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“Ninguém chora lendo dicionário”

Na festa dos livros, nunca se falou tanto sobre a importância de se valorizar a literatura oral em meio a hegemonia da palavra escrita e impressa

TEXTO Mariana Filgueiras

02 de Agosto de 2017

A professora e

A professora e "escrevivente" Conceição Evaristo participou de uma das mesas da Flip 2017

Foto Walter Craveiro/Divulgação

Numa das mesas de encerramento da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), um dos eventos culturais mais importantes do país que findou na última semana, a escritora Conceição Evaristo fez a plateia toda rir quando falou: “Ninguém chora lendo dicionário”.

Ela se referia à importância de se dessacralizar a palavra escrita como veículo detentor da literatura. “Todas as palavras estão no dicionário, mas nem por isso elas te emocionam. É o encadeamento delas que dá sentido à coisa, e para isso elas não precisam estar escritas”, comentou a autora. “Eu quero escrever um texto que se aproxime da linguagem oral. É uma escolha consciente. Por isso uso termos bantos, por exemplo, quero confundir o meu texto com um texto oral”, completou.

Houve muitos testemunhos de defesa da literatura oral durante o evento, que reuniu escritores e intelectuais de origens diversas para homenagear Lima Barreto. Um deles foi o do rapper angolano Luaty Beirão, lembrando que atualmente, em Angola, “o rap é a única forma de se dizer o que se pensa”. “Não há livros, jornalismo, aulas, nada. É o rap o principal veículo de expressão em Angola”, disse ele, que lançava, não por acaso, o livro Kanguei no Maiki (Demônio negro), com letras de suas músicas – Luaty esteve preso por três meses em 2015 por contestar o regime político de Angola, período no qual ficou mundialmente conhecido por ter feito uma greve de fome, como protesto, que durou 36 dias. Neste período, escreveu um diário, que já está nas livrarias brasileiras com o titulo Sou eu mais livre então (Tinta da China Brasil).

Sustentando o argumento, Luaty cantou mais do que falou: seus raps fizeram sucesso nas praças públicas da cidade. Não faltou rap no evento literário, aliás – com destaque para a participação da carioca Blackyva, rapper transgênero nascida da favela da Rocinha, que mistura referências a Shakespeare e a Beyoncé em suas músicas de denúncia, já conhecida por apresentações impactantes nas ruas do Rio. 

A "SÍNDROME BOLAÑO"
A escritora Maria Valéria Rezende também reiterou a bravata em favor da literatura oral: “Eu não entendo por que desprezar a literatura oral, afinal a literatura nasceu oral. Toda a matriz dela, a Odisseia e a Ilíada, de Homero, são versos cantados. Neste sentido, o rap, o cordel e a embolada estão muito mais próximos da essência da literatura”.

Maria Valéria acredita que os escritores brasileiros estejam vivendo uma “síndrome de Bolaño”: “Eu estou lendo um livro de 250 páginas, que, juro, poderia ter 150. Há um culto do livro como objeto físico, uma coisa de se comprar livro a metro, que não tem nada a ver com a valorização da literatura”, opinou a escritora, quem tem quatro prêmios Jabuti, entre eles o de Melhor Romance e Livro do Ano de 2015, por Quarenta dias (Alfaguara).

O próprio Lima Barreto, homenageado do evento, teria sido vanguardista em relação aos modernistas por ter aproximado a linguagem dos seus textos dessa oralidade, lembrou Luciana Hidalgo, escritora e doutora em Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que também participou do evento. 

“Em Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, por exemplo, ele rompe com a trama, o conflito, a estrutura do romanção balzaquiano do século XIX e imprime uma linguagem muito mais próxima do ritmo dos leitores”, destacou Luciana. 

"EU JOGO PALAVRA NO VENTO E FICO VENDO ELA VOAR"
A estrutura da programação da Flip já dava pistas de que a oralidade era um assunto importante nesta edição. Tanto na abertura do evento, em que o ator e escritor Lázaro Ramos leu textos de Lima Barreto, quanto na série Fruto estranho, idealizada pela curadora Josélia Aguiar. 

Com o título tomado da música Strange fruit, imortalizada na interpretação de Billie Holiday, cinco performances abriram as discussões literárias – a maioria focada na oralidade dos artistas convidados, a exemplo da apresentação do poeta mineiro Ricardo Aleixo, que encerrou a sua entoando repetidamente, ao modo de um mantra, o verso “Eu jogo palavra no vento e fico vendo ela voar”.



MARIANA FILGUEIRAS, jornalista do Rio de Janeiro, mestranda em Literatura na Universidade Federal Fluminense.

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