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Séries: O status do cinema dentro da televisão

Com a crise na indústria cinematográfica, canais por assinatura investem na ficção televisiva, com tratamento antes exclusivo das telonas e orçamentos equiparados aos de arrasa-quarteirões

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01 de Agosto de 2012

'Game of thrones' vem sendo filmada em cenários naturais e conta com numeroso elenco

'Game of thrones' vem sendo filmada em cenários naturais e conta com numeroso elenco

Foto Divulgação

Em 25 de maio de 1977, um filme sobre cavaleiros espaciais, alienígenas e vilões robóticos chegava aos cinemas com enorme sucesso. Em 22 de setembro de 2004, um programa sobre um acidente aéreo que deixou os sobreviventes perdidos numa ilha misteriosa causou muita repercussão na sua estreia. Se você acompanha cultura pop, notou facilmente que estamos falando de Star wars e Lost. Apesar dos 27 anos que separam os dois produtos, há um importante valor que os une: ambos ultrapassaram a barreira dos 10 milhões de dólares de orçamento. Em Star Wars, foram 11 milhões; no caso de Lost, o episódio piloto custou entre 10 e 14 milhões.

Qual a importância desse dado, afinal? Em décadas anteriores, seria inimaginável um executivo aprovar um episódio de seriado com o mesmo orçamento de um dos filmes mais rentáveis da história. Mas, ao piloto de Lost (2004-2010), seguiram-se outros como Fringe (estreou em 2008), Game of thrones (estreou em 2011) e Pan Am (2011-2012), todos com capítulos iniciais de mais de 5 milhões de dólares. O atual recordista é Boardwalk empire, cuja estreia, em 2010, custou 18 milhões de dólares.

Todo esse investimento vem sendo revertido positivamente para o mercado de entretenimento. Há muito fala-se que estamos vivenciando uma espécie de vanguarda da ficção televisiva, com séries, minisséries e filmes para a TV tratados com o mesmo respeito que outrora foi exclusividade do cinema. Esse cuidado na concepção, mais os citados orçamentos inflados, estão gerando resultados palpáveis, como alta audiência, anunciantes, críticas generosas e prêmios da indústria, fazendo a roda girar mais e melhor a cada ano.

Talvez, a mudança mais significativa dos últimos 25 anos tenha ocorrido em termos de narrativa. Até o final dos anos 1980, as séries de um modo geral seguiam modelos específicos de ambientação e narrativa, com gêneros fáceis de identificar: as clássicas sitcoms, as policiais, de ação, de ficção etc. Porém, Twin Peaks (1990-1991) quebrou paradigmas não apenas por ser coassinada por um importante autor de cinema – David Lynch, ao lado do roteirista Mark Frost –, mas também por trazer uma espécie de novela mórbida com muitos elementos “difíceis” para o público, como um cadáver envolto em plástico, uma entidade maligna que “possui” humanos, pesadelos e diversos personagens com comportamentos fora do convencional.


Episódio piloto de Lost custou entre US$ 10 e 14 milhões. Foto: Divulgação

Não que não tivessem havido outros seriados inovadores antes de Twin Peaks. I love Lucy (1951-1957), Além da imaginação (1959–1964), Jornada nas estrelas (1966–1969) e As Panteras (1976-1981) são só alguns casos das décadas anteriores que merecem menção. Mas o programa de Lynch e Frost foi o embrião de uma pequena revolução na TV que repercute e gera frutos até hoje. A partir dali, o público estaria pronto para receber, além das histórias de sempre, experimentos mais radicais na pequena tela.

Pouco depois veio Arquivo X (1993-2001), que era ao mesmo tempo policial, ficção científica e romance, com influências díspares como as séries A Gata e o Rato, Além da imaginação e Kolchak e os Demônios da noite; além da própria Twin Peaks e de filmes como O silêncio dos inocentes e Todos os homens do presidente. Paralelo ao sucesso de Arquivo X , houve o êxito dos seriados médicos E.R. (Plantão médico no Brasil) e de dois dos maiores expoentes das sitcoms, Friends e Seinfeld.

SEM FRONTEIRAS
A essa altura, as fronteiras entre a TV e a “sétima arte” estavam cada vez mais borradas. A Amblin, produtora de Steven Spielberg – que já havia se aventurado na televisão com os desenhos animados Tiny Toons e Animaniacs –, era uma das responsáveis por Plantão médico. Os escritores William Gibson e Stephen King chegaram a escrever episódios de Arquivo X. E, seguindo os passos de Robin Williams e Bruce Willis, que também começaram nos seriados, Jennifer Aniston (Friends) e George Clooney (Plantão médico) esticaram seu sucesso na sétima arte.


Aclamado diretor David Lynch assinou a série Twin Peaks ao lado de Mark Frost.
Foto: Divulgação

Veio o terceiro milênio e, após a queda das Torres Gêmeas, uma série captou o espírito da época como nenhuma outra produção do cinema conseguira. Estreando dois meses depois do ataque, 24 horas (2001-2010) abordou a tensão geopolítica da era George W. Bush, tendo como protagonista um herói torturante e torturador, Jack Bauer (Kiefer Sutherland, outro astro do cinema que se deu melhor na TV) e utilizando-se do recurso alucinante da história contada em “tempo real”, com cada episódio representando uma das 24 horas de um dia em que os Estados Unidos enfrentam sucessivas ameaças terroristas.

A colheita televisiva dos últimos anos rendeu fenômenos de público e/ou de crítica como 24 horas, Lost, Two and a half men (2003, ainda no ar), Desperate housewives (2004-2012), The Sopranos (1999-2007) e House (2004-2012) até chegarmos na safra atual, de The Big Bang Theory (que estreou em 2007), The walking dead (2010), Mad men (2007) e Game of thrones. Também transformou alguns de seus “faz-tudo” – sujeitos que acumulam funções de diretor, roteirista e produtor executivo – como J. J. Abrams (Lost, Alias, Fringe) e Chuck Lorre (Two and a half men, The Big Bang Theory) nos nomes mais badalados do entretenimento audiovisual.

Enquanto isso, o cinema viu a derrocada do chamado star system, no qual astros como Tom Cruise eram chamarizes de público e ganhavam salários astronômicos. Na tela grande, basicamente apenas os gêneros de ação e fantasia têm rendido dividendos, graças aos efeitos digitais. Vários dos grandes criadores e astros do meio cinematográfico – de Martin Scorsese e Frank Darabont a Al Pacino e Kate Winslet – estão cada vez mais aderindo às possibilidades comerciais e estéticas das narrativas da TV.


The walking dead foi onerosa por demandar muitos efeitos especiais. Foto: Divulgação

OUSADIA
The walking dead e Game of thrones são casos singulares dessa nova era das “super-séries”. Ambas são adaptações de histórias que repercutiram em mídias fora do audiovisual. A primeira é uma história em quadrinhos de Robert Kirkman; a segunda veio de uma série de livros de George R. R. Martin. Ambas possuem temática fantástica, o que exige produção onerosa e repleta de efeitos especiais. As duas séries trouxeram seus criadores no cargo de produtores executivos, o que, na prática, significa que eles têm voz ativa em decisões importantes no desenvolvimento dos programas.

Os canais a cabo norte-americanos AMC e HBO, que produzem The walking dead e Game of thrones respectivamente, são considerados pela crítica os líderes dessa revolução televisiva ao apostar pesado em histórias com temática adulta aliada à produção de alta qualidade. Vão na contramão das emissoras rivais ao investir em temporadas anuais menores, de 10 a 13 episódios, enquanto os demais seriados ficam na média dos 23 episódios por ano. A HBO tem no currículo sucessos variados como Sex and the city, The Sopranos (Família Soprano), Roma e Boardwalk empire, enquanto a AMC é a dona de Mad men e Breaking bad.

Outro ponto importante das recentes levas de seriados é a utilização da continuidade de episódios como elemento de atração. Nos anos 1960, nossos pais e avós se divertiam com Jeannie é um gênio e A Feiticeira, sem se preocuparem com o que haviam assistido nas semanas anteriores ou o que aconteceria nas posteriores, pois cada episódio era pensado isoladamente, como microfilmes com começo, meio e fim dentro daquele universo ficcional. Já quem acompanhou Lost desde o começo percebeu que cada cena e cada detalhe era um pedacinho de um quebra-cabeça maior que formaria uma grande história aos poucos, aumentando o suspense e exigindo bastante da memória do espectador.


Piloto do seriado Boardwalk Empire foi dirigido pelo cultuado diretor Martin Scorcese.
Foto: Divulgação

Game of thrones divide sua narrativa por núcleos, focando nas castas dos reinos que estão em diversos pontos de um reino central. A variedade de personagens é imensa – uma lista na Wikipedia cita mais de 170 nomes – e a importância destes varia conforme o andar da trama. Por exemplo, após a morte do então protagonista, Ned Stark, o filho Robb, que até então mal aparecia na série, passa a conduzir o núcleo Stark e a batalha destes contra os Lannisters, que atualmente ocupam o disputado trono de Westeros. O anão Tyrion, que era um coadjuvante divertido na primeira temporada, ganhou mais destaque após assumir o posto de “Mão do Rei” (uma espécie de primeiro-ministro) e também após o seu intérprete, Peter Dinklage, ganhar o Emmy e o Globo de Ouro pelo papel.

As séries para a TV a cabo dos EUA também contam com maior liberdade para filmar cenas e temas que poderiam desagradar públicos mais sensíveis. Game of thrones abusa da nudez feminina e das cenas de decapitações, além de mostrar um incesto entre irmãos já no capítulo inicial. Boardwalk empire exibiu incesto de forma mais explícita, com mãe e filho mantendo relações sexuais na segunda temporada, encerrada neste ano. E séries como Breaking bad e Weeds mostram traficantes de metanfetamina e maconha na condição de protagonistas.

MÃO DUPLA
A simbiose entre cinema e TV também progride. Temos cineastas como Martin Scorsese dirigindo o piloto de Boardwalk empire, Frank Darabont (Um sonho de liberdade) como produtor em The walking dead e o veterano Steven Spielberg emprestando seu nome a uma infinidade de séries e minisséries recentes, como Band of brothers (2001), Taken (2002), Terra nova (2011) e Falling skies (estreou em 2011). Os atores, alguns com Oscar e Globo de Ouro no currículo, estão igualmente migrando: Steve Buscemi estrela Boardwalk empire, Kate Winslet protagonizou Mildred Pierce (2011), Meryl Streep e Al Pacino estiveram em Angels in America (2003), e Kathy Bates participou de The office (que estreou em 2005) e Harry’s law (2011-2012).


A série Madmen tornou-se sucesso da emissora AMC na concorrência contra a HBO.
Foto: Divulgação

Na mão inversa, diretores e roteiristas da TV também estão galgando posições no cinema. J. J. Abrams dirigiu o terceiro filme Missão impossível (2006) e não parou mais: produziu o terror Cloverfield (2008), dirigiu o novo Star Trek (2009) e o suspense juvenil Super 8 (2011). James Wong, roteirista de diversos episódios de Arquivo X, nos anos 1990, dirigiu dois filmes da cinessérie Premonição (2000 e 2006) e Dragonball evolution (2009), adaptação do famoso mangá.

E há ainda os criadores da TV que circulam há anos em produções diversas, tornando-se verdadeiros operários do meio. David Nutter já dirigiu tantos episódios-piloto – como os de Supernatural, Smallville, Millennium e Without a trace – que ficou conhecido como o “pilot whisperer”, ou seja, o cara que conhece todos os meandros para iniciar um seriado. Tim Van Patten é outro bastante “rodado” na área, com nome nos créditos de Roma, Boardwalk empire, Game of thrones, The Sopranos e outros. Casos como estes provam que não falta trabalho para quem está construindo uma carreira na TV e não quer se aventurar no cinema.

Esse panorama indica que, apesar dos seus mais de 60 anos de existência, o formato série de TV ainda tem muito a percorrer nos próximos anos e poderá, quem sabe, ser uma ameaça ao cinema enquanto arte audiovisual por excelência. Em entrevista ao site Collider, o cineasta Martin Scorsese dá seu pitaco sobre esse momento. “É certamente interessante o que está acontecendo agora, nos últimos nove ou 10 anos. Esperávamos que haveria [na TV] esse tipo de liberdade, essa capacidade de criar um outro mundo e de desenvolver personagens em uma história de narrativa longa. Isso não aconteceu nos anos 1970 e 1980 com a televisão. Eu tenho tentado, ao longo dos anos, estar envolvido em uma série. É uma nova oportunidade para contar histórias, que é muito diferente da televisão no passado.” 

MÁRCIO PADRÃO, jornalista, redator do BOL e autor do blog Quadrisônico.

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