Reportagem

Cia do Latão: aos que não hesitam

Inspirada em Brecht e no Teatro de Arena, a companhia paulista leva aos palcos, há 20 anos, sua arte militante com uma das atuações mais contundentes do cenário teatral brasileiro

TEXTO Mateus Araújo

27 de Setembro de 2017

Espetáculo O pão e a pedra (2016) revisita a história do movimento grevista do ABC (SP), em 1979

Espetáculo O pão e a pedra (2016) revisita a história do movimento grevista do ABC (SP), em 1979

FOTO Divulgação

Eis que o acocho voltou. O tempo regrediu de um jeito que nos assusta. Podemos falar do teatro engajado com os movimentos democráticos ou já nos cairá a tarja e a taxa de esquerdistas? O fato é que, corajosa e vigorosamente, a arte resiste nestes tempos de descompassos e perseguição; dá a cara à tapa neste ciclo estranho do perverso.

“Agora, depois que trabalhamos por tanto tempo, estamos em situação pior que no início”, escreveu Bertolt Brecht (1898-1956) no poema Aos que hesitam – escrito há tanto tempo, mas atual como se fosse feito nestes dias. “O inimigo está aí, mais forte do que nunca. Sua força parece ter crescido. Ficou com aparência de invencível. Mas nós cometemos erros, não há como negar. Nosso número se reduz. Nossas palavras de ordem estão em desordem. O inimigo distorceu muitas de nossas palavras. Até ficarem irreconhecíveis.”

Foi Brecht, 20 anos atrás, o impulso para a criação da Cia do Latão, grupo francamente vinculado ao pensamento marxista e à arte militante, cuja obra entra na esteira das mais contundentes criações do cenário teatral brasileiro. Embora surgida quase uma década após o fim da ditadura militar, a companhia paulistana herdou e as incursões do Teatro de Arena na linguagem de encenações épicas. “O Teatro de Arena foi uma das experiências mais produtivas do Teatro Moderno feito no Brasil, trazendo inovações estéticas e técnicas e rediscutindo a tradição do teatro [comercial] feito até aquele momento”, pontua o pesquisador Marcius Siddartha, mestre em Teoria Literária e Literaturas da UnB, na dissertação Do Arena à Companhia do Latão.

A Companhia do Latão surgiu em 1997, levando adiante as investigações sobre a dramaturgia brasileira ocupada em dar voz a movimentos populares e anseios da gente invisível no cenário hegemônico e poderoso. A partir do estudo em que unia as reflexões de Brecht e Karl Marx (1818-1883) como luz para enxergar os dilemas da cidade de hoje, o grupo lança uma dramaturgia cujo cerne estava e está na narrativa do real, do anti-ilusionismo; avessa à dramatização.

Os tempos já não eram mais de ditadura. No entanto, o Brasil vivia à sombra do neoliberalismo do governo de Fernando Henrique Cardoso, que durou de 1995 a 2003. “Depois da dura censura e repressão do regime militar, [o Latão] retoma, no final da década de 1990, elementos estéticos do teatro político, buscando desenvolver a forma épica nos dias atuais, inclusive em contato direto com movimentos populares, para que os mesmos sejam capazes de ser, além de sujeitos de sua história, também sujeitos da produção artística”, explica Siddartha.

Um ano antes da sua fundação, o Latão havia montado o espetáculo Ensaio para Danton, a partir de uma pesquisa cênica sobre o teatro dialético, fixado nas contradições da vida real. “Brecht foi a principal influência do começo do Latão. Isso não quer dizer que a gente tenha aplicado Brecht o tempo todo. Temos uma leitura muito livre para a dialética no teatro, que é um pensamento dele e de outros dramaturgos. Gente interessada no vivo, no contraditório e na mudança”, contextualiza o encenador e dramaturgo Sérgio de Carvalho, cofundador da Cia do Latão.

Um ano antes da sua fundação, o Latão montou a peça Ensaio para Danton

O que a companhia buscou dilatar, explica Carvalho, foram as leituras sobre a obra brechtiana. “Estamos interessados na representação e na crítica da representação, ao mesmo tempo. Fazer isso como construção, um olhar ativo, um pensamento que intervém, de você desconfiar de ideologia e gerar prática. Isso é cada vez mais necessário, ainda mais quando a avalanche do capital sobre a vida está arrebentando tudo, destruindo direitos históricos conquistados.”

Essa análise reflexiva e dialética da companhia, para o pesquisador e professor da UnB, Fernando Marques, convida o espectador a “pensar sobre as contradições em causa, o que implica abandonar o hábito de ver nos indivíduos – representados no herói dramático – o centro e o motivo das ações”. “Textos que envolvem não apenas pensamento abstrato, mas também atmosferas sonoras e visuais, as peças do Latão nos induzem a reconhecer os limites de nossa liberdade minguada. Só depois será possível ampliá-la”, analisa Marques no artigo Consciência crítica, publicado no livro A província dos diamantes: ensaios sobre teatro (2016).

Com uma criação pautada pelo trabalho igualitário e processo construtivo horizontal (os textos dos espetáculos são criados a partir de ensaios e experimentos em que todos os artistas participam e lançam suas perspectivas), a Cia. do Latão desenvolveu ao longo desses 20 anos um teatro para além do teatro. “Somos também um grupo de produção teórica e militância política. Essas atividades se complementam. E dentro dessas condições, conseguimos fazer muitas coisas; e a ideia é seguir fazendo”, frisa Sérgio de Carvalho, que também é professor de Artes Cênicas na USP.

“NAS HORAS VAGAS DE GUERRILHA,
ELABORAM UM PLANO DE IRRIGAÇÃO”

A proposta de teatro militante da Cia do Latão passa justamente por essa aproximação da arte com os movimentos políticos. A criação dos 13 espetáculos desta trajetória, além de experimentos e ensaios cênicos, se deu através de investigações, pesquisas e vivências junto a movimentos como o MST, por exemplo, com o qual o Latão criou montagens, oficinas, formação em teatro e encontros em assentamento.

O grupo credita a essas ações e vivências a coesão do seu pensamento teatral. Através delas, os artistas estiveram e estão verdadeiramente próximos aos questionamentos sobre reforma agrária e luta de classes, tão inerentes à temática dos espetáculos do Latão. Com o MST, a companhia chegou a criar a peça A farsa da justiça burguesa, em 2005, sobre a chacina de Eldorado, no Pará, e O círculo de giz caucasiano, no ano seguinte, em lembrança aos 50 anos da morte de Brecht.

Para a atriz e dramaturga Helena Albergaria, a proximidade com MST enriquece o olhar social e construção artística do grupo de maneira decisiva. “É um trabalho que nos faz colocar o pé no chão e não de desprender da vida real”, garante. Helena esteve no processo criativo de O Círculo de Giz Caucasiano. A peça foi uma adaptação do texto original de Brecht, escrito em 1944, e foi montada após laboratório do Latão no assentamento Carlos Lamarca, em São Paulo.

Na peça brechtiana, o prólogo apresenta duas comunidades disputam a posse de uma terra, após a Segunda Guerra Mundial. “Esse prólogo era importante de a gente fazer, mas a gente não queria montar como no texto de Brecht e veio a ideia de trabalhar uma oficina com o MST debatendo essa temática”, lembra Helena. “Fomos fazer uma oficina no assentamento. Dormimos e morando por alguns dias lá, trabalhando com um grupo de teatro do MST. A gente leu e debateu o texto e foi impressionante perceber fizeram, o tempo inteiro, a relação da história com a vida deles. Isso ficou tão próximo, que filmamos todo o processo e usamos ele como prólogo da nossa montagem.”

Se em cena a ideologia de esquerda se faz contundente e é princípio de criação, na plateia estas reflexões florescem em um público tão engajado quanto os atores. “O público do Latão tem a ver com a história do grupo. Como sempre atuamos em mais de uma frente, temos público variado”, afirma Sérgio de Carvalho. “Temos o [público] intelectualizado e estudantil -- e no nosso caso, muito mais ligado a estudantes de ciências humanas e outras áreas que não são exatamente da classe teatral; temos também o público que nasce fora dessas ambientes culturais: em assentamento, nos movimentos de militância; e, por fim, tem também uma terceira frente, a dos sindicatos.”

Prólogo de O Círculo de Giz Caucasiano, com a vivência dos atores junto ao grupo Filhos da Mãe…Terra, do assentamento Carlos Lamarca.

OS TEMPOS DE HOJE

Em duas décadas, a companhia viu o Brasil passar por diversos momentos político-culturais. “Quando começamos, não tínhamos política pública alguma para a cultura. Tínhamos um governo francamente alinhado com o neoliberalismo pseudo-modernizante do fim do século 20, e a gente sabia que único jeito era impressionar e colaborar com a construção”, conta o diretor. “Foi isso que gerou em São Paulo o [Movimento de reivindicação artística] Arte Contra a Barbárie, colaborando com a implementação da Lei de Fomento [mecanismo público, em São Paulo, de incentivo à cultura, como o Funcultura de Pernambuco].”

A situação delicada vivida com a ineficácia de políticas públicas de cultura da Era FHC seria aliviada com a chegada do projeto petista ao governo federal, no início dos anos 2000. “Nos anos seguintes, tivemos os governos do PT que melhoraram a situação dos trabalhadores da cultura no Brasil, apesar de não constituir uma ampla política cultural. Quando isso acaba, essa melhoria muito pequena desaba sobre o golpe. É de novo o capital dando as cartas e esfregando seu lado pior”, avalia.

A acachapante desestabilização política, econômica e moral do País, destes anos mais recentes, são o novo inimigo a ser combatido pelos artistas brasileiros, incluindo, evidentemente, os do Latão, segundo o diretor. “É um novo momento difícil pra todo mundo que trabalha com cultura. Nos faz acordar para o fato de que num país como o nosso, as pessoas não podem parar de pressionar”, diz, em referência aos cortes em investimentos, o enfraquecimento do Ministério da Cultura e conservadorismo alarmante e censor.

Esse “retorno ao começo em que foi difícil fazer teatro”, diz Carvalho, se deve justamente à ideia mercantilizada de se pensar cultura pela gestão pública. “Cultura é um processo que vai muito além e aquém da vida mercantil. Mesmo o PT caiu na esparrela da economia criativa, de estimular produtores sobre geração de produto. Não conseguiu trabalhar, exceto em caso excepcional, para estimular processo de memória, formação, criar bases para que os processos de cultura possam sobreviver. Você teve um esboço, mas ainda em bases burguesas, e hoje vem uma fase pior desse tipo de desenvolvimento: o fascismo escancarado”, critica. “As pessoas não têm vergonha de assumir o sentido mercantil, a orientação mercantil sobre a vida. Mas é uma fase, na verdade. Como nossa história de crítica aos desmandos do capital é muito recente, você vê que rapidamente o lado pior retorna. E ficam esses ciclos de breves melhorias muito parciais, golpe e terra arrasada. É uma constante do século 20.”

As mais recentes montagens da companhia já dão conta de reverberar o tensionamento das instabilidades e também das incongruências de um processo nada amigável que o Brasil vive atualmente – do fascismo implacável aos jogos de poder impensáveis.

Em Os que ficam (2015), um grupo de teatro tenta reencenar peça de Boal 

Em Os que ficam (2015), com texto de Sérgio de Carvalho, um grupo de teatro tenta reencenar Revolução na América do Sul, escrita por Augusto Boal em 1960. A montagem do Latão é contextualizada em 1970, em plena ditadura, num cenário nada fácil para ser fazer teatro militante: “O teatro esvaziou-se, muitos atores partiram – geográfica ou ideologicamente. Os que ficaram (eis aqui o título da peça), tentam, como podem, sobreviver, e, principalmente, fazer resistir a arte descompromissada com mercado”, escrevi (eu, o repórter) em crítica a partir da peça, na ocasião de sua temporada em São Paulo, há dois anos. O espetáculo transpôs as aflições de Boal para o Brasil contemporâneo usando símbolos e referências da esmagadora alienação do povo brasileiro, como panelaços e protestos esvaziados.

Já no ano passado, a companhia estreou O Pão e a Pedra, em que revisita a história dos movimentos de luta dos trabalhadores na chamada região do ABC, em São Paulo, em 1979. A greve que marcou a história do Brasil serve como alegoria para o País pós-Lula, como escreveu o crítico Nelson de Sá na Folha de S.Paulo. “O coração da peça é o momento em que os peões, conscientes ou não, aceitam a derrota. Eles o fazem para garantir a sobrevivência da liderança, da organização – que de fato retornaria com um movimento maior e vitorioso. O operário se deixa representar por ele, entra em comunhão com Lula, num ato idealista já destacado noutros documentários e filmes de ficção. O Pão e a Pedra encena um questionamento disso, pela voz dos trabalhadores, mas é ricamente contraditório e dramático, em parte devido ao novo momento, em que o líder está outra vez acuado.”

“A gente continua fazendo um teatro crítico, artisticamente inventivo, à esquerda, de fundamentação marxista. Fazer isso por tanto tempo, acho que é um feito, sobretudo nas condições que a gente tem de cultura no Brasil. Ao mesmo tempo, vejo que isso só foi possível porque fizemos com muita alegria, capacidade de não se fixar em conquistas anteriores e tentando desdobrar em outras frentes”, afirma Sérgio de Carvalho.

E a atualidade reverbera cada vez mais na obra do Latão. Daqui para frente, a ideia do coletivo é criar experimentos e ações rápidas de estudos sobre o hoje. “Quero fazer experimentos conectados com alguns movimentos [sociais e políticos]. Sinto que é uma fase de novos estudos. Já estou com plano de fazer um experimento musical ainda este ano, talvez usando uma forma parecida com o cabaré político do começo do século”, antecipa o diretor – ao que Brecht acrescentaria: “Precisamos ter sorte? Isto você pergunta. Não espere nenhuma resposta senão a sua.”

Mateus Araújo é jornalista, pesquisador e crítico de teatro. Mestrando em Artes Cênicas pela Unesp, com estudo sobre masculinidade na obra do Grupo Magiluth.

 

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