Mirante

Brasil, 2018: o inimigo agora é outro

TEXTO Débora Nascimento

09 de Agosto de 2018

Em maio deste ano, o ator Wagner Moura deu início a um abaixo-assinado em apoio ao cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, que havia recebido uma inesperada cobrança do Ministério da Cultura exigindo o pagamento de R$ 2,1 milhões referentes à realização do aclamado O som ao redor (2013), que custou R$ 1,7 milhão. A justificativa do ministro Sérgio Sá Leitão era a de que o cineasta teria autorização para captar até R$ 1,3 milhão no âmbito federal (o realizador argumenta que obteve o restante na esfera estadual e com autorização prévia da Ancine). Tanto para o ator quanto para o diretor, e boa parte do público, essa atitude do governo federal foi entendida como uma forma de retaliação, por conta dos posicionamentos políticos do cineasta, a exemplo do protesto que ele e a equipe do filme Aquarius fizeram em Cannes, em maio de 2016, contra o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Como KMF não vai – nem tem como – efetuar o pagamento, o imbróglio prossegue e há o risco de que sua produtora, a Cinemascópio, seja impedida de captar novos recursos em leis de incentivo à cultura.

Neste cenário de arbitrariedades e incertezas no país, Wagner Moura é uma das vozes mais atuantes do meio artístico. Tem se colocado ao lado de questões políticas e sociais urgentes. Assume posições favoráveis a temas do território ideológico da esquerda. Mas, numa ironia do destino, foi responsável por dar vida ao Capitão Nascimento, protagonista do filme Tropa de Elite. O marcante personagem, que projetou o nome do ator nacional e internacionalmente, também contribuiu para estimular e alimentar o pensamento fascista vigente no país, exatamente porque seu discurso truculento veio amaciado pelo talento e imenso carisma de Wagner Moura. O mesmo ocorreu com a memória de Pablo Escobar, beneficiada pela presença cênica do ator na série Narcos (Netflix) – é fácil encontrar nas redes sociais hashtags ovacionando o traficante colombiano morto em 1993, acompanhadas da imagem de Moura vestido a caráter.

Pouco mais de 10 anos após o lançamento do primeiro Tropa de Elite, sua reverberação não está apenas nas frases que viraram bordões (“Pede pra sair”, “Quer me foder, me beija”, “O senhor é um fanfarrão”, “Perdeu!”), mas o discurso ideológico dos dois filmes parece ter impregnado o imaginário coletivo do brasileiro. Basta um rápido passeio pelos portais de notícia, para encontrar, sem muita dificuldade, comentários que vão no mesmo direcionamento das frases extraídas de Tropa de Elite 1 e 2: “Esse papo de consciência social é pura hipocrisia”; “É engraçado, ninguém faz passeata quando morre um policial”; “Quantas crianças a gente vai ter que perder para o tráfico, só para um playboy enrolar um baseado?”.

Num país que pouco vai às livrarias, ao teatro, ao cinema, os dois Tropa de Elite, encabeçados por Wagner e dirigidos por José Padilha, apresentaram-se como produtos fáceis de serem consumidos e disseminados devido à sua linguagem direta, tornando-se obras bastante populares. O sucesso começou antecipadamente no vazamento do primeiro filme, que vendeu como água nas carrocinhas dos CDs e DVDs piratas (há uma estimativa de 10 milhões de unidades), três meses antes de sua estreia em 2007. A sequência, Tropa de Elite 2 – O inimigo agora é outro (2010), conseguiu a façanha de ultrapassar a bilheteria de Dona Flor e seus dois maridos, de 1976 (10.735.524 pagantes), sendo o filme mais visto no Brasil, com 11.146.723 espectadores – em 2016, foi desbancado pelo Os dez mandamentos (11.259.18).

Eficientes obras de entretenimento, os Tropa de Elite se propuseram a discutir a complexa questão da violência em dois filmes de ação. No entanto, a edição frenética, com cortes breves, para manter o ritmo do gênero cinematográfico, não favoreceu a intenção. O espectador mal tinha tempo para respirar. A crítica, na época, ficou dividida. No Festival de Berlim, onde conquistou o Urso de Ouro em 2008, Tropa de Elite angariou tanto a simpatia quanto a antipatia dos críticos. O jornal alemão Die Zeit elogiou como “um filme simplesmente bem-feito, um filme de ação bastante brutal do dia a dia da polícia”. O Berliner Zeitung escreveu que se tratava de “uma obra-prima na balança entre a narrativa e o pseudodocumentário”. A Variety publicou que era uma “monótona celebração da violência, um filme de recrutamento para fascistas brutamontes”.

Essa frase do jornalista Jay Weissberg foi praticamente premonitória. Em pouco mais de uma década de lançamento de Tropa de Elite, não é de se estranhar que um dos candidatos à frente das pesquisas para Presidente da República no Brasil seja um ex-capitão do Exército, cujo discurso se assemelha ao do Capitão Nascimento: contra os intelectuais de esquerda, os integrantes de organizações de defesa dos direitos humanos, os defensores de direitos das minorias, contra discussões a respeito de questões como descriminalização do aborto e do uso de drogas, causas e efeitos do racismo, do machismo, da homofobia e da desigualdade social.

Embora a sequência, Tropa de Elite 2, tivesse a proposta de promover uma análise mais profunda que a do primeiro, ao tentar enxergar a violência para além dos traficantes da favela, a obra acaba permanecendo no mesmo erro do primeiro: não deu voz à periferia. Não houve, dentre todos os personagens de ambos os filmes, a voz de quem sofre diretamente com a “guerra do tráfico”, os moradores das favelas. No primeiro, quando se discute violência policial, são os jovens brancos estudantes de Direito da PUC que reclamam, numa sala de aula, da abordagem que eles, jovens brancos universitários, sofrem da polícia.

Já as mortes de jovens negros na periferia são vistas pelo Capitão Nascimento, o detentor da narrativa, como imprescindíveis para o combate à violência, mesmo que um suspeito esteja rendido pelo batalhão, como o personagem Baiano, que, deitado no chão, já atingido por uma bala do Bope, é morto com um tiro de calibre 12 na cabeça, disparado pelo novato da corporação, André Matias (interpretado por André Ramiro). Essa execução serviu como forma de batismo no grupo e é a última cena do primeiro filme, fim da questão. Em vez de ser levado a julgamento, o vilão foi morto. Caso encerrado. Como diz a frase repetida no roteiro, “missão dada é missão cumprida”. E o humano foi coisificado. Talvez não seja à toa que, em 10 anos, as mortes de jovens negros no Brasil tenham aumentado em 23%, configurando-se um genocídio; enquanto as de brancos caíram 6,8%.

Em seu propósito de explicar a violência a partir da corrupção, sempre responsabilizando o “sistema”, Tropa de Elite 2, lançado uma semana após o primeiro turno das eleições de 2010, entregou uma visão categórica e restrita, também bastante disseminada hoje em dia, a ideia cristalizada de que todos os políticos são corruptos, levando a uma descrença generalizada na política e ao voto em candidatos que se apresentem como “não políticos”. No filme, o único representante público decente é Diogo Fraga, interpretado por Irandhir Santos e inspirado em Marcelo Freixo (PSOL-RJ), professor de história que se tornou deputado.

Em parte, esse filme cumpriu uma função importante: fez a primeira denúncia de grande proporção das milícias no Rio de Janeiro. Há duas cenas praticamente premonitórias, afinal estamos falando de 2010. Em depoimento na Câmara dos Deputados do Rio, o personagem Diogo Fraga acusa o fictício governador de corrupção e ligação com as milícias. No final de 2016, o governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral Filho era preso sob acusação de corrupção e, em seguida, surgiram denúncias de vínculo com esses grupos paramilitares. Em outra dramática coincidência, Diogo Fraga, que fez a acusação desses grupos de extermínio, sofre um atentado tão semelhante ao assassinato de Marielle Franco (PSOL-RJ), que traz frio à espinha de quem revê o filme em 2018.

Baseado no livro Elite da tropa (2006), escrito pelos ex-policiais André Batista e Rodrigo Pimentel, em parceria com o antropólogo Luiz Eduardo Soares, o filme teve roteiro escrito pelo diretor José Padilha e por Bráulio Mantovani (Cidade de Deus). A ideia inicial era a de que o Capitão Nascimento tivesse o mesmo peso na trama que os personagens Neto e André, aspirantes ao Bope. José Padilha queria que Wagner Moura interpretasse Neto, mas o ator considerou que o papel deveria ser para alguém mais jovem e assim escolheu interpretar o Capitão Roberto Nascimento. Ao final das filmagens, ficou evidente para o diretor que o personagem teve sua importância impulsionada pelo desempenho de Moura. A forma encontrada para torná-lo protagonista de vez foi incluir a narração em primeira pessoa – recurso que acabou contribuindo para validar o comportamento feroz do personagem.

“O Tropa fugiu do estereótipo marxista do cinema nacional, dado que não teve como protagonista um herói excluído pelo sistema capitalista. Na cinematografia brasileira anterior ao Tropa, o protagonista era sempre o menino de rua (Sandro de Ônibus 174 é um exemplo), o pequeno marginal, o preso político ou o militante antiditadura. Um policial protagonista era impensável. O Tropa quebrou este paradigma e elegeu um policial particularmente violento como personagem principal. E mais, tentou explicar a lógica por trás do comportamento deste policial, enquanto mostrava as violências e atrocidades que ele cometia contra os excluídos. Ao fazer isto, o Tropa abriu um campo temático novo, ignorando a tradicional patrulha de esquerda, que sempre tentou e ainda tenta pautar o foco dos filmes nacionais. Mexeu em um vespeiro, daí a polêmica. E, no entanto, o Tropa nunca foi um filme de direita”, defendeu José Padilha numa entrevista.

Os dois Tropa de Elite não foram, supostamente, idealizados como filmes de direita, mas terminaram colaborando com o pensamento da extrema direita, o que evidencia, mais uma vez, a função que o cinema exerce nas sociedades, não somente como objeto de entretenimento, mas como veículo propulsor de ideologias. Os nazistas descobriram isso logo cedo. Investiram em filmes que retratassem o poderio do exército alemão antes da Segunda Guerra. Eles foram dirigidos por Leni Riefenstahl e promovidos pelo ministro da propaganda Joseph Goebbels.

Impressionados com esses registros, países aliados, como a Inglaterra e os Estados Unidos, apostaram também em produções audiovisuais com o objetivo de incentivar os jovens a se alistarem, de agregar o país em prol da vitória e também de demonstrar a força de seu exército. Hollywood disponibilizou os seus melhores diretores da época (Frank Capra, John Huston, John Ford, William Wyler, George Stevens) para que cobrissem o evento histórico.

Acostumados ao ambiente do cinema, esses cineastas perceberam rapidamente que havia algo muito maior do que uma esperada imponência da guerra. Descortinaram um drama humano sem precedentes, algo que precisava, inclusive, de uma baita edição para não assombrar o público norte-americano e amedrontar os recrutas. Uma dessas produções, o filme Let there be light (1946), de John Huston, revelou, pela primeira vez, os traumas de guerra dos soldados. Foi censurado. Esse curta-metragem, uma raridade, hoje está disponível na Netflix como um extra de Five came back (2017), documentário sobre a empreitada dos cinco cineastas. Já as filmagens de George Stevens foram responsáveis por revelar ao mundo o que, de fato, acontecia nos campos de concentração. Seus registros viravam as provas que tornaram possível o julgamento dos nazistas em Nuremberg. A ideia daqueles filmes era exatamente essa: derrotar o fascismo.

O niilismo que tomou conta do Capitão Nascimento no Tropa de Elite 2, quando ele descobre a corrupção generalizada no “sistema”, envolvendo governo, imprensa, polícia, milícia, destrói a sua crença, que ele entende como nobre. Mas a sua crença está firmada na ideia de que a violência deve ser combatida com a violência. Porém, a Colômbia, que um dia já foi de Pablo Escobar, provou que não. A criminalidade pode ser reduzida através de outras medidas, inclusive com a arte e a cultura. Foi o que fez Jorge Melguizo, ex-secretário das pastas de Cultura Cidadã e Desenvolvimento Social de Medellín, um dos gestores-chave da transformação radical da capital colombiana, que, em 27 anos, reduziu os assassinatos em 95%.

Melguizo concedeu entrevista à jornalista Olivia Mindêlo, editora do site da Continente. A conversa será publicada em uma das próximas edições da revista Continente. “A cultura é transformadora, porque nos permite apreciar o valor da vida e aprender a viver com o outro”, disse, em um trecho. Quem for gestor das áreas e não acreditar nisso, por favor, pede pra sair, parceiro.




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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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