Resenha

Corações de plástico também sangram

Em ‘Plastic hearts’, a cantora Miley Cyrus vem mais ‘rock’n roll’ do que nunca e prefere reconhecer suas contradições

TEXTO Erika Muniz

18 de Janeiro de 2021

O autor da foto de capa de Miley Cyrus é um dos principais nomes da fotografia do rock

O autor da foto de capa de Miley Cyrus é um dos principais nomes da fotografia do rock

Foto Mick Rock/Divulgação

I've been California dreamin'
Plastic hearts are bleedin'
Keep me up all night (...)
I just wanna feel

(Plastic hearts, de Miley Cyrus)

[conteúdo exclusivo Continente Online]

O que Madonna, Lou Reed, Syd Barrett, Janelle Monáe, Lana Del Rey, David Bowie e Lady Gaga têm em comum com Miley Cyrus? Entre outros aspectos, todos já tiveram retratos feitos por Mick Rock. Um dos principais nomes da fotografia do gênero, nos anos 1970 e 1980, responsável por registros icônicos, ele continua fazendo imagens inesquecíveis de personalidades da música. No finalzinho de novembro de 2020, é com um retrato produzido por ele que Miley estampa seu sétimo álbum de estúdio Plastic hearts. A escolha do lendário fotógrafo para dirigir a capa não é por acaso, já que, em seu mais novo trabalho, a estrela de 28 anos apresenta composições e arranjos mais rock’n roll do que nunca. Como se não bastasse, os feats, que vão de Joan Jett, Stevie Nicks, Billy Idol à sensação da neo-disco music Dua Lipa, reiteram esse mergulho no gênero. Suas versões de clássicos como Heart of glass, da Blondie, e Zombie, da The Cranberries, disponibilizadas antes do lançamento oficial, evidenciam o que ela pretende nessa atual fase de sua carreira.

Da faixa de abertura até a última, é possível perceber como a voz contralto de Miley exibe mais maturidade neste que em trabalhos anteriores. Em entrevista ao famoso podcaster norte-americano Joe Rogan, ela disse: “A voz pode ser como um rosto, que ganha rugas e conta uma história”. Mudanças, no entanto, são frequentes em sua trajetória artística, já que, a cada novo trabalho, ela se reinventa, rompe e mergulha em diferentes estilos musicais. Tudo isso de maneira bastante consciente – e, às vezes, até conveniente também.

Mas, voltando a Plastic hearts, precisamente à faixa que dá título ao álbum, em verso pincelado do refrão, a artista finaliza com: “I just wanna feel” (Só quero sentir, em livre tradução). Essas quatro palavras sintetizam uma das mensagens mais potentes do disco: a busca por sensibilidade em meio à letargia frequente da vida contemporânea. Nesse e em demais fragmentos do álbum, uma outra chave interpretativa é também a crítica a processos de criação e recriação intensos e incansáveis que artistas costumam ter que vivenciar. Envoltos em seus afetos e no de seus fãs, estrelas do mainstream parecem, cada vez mais, ter que desenvolver superpoderes – plasticidade e resiliência – para lidar com um mercado continuamente saturado e, portanto, bastante desafiador.



A escolha de uma faixa de abertura – WTF Do I know (O que diabos eu sei, em livre tradução), que apresenta uma pergunta já no título – é bastante significativa. Tal questão, na verdade, mais comunica do que propriamente questiona. Em meio a dúvidas sobre o futuro ou sobre quais rumos de sua carreira e vida pessoal, na canção inicial, Miley escolhe assumir suas incertezas. Enquanto artista que cresceu sob os holofotes da mídia, ao longo dos anos, várias de suas composições ou mesmo declarações em entrevistas parecem não fazer mais sentido. É claro que essa volatilidade – ou mesmo plasticidade –, de vez em quando, pode também ser uma estratégia noticiosa. Mas é fato que agora, em vez de afirmações, por meio de suas criações ela prefere reconhecer suas contradições.

Ao contextualizarmos as letras de Plastic hearts com acontecimentos mais recentes da vida de Miley, interpretações ganham ainda contornos possíveis. Entre alguns pontos, o álbum chega após o fim de seu casamento com o ator australiano Liam Hemsworth – “Maybe getting married just to cause distraction” (“Talvez casar só para se distrair), debocha. Antes, a artista cogitou até em lançar três EPs, porém, após um incêndio que atingiu sua casa na Califórnia, em 2018, ela decidiu investir em um álbum completo, com capa e um conceito bem-estruturado, pronto para circunscrever a era Plastic hearts.

Quem acompanhou – como essa que vos escreve – a série televisiva Hannah Montana, exibida nas manhãs de sábado da Globo, nos anos 2000, conhece Miley Cyrus e não é de hoje. Durante a adolescência, a jovem estrela protagonizou o programa da Disney Channel. Seu pai, o cantor de country norte-americano Billy Ray Cyrus, também integrava o elenco, interpretando o pai de sua personagem. É de se imaginar como o embaralhamento entre sua vida e aspectos da narrativa ficcional tornava-se inevitável por parte do público e da imprensa. Mais ainda, no enredo da série, Miley fazia o papel de uma adolescente que se dividia entre o anonimato e a fama de uma superstar. Enquanto Miley Stewart – que, não por acaso, recebe o primeiro nome da artista – ficava distante do estrelato, sua persona famosa era Hannah Montana, bastante amada e seguida por muitos fãs.

Durante o período de gravações, o elo contratual entre Miley e a Disney demandava dela mais do que a sua dedicação ao set de filmagens, mas também uma agenda ligada à personagem teen e a regras em torno de sua imagem pública e carreira artística. Tendo como alvo o público infantojuvenil, a empresa norte-americana faz parte da cultura audiovisual consumida por várias gerações, através de filmes e séries que, inclusive, ajudaram a popularizar o imaginário dos contos de fadas tal como o reproduzimos hoje. Outros nomes da música também tiveram suas fases na Disney, entre eles, Britney Spears, Justin Timberlake, Christina Aguilera – os três no programa The all new Michey Mouse Club – e a cantora Demi Lovato. A confusão desses artistas com personagens de ficção contribuía para que narrativas midiáticas e o próprio ethos (comportamento) que a empresa cultivava em torno de si fossem legitimados. Essa rigidez em busca de uma “perfeição” impossível acabava, cedo ou tarde, resultando em impactos na vida real dessas jovens estrelas. Afinal, quem poderia imaginar um personagem da Disney com as contradições humanas?


Miley fazendo cover de Blondie. Foto: Divulgação

Mas, para que voltar ao passado num texto sobre o mais recente álbum de Miley Cyrus? É simples. Desde que deixou de interpretar Hannah Montana, de uma maneira ou outra, sua carreira dialoga com essa fase de sua trajetória artística – mesmo quando ela nega ou procura desvincular-se da personagem que a tornou mundialmente conhecida. Embora menos do que nos outros seis álbuns anteriores, ainda assim, nessa nova era, o período é evocado. Recentemente, a própria cantora, inclusive, chegou a declarar, no programa de rádio australiano Kylie and Jack, que adoraria voltar a atuar como Hannah. Algo que, além de ela já ter negado outrora, também já foi considerado de todo improvável. De modo consciente ou não, retomar a protagonista da série da Disney, nesse momento mais rock’n roll de sua carreira musical, parece ambíguo, mas é uma escolha de quem sabe muito bem o que faz.

A identidade visual sempre foi importante para a camaleônica Miley Cyrus. Para além da moda, outros símbolos também aparecem na maneira em que ela se comporta publicamente, a cada novo trabalho apresentado. Em 2013, por exemplo, durante a turnê do álbum Bangerz, a estadunidense procurava comunicar a sua autonomia, aparecendo com os cabelos raspados nas laterais e loiros platinados, bem diferente de seu penteado anterior. Nas entrevistas e apresentações da época, ela expunha o uso de drogas e expressava sua sexualidade com mais frequência. Foi nessa fase que o clipe de Wrecking ball, em que ela aparece nua, foi lançado, provocando, por exemplo, os que ainda esperavam dela a postura da Hannah Montana. Em 2017, na turnê de Younger now, o público encontrou uma Miley bem mais convencional, com um corte de cabelo bem mais tradicional e compondo em cima de suas raízes na música country.

Na atual era Plastic hearts, ela está com um mullet à la 1980’s, o que lembra o cabelo de Joan Jett na época das Runaways. Além disso, o figurino mais parece emprestado do guarda-roupa de Debbie Harry, vocalista da Blondie, no auge da new wave. E nada disso é por acaso, tampouco exclusividade de Miley Cyrus. A construção imagética sempre foi relevante para artistas do pop na hora de agregar outros sentidos às suas obras musicais, mesmo quando certos gêneros tentam ocultar isso. Madonna, Bowie, Michael Jackson, Ramones com suas jaquetas de couro, Beatles, Kiss, Nirvana e Iron Maiden são alguns dos que sempre souberam a potência – inclusive, política – que esses recursos têm.

Com 12 inéditas, um single e duas faixas covers, Plastic hearts oscila entre o agito e a emoção, por meio de arranjos cheios de grooves, riffs de guitarras pesadões e sintetizadores trabalhados. Se a agitação toma conta mais no início, do meio para o fim o álbum ganha um ritmo cada vez mais desacelerado, o que pode frustrar os que esperam que a frequência inicial se mantenha até o fim. Embora seja um dos lançamentos de rock do ano, engana-se quem pensa que Miley deixou sua veia country de lado. O gênero que consagrou seu pai e sua madrinha, Dolly Parton, é que dá o tom especialmente na estrutura das composições, como nas faixas Angels like you – a melodia dessa lembra a de Million reasons (2016), de Lady Gaga –, High e, na última, Golden G string.



Prisioner é, sobretudo, para quem quer dançar. Com melodia e arranjos mais eletro-pop, a faixa conta com a participação da inglesa Dua Lipa, que fez sucesso em 2020 com seu Future nostalgia (2020). Disponível no Youtube, o clipe explora uma estética do glam rock. Nele, a dupla aparece protagonizando cenas quentes num ônibus a caminho do show de sua banda, o que remete, inevitavelmente, à atmosfera de Quase famosos (2000), filme de Cameron Crowe. Para quem prefere o lado mais rock’n roll clássico do disco, há, ainda, Night crawling, que traz um feat com Billy Idol, além da faixa Edge of midnight, com Stevie Nicks, que é um dos pontos mais altos de todo o disco. Diante da emoção que provoca através de letras costuradas por linhas melódicas envolventes e arranjos mais pesados, além do potencial que algumas faixas têm para estar entre as mais ouvidas do ano, a estrela pop Miley Cyrus acaba de lançar com, sobretudo, ousadia um dos álbuns de rock do ano apocalíptico e incontornável que foi 2020.



ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.

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