restrições alimentares, ciclo católico de 40 dias, iniciado após o Carnaval, vai à mesa em forma de ritos, interditos e receitas

TEXTO Rafael Dias

01 de Abril de 2014

Tela de Juan Junes representa a celebração do encontro de Jesus com os apóstolos

Tela de Juan Junes representa a celebração do encontro de Jesus com os apóstolos

Imagem Reprodução

Até a madrugada do próximo dia 20 deste mês, quando todo cristão devotado encerra, com a vigília pascal, a celebração da ressurreição de Cristo, os dias resumem-se à privação e entrega espiritual. Hábito carnal, o prazer de comer é um dos que ficam limitados nessa época, algo que só os hereges o fazem, sem culpa. Assim tem sido, até hoje, o costume da Quaresma, que indica meditação, jejum, parcimônia ao falar e outros tipos de penitência a todos os católicos, até o Domingo da Páscoa.

Historicamente, desde a chegada dos jesuítas ao Brasil, ainda no século 16, índios, negros e até judeus, os chamados cristãos-novos, tiveram de seguir a norma da Igreja sob o pretexto de uma única religião adotada na colônia. Até 1891, ano da primeira constituição da república brasileira que instituiu o estado laico, o catolicismo aparece como o “cimento da nossa unidade”, como indicou o sociólogo Gilberto Freyre.

Na prática, os brasileiros adaptaram o ciclo quaresmal à sua moda. Em Pernambuco, por exemplo, a obrigação de se comer somente peixe às quartas e sextas-feiras ganhou a companhia de acepipes à mesa. Bredo, quibebe e o molho de coco compõem o cardápio de receitas litúrgicas, quase que exclusivamente nesse período. Com uma peculiaridade: nasceram pelas mãos de negros na cozinha da casa-grande. Hoje, não há quem se furte, mesmo um não praticante religioso, a uma peixada ao molho de coco na Sexta da Paixão. O rito tornou-se um hábito cultural.

“Os jesuítas catequizaram os índios nos aldeamentos. Mas, com os negros, foi diferente. Força de trabalho inicialmente dos engenhos de açúcar, a educação religiosa deles era confiada aos capelães, que nem sempre fizeram seu dever”, indica o antropólogo e professor do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE Bartholomeu Figueirôa. Segundo ele, a participação dos negros na renúncia da Quaresma é um aspecto ainda não suficientemente estudado pela História. “Suponho que aos negros não era permitida a penitência quaresmal, porque já viviam sob a penitência dos senhores, pois comiam sobras. Eles precisavam comer em grandes quantidades o que lhes restava para poderem trabalhar na lavoura, enquanto as negras faziam o serviço de limpeza e de cozinha”, explica.

No livro História da vida privada no Brasil – cotidiano e vida privada na América portuguesa, a professora de História da Unicamp Leila Mezan Algranti enfatiza que coube às mulheres índias, em virtude da falta de mulheres brancas no começo da colonização, ensinar a “socar o milho e a preparar a mandioca”. No entanto, séculos mais tarde, as portuguesas contariam com as negras como aliadas na confecção de receitas lusitanas, ajudando a moldar as variadas influências, mesmo na escassa dieta quaresmal.


Interdição à carne vermelha na Quaresma alça o peixe a prato principal do período.
Foto: Divulgação

O uso do bredo, por exemplo, está cercado de conjeturas. Planta suspostamente cultivada desde os povos maias, é encontrada em qualquer solo das Américas. Durante a Semana Santa, figura como guarnição. Teria sido introduzido à mesa pelas portuguesas da casa-grande, à falta de folhas europeias. Geralmente, era refogado ao molho de coco, por sua vez, tempero africano.

“Essas decisões sobre o que entrava à mesa não foram totalmente descritas. Existem múltiplas contribuições no processo histórico”, pontua o jornalista e pesquisador em gastronomia Bruno Albertim. Autor de um levantamento sobre os acepipes eminentemente nordestinos, inclusive os quaresmais, no livro Recife – guia prático, histórico e sentimental da cozinha de tradição, Albertim defende que a voz portuguesa ditou os cardápios nas casas-grandes, mas que a mão africana “temperou e retemperou” os pratos.

Outra contribuição afro-brasileira é o quibebe, purê de jerimum (ou abóbora, como é conhecido no Sudeste) que foi introduzido pela predileção de legumes pelos escravos. Os portugueses, por sua vez, contribuíram com as técnicas de cocção. No caso, os ensopados de peixe, receitas advindas das quaresmas além-mar. Mas, no lugar da açorda – que consistia em engrossar o caldo com base em nacos de pão –, fez-se uso da farinha de mandioca oriunda dos índios. Assim, surge o pirão, a mais seminal das receitas nordestinas.

Criados sob a resistência à fome, os pratos quaresmais respondem à demanda por ingredientes locais. Prosaicos, cumprem recomendações da Igreja. A presença do bacalhau contradiz o preceito religioso do abandono do luxo, por ter se tornado um alimento de custo elevado. “O vinho, se não for tomado como bebida de alegria, fazendo parte apenas da refeição, pode”, observa o vigário-geral da Arquidiocese de Olinda e Recife, José Albérico de Bezerra. Segundo o pároco, três práticas são repassadas pela Igreja aos fiéis: a oração, o jejum e a esmola.

O NÚMERO 40
De acordo com o padre jesuíta José Raimundo de Melo, formado em Teologia Litúrgica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), os cânones 1249 a 1253, do Código de Direito Canônico, que são aqueles que tratam dos dias de abstinência dos cristãos, esclarecem que todo fiel, a seu modo, deve fazer penitência. “Mas, para que haja certa unidade nessa prática, são indicados dias penitenciais em que se deve intensificar a oração, as obras de piedade e caridade, a renúncia de si próprios, o jejum e a abstinência”, afirma Melo.

Inspirada na Páscoa judaica, a Páscoa cristã passa a ser o principal momento do calendário cristão, além de, historicamente, ser a primeira festa desse grupo religioso. A Quaresma corresponde, assim, ao período de meditação e preparação espiritual dos fiéis, antes da grande celebração. Desde o Concílio de Niceia, o primeiro ecumênico da Igreja, celebrado no ano 325, já se falava em um período de preparação de 40 dias, a quadragesima paschae (em latim).


Cristã Maria Souza defende que “o jejum faz bem à alma”. Foto: Leo Caldas

O número 40 refere-se a vários episódios bíblicos, todos em torno de experiências de preparação: Jesus jejuou 40 dias no deserto (nos livros de Mateus e Lucas); Moisés jejuou 40 dias no Sinai (Êxodos); Elias caminhou 40 dias e 40 noites até a montanha de Deus (I Reis); o povo eleito peregrinou 40 anos pelo deserto etc. O jejum é anterior à Quaresma, pois desde o século 2 os cristãos se preparavam para a festa da Páscoa ao jejuarem por dois dias. No século 3, tal prática se estende a toda a semana.

De início, a Quaresma começava no sexto domingo antes da Páscoa e durava até a Quinta-Feira Santa, dia em que, em Roma, os penitentes eram reconciliados e readmitidos no seio da comunidade cristã. Os primeiros cristãos, porém, desejavam cumprir exatamente 40 dias de jejum em preparação à Páscoa. E, como não se pode jejuar aos domingos, porque domingo é o alegre dia da Ressurreição de Cristo, tiveram de recuar o início da Quaresma para a quarta-feira anterior ao sexto domingo, que passa a se chama Quarta-Feira de Cinzas e, depois, alongar a Quaresma até o Sábado Santo. Dessa maneira, conseguiram reservar precisamente 40 dias para os exercícios de preparação à Páscoa.

Nem todos são obrigados a jejuar. Ainda segundo o Código Canônico, a abstinência começa aos 14 anos e vai até o fim da vida, enquanto o jejum deve ser feito a partir dos 18 anos completos e vai até os 60 anos começados. Doentes são desobrigados da prática. Praticante do jejum há quase 60 anos, a aposentada Maria Souza Pereira, 79 anos, abstém-se de carne durante a Quaresma, mas, em função da idade avançada, não pode fazer o jejum à risca. “Faço jejum ainda, mas de maneira mais suave, por causa dos remédios que tomo. O que faço é comer menos. Jejum é uma coisa boa para a alma”, justifica a devota, que frequenta a Paróquia de Nossa Senhora da Boa Viagem.

O jejum e a abstinência de carne e outros alimentos, como entendemos hoje, passaram a ser praticados, com fervor, às quartas e sextas-feiras da Quaresma. Rita de Cássia Barbosa, pesquisadora e historiadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), pontua que a privação quaresmal também está associada historicamente a outros fatores, como a época da colheita nas lavouras e o calendário adotados por cada povo: “Tabus e abstinências alimentares ocorrem entre os mais diferentes povos e culturas, nos mais variados tempos históricos. Em muitos casos, estão relacionados à religião, mas também ocorrem por ocasião de rituais de passagens, quando um determinado sujeito se prepara para passar de um estado a outro”. 

RAFAEL DIAS, jornalista e mestre em Comunicação Social pela UFPE.

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