Arquivo

Monga

TEXTO Kleber Mendonça Filho

01 de Outubro de 2013

Diante de uma máscara, reagimos entre a graça, o estranhamento e o terror

Diante de uma máscara, reagimos entre a graça, o estranhamento e o terror

Foto Reprodução

Proibiram máscaras nas ruas? A verdadeira máscara não esconde, ela revela. A medida, que veio do Governo do Rio de Janeiro e foi imitada Brasil afora, na forma de uma tentativa de lei pós-manifestações, chega como uma intervenção política sem imaginação. Essa proibição é curiosa, pois incide num desdobramento da arte, aproximando-a da censura simples. Parece tanto desconhecer a democracia na sociedade como mostra que não há uma compreensão real do significado da máscara como expressão artística.

A máscara como adereço afixado ao rosto inspira uma quantidade grande de tensões. Ao encontrar alguém mascarado, parece que o cérebro emite sinais de tensão e alerta, informando-nos que onde deveria estar um rosto há, agora, a simulação borrada de uma cabeça.

Esse espaço normalmente reservado para a identificação do outro está coberto e estilizado, e a mensagem que a máscara nos passa é confusa. Nessa confusão, há espaço para qualquer coisa entre o erotismo, a graça e o terror.

Foi mais ou menos aí que achei que deveria contar a história recente, totalmente fabricada, de Daniel, amigo meu do cinema, parado por uma blitz da Lei Seca na Rua São Clemente, em Botafogo, Rio de Janeiro, central brasileira da CPI das máscaras.

Daniel estava voltando para o set de filmagem de um curta-metragem, ele vestido de gorila. O curta, que se chama Parque de diversão, é uma produção feita entre amigos através do sistema de crowdfunding.

Daniel dirigia o carro emprestado do diretor do filme, um Uno 2002. Ele tinha ido em casa, no Largo do Machado, abrir a porta para amigos estrangeiros que haviam ficado sem chave. No assento do passageiro, Martha, amiga de Daniel e também atriz do filme, vestida de macaca. Tanto Daniel como Martha não usavam as máscaras.

Daniel foi abordado pelo policial militar na blitz. Assim que parou o carro e desceu o vidro: “Boa-noite, cidadão. Carteira de habilitação e documento do veículo”. Daniel apresentou os dois documentos.

O policial, branco brasileiro, hálito de tabaco e boné azul da corporação, comandou: “O cidadão pode sair do veículo e me acompanhar até a tenda, por favor”. Daniel alertou que ele estava fantasiado de macaco, “eu estou fazendo um filme, as pessoas estão me esperando...”.

O policial pediu para ele repetir, pois disse não entender. “Eu estou no meio de uma filmagem, estou vestido de macaco...”. O policial fardado, provavelmente um sargento, repetiu como se fosse a primeira vez, “Positivo, o cidadão pode sair do veículo e me acompanhar até a tenda, por favor”.

Daniel olhou para Martha, que começou a rir, e desejou-lhe boa sorte. “Fica aí”, disse ele, “Fico mesmo”, respondeu ela. Antes de ele abrir a porta do Uno, Martha perguntou se Daniel havia bebido alguma coisa. Ele respondeu: “Por sorte, não, só maconha ontem. Será que eles detectam?”. “Detectam nada”, disse Martha.

Fora do carro, Daniel vestido de La Ursa começou a chamar a atenção dos outros motoristas ali parados, à espera do teste ou de táxis, pois foram pegos e seus carros apreendidos. Não é boa a cara de quem precisa abandonar seu carro numa blitz. Daniel foi a atração da blitz naquele instante, funcionários do Detran riram, policiais menos, motoristas enraivecidos pela blitz quiseram rir, sem sucesso.

Aproximando-se da área reservada ao bafômetro, os plantonistas do Detran se animaram, pois o macaco seria claramente uma apreensão. Pegar alguém na blitz é infinitamente mais dramático e empolgante do que ver aquela pessoa suspeita revelar-se uma rotineira liberação.

“Agora tem baile de carnaval em setembro, é?”, disse a senhora sentada na van sob luzes fluorescentes internas, responsável por administrar o bafômetro. “Eu estou no meio de uma filmagem no Jardim Botânico.” A mulher perguntou: “É na Globo? Sopre aqui até acender a luz”.

Daniel soprou.

Enquanto Daniel soprava, ele esperava a luz verde acender. Ela acendeu. “Tudo certo. Pode pegar seus documentos com o colega na outra mesa”, foi a dispensa concedida pela funcionária do Detran. Os outros funcionários começaram a aplaudir o macaco sóbrio. Isso mexeu com o ego de Daniel, um ator, e ele olhou natural e bem humoradamente para o Uno para ver se Martha estava vendo. Martha parecia estar às gargalhadas dentro do carro.

Voltando para o Uno branco, estacionado em posição perpendicular à pista de mão única, Daniel foi acompanhado pelo policial que o recebeu ao parar o carro. Daniel-macaco abriu a porta e entrou, o policial ajudou a bater a porta, um pouco como a ajuda inútil de um flanelinha que nos auxilia a trancar a porta. Escorando-se na janela, o policial indagou: “Tem as máscaras?”

“Como?”, surpreendeu-se Daniel. E Martha. Eles se olharam. “Estão aqui”, disse Daniel, que ficou olhando para o policial enquanto girava a ignição. “O cidadão pode colocar a máscara, por favor? E a pessoa no passageiro também?”

“Eu não ‘tou’ entendo, meu amigo”. O policial retrucou, “Cidadão, eu sou tenente da PM e estou pedindo para o cidadão e a sua acompanhante colocarem as máscaras”.

As cabeças de macaco feitas de látex e cabelo grosso preto esvoaçado estavam murchas e sem vida no colo de Martha, que olha para Daniel apreensiva.

“O senhor quer que a gente coloque as máscaras, é isso?”, pergunta Daniel, já com o motor ligado. “Sim, só isso, e peço que o cidadão desligue o motor”.

Daniel desliga o motor e olha para Martha. “Me passa a minha…”. Martha procura a dele, diferente da dela por não ter batom vermelho no beiço avantajado de macaco. “Essa é a tua”. Daniel veste a máscara, Martha veste a dela, dois macacos dentro de um Uno.

O policial saca seu celular, enquadra o casal dentro do carro e tira uma foto com flash à altura da janela. FLASH e imediatamente muda o tom. “Vou dar ordem de prisão para os dois. Podem sair do carro.”

Os dois macacos, sem expressão facial visível, permanecem imóveis, até que se olham. O ar de perplexidade perfura o látex, até que o sargento da PM carioca completa:

“Estou brincando. A foto é para meu Facebook, tenham uma boa-noite”. 

KLEBER MENDONÇA FILHO, crítico e cineasta.

Publicidade

veja também

Pop: Como uma onda no mar

Iconografia do papel-moeda brasileiro

Aloisio Magalhães: Vida dedicada à visualidade