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Wellington Lima: Woodstock também foi aqui, sob ditadura

No livro de memórias 'O show que não aconteceu', produtor musical registra peripécias contra a repressão, em que se destacam os lendários festivais de verão em Fazenda Nova

TEXTO Gilson Oliveira

01 de Junho de 2013

Wellington Lima

Wellington Lima

Foto Roberto Ferreira

"Se Chico Buarque botar os pés aqui, será preso!" A frase, dita pelo comandante do grupo de policiais que o havia detido, naquele 28 de novembro de 1974, fez o produtor musical Wellington Lima sentir na própria pele que os “anos de chumbo” tinham, realmente, desabado sobre a cultura brasileira, sobretudo no lombo dos que teimavam em transformar as manifestações artísticas em arma contra o obscurantismo instalado pelo golpe militar. Por isso, também estavam “convidados” a não darem o ar da graça em Pernambuco, sob pena de ficarem hospedados numa cadeia, Milton Nascimento, Nara Leão, Elizeth Cardoso, Paulinho da Viola, o grupo Época de Ouro e Jacob do Bandolim.

O show de Chico, Tempo e contratempo, já vinha, num inevitável trocadilho, há muito tempo sofrendo contratempo. Tanto na temporada no Teatro Glória como na realizada no Teatro Casagrande, ambos no Rio de Janeiro, as apresentações contaram com a participação de um grupo nem um pouco afinado com as músicas do espetáculo, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O show de Chico em Pernambuco faria parte de um único evento, o II Festival de Verão de Nova Jerusalém, programado para iniciar-se na tarde de 30 de novembro de 1974 e se estender até a manhã do dia seguinte, em Fazenda Nova, distrito de Brejo da Madre de Deus, Agreste do estado.

À época, a localidade, para a qual migraram profissionais oriundos do Teatro Popular do Nordeste (TPN) e do Movimento de Cultura Popular (MCP), vivia intenso fluxo cultural, abrigando um “laboratório de ideias”, que concorreria para fortalecer, modernizar e profissionalizar a arte pernambucana. O próprio Festival de Verão – inspirado no de Woodstock – era exemplo de uma visão que, ao mesmo tempo em que preservava, através de vários projetos, os valores culturais da região, sintonizava-se com os novos tempos, inclusive tecnologicamente. Só que, naquele período, os militares não simpatizavam com a capacidade que os artistas da MPB tinham de atrair multidões e de transmitir ao público “mensagens subversivas”.

Esses e outros fatos, informações e reflexões estão no livro O show que não aconteceu, que Wellington Lima está escrevendo, em parceria com o jornalista Pedro Henrique de Melo. Vivendo atualmente numa espécie de comissão pessoal da verdade, o produtor está mergulhado em centenas de fotos, documentos e anotações reunidos ao longo dos anos e que retratam “um tempo, página infeliz da nossa história”, como escreveu Chico Buarque.

Um tempo em que os órgãos de repressão pareciam atuar inspirados numa frase de Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler (“Não consigo ouvir a palavra ‘cultura’ sem querer levar a mão ao revólver”), disparando, principalmente, contra os autores e intérpretes da “canção de protesto”, a qual, na visão dos agentes do regime, era produzida por “comunistas”, cujas letras obedeciam a táticas de “guerra psicológica” contra o governo.


Wellington produziu A noite nordestina, dentro do festival Coulerus Brésil,
realizado na França, em 1986. Foto:Reprodução

A preocupação dos militares aumentou com a explosão dos festivais de música, como os da TV Record, iniciados em 1966, ano em que também se intensificou a agitação estudantil. A grande questão é que esses eventos, além de superlotar auditórios e atingir um público televisivo de milhões de pessoas, estimulavam debates políticos. Outro calo da ditadura tornaram-se os circuitos universitários de música, porque, conforme os órgãos de investigação, era junto aos estudantes que as forças subversivas vinham reforçando o recrutamento para a luta armada.

Relatório produzido à época pelo exército, e hoje disponível na internet, chega a apontar a TV Record como “foco de ação psicológica sobre o público, desenvolvida por um grupo de cantores e compositores de orientação filo-comunista (sic)”. Entre os “simpatizantes do comunismo”, listados nesse e noutros relatórios – feitos por agentes infiltrados entre o público –, figuram Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Vinicius de Moraes, Milton Nascimento e Geraldo Vandré.

Se a prisão de Wellington, no Recife, teve seu lado dramático, a do jornalista e idealizador de Nova Jerusalém, Plínio Pacheco – também em 28 de novembro de 1974 –, adquiriu contornos de filme de guerra hollywoodiano. Nesse dia, o teatro, em que Plínio se encontrava e é conhecido por exibir o “maior espetáculo a céu aberto do mundo”, a Paixão de Cristo, tornou-se palco de um evento também de grandes proporções, com soldados do exército invadindo o local com um helicóptero e tanques ocupando as entradas e saídas de Fazenda Nova.

Isso porque o lugar era visto como uma “célula comunista”, por abrigar figuras que haviam atuado no TPN – como o próprio Wellington, Hermilo Borba Filho, Paulo de Castro, Jones Melo, Germano Haiut e Rubens Teixeira – e vários artistas direta ou indiretamente ligados ao MCP e suas teses de valorização da cultura regional e da arte como instrumento de politização e libertárias experimentações. A exemplo de Alceu Valença, do ator José Pimentel e do pintor José Cláudio, que, uns mais, outros menos, participavam de um grupo de trabalho voltado para a criação e execução de projetos que fizeram do lugar um polo de produção cultural, concorrendo para a interiorização de importantes ações na área artística.


Plínio Pacheco (E) e Hermilo Borba Filho (D), nos anos 1970, quando desenvolveram os primeiros projetos culturais para Nova Jerusalém. Foto: Reprodução

As implicações do regime com as subversões estéticas aumentaram com a realização, em 1973, do I Festival de Verão de Nova Jerusalém, do qual participaram “figuras suspeitas”, como Vinicius e Toquinho, Gal Costa, Luiz Melodia e Jorge Mautner. Pelo próprio visual, as atrações locais também pareciam não rezar pela cartilha do regime. Caso de Lula Côrtes, Zé Ramalho, Marconi Notaro (lançando o psicodélico No sub-reino dos metazoários) e da banda Tamarineira Village (futura Ave Sangria). Para piorar, circulou o boato de que alguém teria jogado ácido em um dos tonéis com água usados para saciar a sede do público.

O aparato militar mobilizado para prender Plínio teve o efeito de uma potente bomba, matando o importante ciclo cultural, econômico e social vivido por Fazenda Nova. No caso de Wellington, terminou promovendo a nacionalização, e até internacionalização, de suas atividades. Foi quando começou a trabalhar com o empresário Benil Santos, cujo cast era formado por algumas das maiores estrelas da MPB. Aos nomes anteriormente citados, acrescentem-se os de Jorge Ben, Maria Bethânia, Gonzaguinha, Ivan Lins, Tim Maia, Clara Nunes, João Nogueira, Martinho da Vila e MPB-4. Na esfera internacional, uma das maiores produções foi A noite nordestina, em 1986, na França, dentro de festival Couleurs Brésil. Uma das atrações, Luiz Gonzaga, conheceu no evento a jornalista Dominique Dreyfus, que se tornaria uma de suas principais biógrafas.

Para o sucesso nessa nova fase, colaboraram as vivências em Nova Jerusalém e no TPN, no qual o produtor ingressou no início dos anos 1960, depois de atuar como ator no teatro da Associação de Imprensa de Pernambuco (AIP) e na TV Jornal do Commercio. No TPN, casa liderada por Hermilo Borba Filho, ele enriqueceu suas aptidões e, além de ator, foi iluminador e contrarregra. Com o tempo, o teatro tornou-se também um polo musical e o futuro produtor Wellington Lima(espécie de faz-tudo na área de eventos e gravações) passou a trabalhar em shows de vários artistas.

A partir dessas experiências, a música aumentou o volume na vida dele, que, antes de ir para Nova Jerusalém, foi um dos que tentaram salvar o TPN, o qual, a partir da edição do AI-5, passou a sofrer sistemática perseguição do regime e terminou fechando as portas em 1970. Wellington voltaria a sentir as garras da repressão em 1981, quando produziu o show 1º Maio, no Rio de Janeiro. Foi durante o evento que aconteceu o famoso “Atentado do Rio Centro”, em que militares da ala mais radical do regime tentaram jogar uma bomba no local, a qual terminou explodindo antes, nos seus portadores.

Atualmente produzindo, em parceria com Paulo de Castro, a série Clássicos da MPB, através da qual trouxe recentemente para Pernambuco shows de Milton Nascimento e Erasmo Carlos, Wellington mantém-se uma testemunha dos ciclos históricos da música brasileira. Se um dia quiser escrever exclusivamente sobre esse tema, um dos títulos do livro, parodiando uma obra do escritor e político Paulo Cavalcanti, bem que poderia ser: MPB, o caso eu conto como o caso foi

GILSON OLIVEIRA, jornalista e revisor do suplemento Pernambuco.

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