Matéria Corrida

Testemunho de Eduardo Araújo

TEXTO José Cláudio

07 de Janeiro de 2019

'Casa do sítio', óleo sobre tela, 55 x 70 cm, 1989

'Casa do sítio', óleo sobre tela, 55 x 70 cm, 1989

Imagem Eduardo Araújo/Reprodução

Há livros que a gente lê, que a gente leu, que a gente já leu e não vai mais ler. Ficam amontoados feito casca de coco de que já se bebeu a água, comeu a laminha, não tem mais o que fazer com eles. Foram exauridos à primeira leitura, principalmente livros juvenis, lidos na adolescência, como de Tarzan ou os de Karl May. Há livros que a gente nunca deixa de ler. Imitação de Cristo, por exemplo, de que tomei conhecimento no ginásio no Colégio Marista, parei de ler durante décadas e virou meu livro de cabeceira, a que retorno quando não estou lendo outra coisa. Ou mesmo lendo outra coisa. Há livros que já li mais de dez vezes, como A morte de Ivan Ilitch. Mas leio e só volto a ele depois de algum tempo, cerca de um ano.

Esse do pintor Eduardo Araújo não é para ler, é para conviver com o autor como presença constante. Não tem começo nem fim, tanto faz hoje como amanhã como sempre. Você pode pegar em qualquer trecho que é a mesma coisa. O autor estará anunciando grandes mudanças na vida, garantindo que a partir de agora, de hoje, o mais tardar em dois dias vai tomar tais e tais atitudes, como outras anteriormente que não foram cumpridas mas agora são em definitivo, num engenho onde está construindo um atelier na beira do rio ouvindo o som das águas na zona da mata ou no sertão ou no sul da Itália olhando o Mediterrâneo ou o Adriático, país cuja cidadania cogitou adotar, e assim de década em década, atribuindo muita importância ao passar dos anos, à mudança de idade, acumulando ganhos de que faz a contabilidade, delação premiada pela culpa de ter vivido esse tempo todo. Ah, mas agora a escrita vai ser outra! E fica tudo na mesma. Como condenado a si próprio.

Me lembra Tiziano que, longevo, acho que foi Carybé quem me disse, à beira da morte, pedia a Deus mais um dia para concretizar sua vida de forma definitiva, sentimento enfim de todos nós mortais, não se tratando de realização profissional ou construção de uma obra mas da inútil busca da felicidade que já dizia Santo Agostinho não poderá ser encontrada, pelo menos na concepção dele, nesta vida, um estado permanente, imutável, apenas possível depois da morte, na eternidade, pois o simples fato de poder ser destruída pela imprevisibilidade da vida já impede sua existência. Mas desçamos de teologias. Nesse tirar de si a pintura, é como se fosse uma verdade muito íntima que precisasse ser desentranhada ou virtude inalcançável, uma ascese que tivesse na pintura, gravura, escultura, uma prática destinada não ao aprimoramento dessas artes, ou também isso, mas principalmente à santidade, à perfeição moral, sem nenhuma relação com lucro material, dinheiro ou outro bem que se receba em troca, nem mesmo a fama, que essa pode ser transformada em dinheiro. Quando fala de exposições, trata das providências, do período imediatamente anterior, da preparação das peças a serem exibidas, até da dificuldade de transporte, mas nunca da exposição ela própria: se teve gente, se houve vendas, se houve aceitação do público, se saiu no jornal, com maior ou menor destaque, algum comentário relevante, como se isso fosse coisa menor ou indigna, extrapolasse sua competência. Aliás, como disse Cícero Dias, do tempo de senhor de engenho, arte era para dar. E era difícil porque a pessoa que recebia era como se participasse de corrupção passiva e o fato de receber um quadro era como se assinasse uma promissória sem data nem valor determinado. Quem sabe para que não lhe seja imputado algum propósito menos nobre, pinta como se já tivesse morrido há mais de sessenta anos e sua obra fosse de domínio público.

Acompanha, ao longo desse seu testemunho, uma voz subliminar recitando o Eclesiastes: “tudo é vaidade”, “não haverá mais lembrança do sábio do que do tolo”, “que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol?”

Eduardo não dispensa uma boa leitura e não deixa de registrá-las neste seu Testemunho, ao lado dos quadros que lhe serviram de referência, como as paisagens de Constable, a escultura grega numa viagem a Atenas, “as maravilhas do renascimento italiano”, Monet no Museu Marmottan (Paris). Milhares, como na vida de qualquer pintor: já dizia Lionello Venturi que ninguém aprende pintura olhando pela janela mas sim vendo quadros de outros pintores.

“Toda boa arte contém tanto elementos clássicos como românticos, ordem e surpresa, intelecto e imaginação, consciência e inconsciência” (Henry Moore no catálogo da exposição do pintor Ivon Hitchens). Exercícios de modelo vivo nos cursos livres da Chelsea School of Art (Londres). “Arte é um recolhimento espiritual que requer uma dedicação total, um verdadeiro sacerdócio e uma alma despojada e pura” (Cézanne). Miró. “E ainda Kandinsky em Oxford, onde maravilhado constatei que ele também se iniciou na pintura tardiamente”.

“A vida deve ser sempre genuinamente nova. Nada deve nos recordar outras existências. Devemos experimentar a ilusão de trabalhar no absoluto” (Gide). A Última Ceia de Leonardo da Vinci (Milão). Modelo vivo na Accademia di Belle Arti di Bologna, onde foi professor Giorgio Morandi. “Ser artista é não contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e que resiste confiante aos grandes ventos da primavera, sem temer que o verão possa não vir. O verão vem. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão calmos como se estivessem diante da eternidade” (Rilke). As citações são sempre excelentes. Goethe: “Existem excelentes criaturas que nada podem fazer sem reflexão ou de improviso, a sua natureza exige que todos os assuntos sejam profundamente meditados em sossego. Em geral estes talentos deixam-nos impacientes porque raramente alcançamos deles o que de momento desejamos. Contudo é dessa maneira que se atinge o ápice”.

Eduardo tem infinito pudor de falar da vida real. Por isso o fato ganha a maior relevância. “O encontro no Catimbau com Cibele, com direito até a um cometa, foi uma bela dádiva que recebi de braços abertos. A maturidade agora tem outro respiro e outra beleza.”

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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