Mirante

Jornalismo de rede social

TEXTO Débora Nascimento

25 de Janeiro de 2021

Robert Redford e Dustin Hoffman interpretam os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein no filme 'Todos os homens do presidente' (1976)

Robert Redford e Dustin Hoffman interpretam os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein no filme 'Todos os homens do presidente' (1976)

FOTO Reprodução

No dia 14 de dezembro de 2020, uma desagradável informação circulou pelas mídias sociais em Pernambuco: mais de 20 jornalistas do Sistema Jornal do Commerciodentre eles, talentosos e veteranos profissionais – foram demitidos. A notícia de cada demissão em massa, em qualquer veículo de comunicação, provoca uma comoção no meio jornalístico. Em seguida, o cotidiano trata de nos fazer esquecer temporariamente da lamentável situação em que se encontra o mercado jornalístico brasileiro há, pelo menos, duas décadas.

O fato é que, nos últimos anos, ocorre um agravamento dessa decadência. E vários fatores a explicam. Um deles certamente é a enorme circulação de informação nas redes sociais. Não adianta tentar negar e ignorar: há alguns anos, as pessoas preferem “se informar” pelo Facebook, WhatsApp, Twitter e Instagram. Não querem mais ir atrás da notícia, esperam que a notícia passe por seus feeds como galhos de árvores boiando no curso de um rio. "Olha uma notícia ali!" Leitura rápida, like, próximo post. O dedo e o olhar seguem pela tela.

O que esse like e esse seguidor de rede social representam para o veículo de comunicação, na prática? Em tese, a quantidade de seguidores, como diria o marketeiro, "agrega valor" a uma marca. Mas essa valorização renderá financeiramente para o veículo de comunicação? Esse like vai gerar acesso ao site do veículo? Uma resposta simples poderia ser: esse aumento no acesso de um site, seja pago ou não, tem o potencial de atrair anunciantes. Mas não é exatamente isso o que acontece. Boa parte dos anunciantes vem preferindo colocar o seu dinheiro no bolso de influencers, blogueirinhas, youtubers, instagramers e afins, ou investir em seu próprio perfil nas redes e patrocinar posts.

O que os veículos de comunicação vêm fazendo, pra não ficarem de fora do jogo das mídias sociais, é alimentar suas redes com seus conteúdos. Com isso, entregam de graça o seu “ouro” – o seu trabalho, a sua informação – para um público que não quer pagar por notícias, porque as terá gratuitamente de alguma forma. Portanto, esses mesmos veículos deveriam continuar a publicar notícias no Instagram com manchete na foto e três, quatro parágrafos de legenda? A criação de conteúdo para as mídias sociais, de uma solução de marketing, que gera trabalho para alimentar e gerenciar, pode se tornar o derradeiro sepultamento do jornalismo "raiz" ou virar o novo jornalismo?

O que se entendia, de uma maneira geral, como a figura do “leitor”, hoje parece ter outro perfil: não quer mais se aprofundar na notícia e no assunto abordado. Ele tem estado acostumado a legendas do Instagram e tuítes de 280 caracteres. Para ele, dedicar-se à leitura de um tema parece ser uma perda de tempo, que o afastará de se inteirar rapidamente e, assim, superficialmente, sobre o próximo assunto que estiver circulando, sejam as novíssimas fotos postadas no Instagram de uma celebridade, a nova treta do Twitter ou a mais recente fala “polêmica” do presidente, cuja família realizou, em 2020, 580 ataques à imprensa, utilizando as redes sociais como meio – segundo levantamento da ONG Repórteres Sem Fronteiras.

Enquanto isso tudo acontece, um antigo tuíte que li representa bem o estado do jornalismo hoje em dia: “As notícias nascem no Twitter e morrem no Facebook”. Não nascem mais nas ruas ou nas páginas dos jornais, no rádio ou na TV. O ciclo da notícia parece ter que passar, de alguma maneira, por uma rede social para ser legitimada como notícia, como assunto digno de nota na imprensa. Ao contrário de antes, o jornalista não é mais o responsável por criar o assunto a ser falado. E o furo jornalístico, que estimulava a concorrência entre veículos de comunicação, conquistava prêmios, leitores e boa reputação profissional, virou fenômeno raro – seja porque aquelas que seriam as fontes dos jornalistas dão, elas mesmas, o "furo" em suas redes, ou porque a noção de urgência e brevidade de uma notícia não deixa esperar por um aprofundamento maior na apuração. Hoje, o caso Watergate, antes de ser publicado no Washington Post, provavelmente ganharia um post no Facebook e viraria uma hashtag do Twitter.

Com a avalanche de oferta de informação, a dispersão nas redes e a tentativa sistemática do governo federal de destruir a imagem da imprensa nacional, os veículos de imprensa brasileiros sofrem de baixa audiência. Isso é um feedback injusto, se levarmos em consideração que os repórteres passam dias, semanas, meses e, em raros casos, até anos, apurando um assunto, para transformar em reportagens, que, no final, pouca gente vai ver, ouvir ou ler. Talvez a matéria obtenha o mínimo de interesse para compartilhamento, se houver um título chamativo, caça-like. Ou quando se refere ao próprio presidente da República, cujas notícias costumam atrair a atenção tanto de opositores quando de aliados. Por isso, também, ele é tão presente na mídia. Gera engajamento.

Outro fator complicador da atividade jornalística contemporânea vem dessa cultura de likes. Quem trabalhou com notícia antes das redes sociais, sabe que, no passado, você focava energia e talento para apurar, entrevistar, pesquisar e escrever ou gravar. Entregue a missão, encaminhava-se para o próximo leão a ser abatido. Hoje, esse mesmo trabalhador precisa se preocupar com a divulgação nas suas redes, torcer para que acessem, leiam, curtam, compartilhem, e, de quebra, ainda tem que encarnar o Millôr Fernandes no Twitter, para conquistar milhares de seguidores – uma forma de lustrar a reputação no meio jornalístico e conquistar/disputar leitores, em meio a um interesse cada vez menor pela leitura na sociedade do espetáculo.

Dentro desse contexto, os links nas redes sociais ajudam a divulgar o trabalho realizado pelos jornalistas, mas não muito. Por exemplo, um longo texto postado no Facebook tem muito mais chance de ser lido na própria timeline do que se tiver apenas o seu link compartilhado – sem contar que essa rede social costuma reduzir a circulação de posts com links. Já no Instagram, nem um link direto do post para um site é possível fazer – a não ser que seja de propaganda. Para driblar isso, é preciso, então, colocar o link na bio do perfil responsável pela postagem. Isso significa que o seguidor terá que sair da timeline para acessá-lo no perfil seguido. O resultado é que apenas uma pequena parcela do público se interessa em fazer essa migração temporária. E, claro, o Instagram dificulta essa movimentação, para que o usuário não saia do aplicativo e entre em um site.

Em meio a isso, é sintomático de um momento de disputa de atenção do leitor na web que algumas tentativas de soluções apareçam pelo caminho. A plataforma de publicação de textos Medium informa, logo no começo de um texto, qual será o tempo de leitura. Essa informação, aparentemente útil e inofensiva, pode ser desanimadora para quem vai começar a ler algo. Talvez exerça a mesma lógica de se saber o tamanho de um áudio, antes de decidir ouvi-lo. A informação do tempo de leitura, seja de 1 minuto ou 1 hora, corre o risco de afastar o leitor ou acostumá-lo mal. Tempo de leitura é algo individual. Quem costuma ler muito, lê mais rápido.

Outro recurso que pode, num futuro próximo, virar um tiro no pé do jornalismo é aquele resumo da notícia em quatro ou cinco tópicos, comumente usado por um portal de notícias brasileiro. Talvez considerem que isso seja uma saída para atrair pessoas que não gostam de ler ou que não têm tempo de ler naquele instante – o que vale, para o portal, é o clique na página. Mas talvez seja muito perigoso brincar com isso, pois o jornalismo pode ficar mais sucateado ainda. O jornalista corre o risco de virar um coletor de principais itens de um fato e não precisar mais gastar neurônios para redigir uma notícia ou analisar suas nuances. Bastará só elencar os pontos mais importantes. E qualquer pessoa, claro, sem formação, experiência e noções de jornalismo ou até mesmo uma inteligência artificial seria capaz de fazer isso.

Estou escrevendo isso tudo ainda sob o impacto da lamentável demissão em massa que aconteceu naquele dia 14 de dezembro de 2020, no Jornal do Commercio, onde comecei no jornalismo em meados dos anos 1990. Tenho lembranças muito boas da redação, que infelizmente vem ficando cada vez menor, assim como o jornal, e mais próxima de existir apenas na memória dos muitos profissionais que passaram por lá.

Os jornais brasileiros, como um todo, sofrem à míngua com poucos anunciantes e assinantes – há a exceção de alguns sites dos principais impressos, que conseguem conquistar e manter um bom número deles (a Folha lidera o ranking digital com 268.557 assinantes, O Globo com 245.440, e o Estadão, 150.852, em dados de 2020).

Existe hoje uma grave crise no mercado jornalístico pernambucano, mas os números de seguidores do Instagram do Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio fazem parecer o contrário, que está tudo muito bem, obrigado. São números dignos de qualquer influencer: o primeiro tem mais de 1 milhão de seguidores e o segundo, quase 600 mil. Alguém pode perguntar: mas por que esses números não se convertem em uma maneira de salvar esses e outros veículos brasileiros? Por vários aspectos. Mas um deles é pouco discutido: o Instagram apenas se beneficia do conteúdo que postamos, sejam notícias, nossas fotos pessoais ou lives de artistas. E, ao contrário do YouTube, não repassa parte de suas receitas de publicidade para os usuários que geram conteúdo na plataforma. Em 2019, o Instagram faturou U$ 20 bilhões com anúncios.

Por isso, parte de uma solução para essa crise no jornalismo seria que entidades e empresas jornalísticas cobrassem, coletivamente, das redes sociais, uma fatia no faturamento (mesmo que mínima) pela quantidade de likes de seguidores, ou talvez uma maneira de facilitar o acesso a seus portais de notícia. Seria como uma troca de favores. Deveria haver uma forma de estabelecer uma parceria entre o departamento comercial de empresas de comunicação e das redes sociais. Essa pode ser uma ideia delirante, mas é preciso, pelo menos, tentar uma saída, uma mudança, nesse sentido. As empresas de social media não são empresas de jornalismo. Mas, a partir da circulação de informação que ocorre nelas, estão se comportando como se fossem.

No Instagram, os veículos de comunicação de todo o mundo postam suas fotos inéditas e suas informações exclusivas. Com isso, trazem um novo e bom status a uma rede social que tem a péssima reputação de ser prejudicial à autoestima das pessoas, por funcionar como um grande palco de cultivo ao consumo, à vaidade e à ilusão de vida e corpo perfeitos, surtindo efeitos corrosivos como transtornos psicológicos e alimentares. No Brasil, há 140 milhões de pessoas ativas nas redes sociais – 67% da população. Imagine o impacto disso.

Estimular a manutenção de empresas sérias de imprensa em suas plataformas seria uma maneira prática de uma rede social ajudar também a combater as fake news, que tanto vêm afetando seus prestígios. Uma parceria, para mudar este cenário, seria uma forma de revolucionar sua presença na internet e o seu papel na história da comunicação. Isso é uma ideia utópica, sim. Mas a própria ideia da permanência do jornalismo em si também parece ser.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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