Matéria Corrida

Pintura por encomenda

TEXTO José Cláudio

03 de Janeiro de 2018

'Última ceia', de Maurício Arraes. Cliente exigiu regada a escocês

'Última ceia', de Maurício Arraes. Cliente exigiu regada a escocês

FOTO Reprodução

São tantos começos e recomeços que não sei por onde começar. Só sei que estávamos o pintor Maurício Arraes, residindo este no Rio de Janeiro na época, conversando em casa do pai dele, Miguel Arraes, no Poço da Panela, Recife.

Talvez valha lembrar que o meu conhecimento com a família Arraes não teve nada com política. Um parente longe dos Arraes, Sérvulo Esmeraldo (Crato, 1929-Fortaleza, 2017) e eu havíamos exposto no Clubinho, São Paulo, década 1950. Foi ele tirando a exposição dele de gravura e eu botando a minha de desenho nas mesmas paredes, ocasião em que nos conhecemos. Ele pegou uma bolsa para Paris e eu para Roma onde cheguei Dia de Finados 1957, só para nos situarmos quanto a datas. Quando minha bolsa terminou, ele me chamou para Paris, onde ele vivia tomando conta de casas de brasileiros que saíam de férias. Destas, me cedeu duas: uma de Hamilton Ferreira, que trabalhava na ONU ou na UNESCO, e outra de Violeta Arraes, que eu julgava de família francesa porque pensava que “Arraes” se pronunciava “arré”. Ainda mais por ser casada com alguém que se chamava Pierre Gervaiseaux. Quando fui apresentado a ela, caprichei na pronúncia: Violeta “Arré”. Ela me perguntou: “Você é do Recife?” “Sou.” Ela: “Nunca ouviu falar de Miguel Arraes?” “Não”. Eu não sabia nem o nome do presidente do Brasil.

Voltando a Maurício. Uma noite ele disse: “Vem pra cá. Estou sozinho aqui”. Descrição da cena: terracinho de detrás de casa, Poço da Panela, rede em diagonal de onde o pintor protestava contra a minha disposição de pintar por encomenda, eu numa cadeira junto da parede, que não gosto de dar as costas para o vento, e outra cadeira, vazia, de costas para o escuro do quintal. Essa decisão de pintar por encomenda, que eu acabara de comunicar ao colega, me ocorrera num lugarejo, São Carlos, Rondônia, 1975, e a conversa com ele Maurício no terracinho deve ter sido algum tempo, não sei quanto, depois.

Devia estar havendo guerrilha, ou desconfiavam que houvesse, e em todas as cidades e vilas do Rio Madeira o nosso barco era detido. Um barco atípico, nem comprava nem vendia, um casal de americanos, Ronald Heyer, do Smithsonian Institution Washington, e sua mulher, e outro de paulistas, Paulo Vanzolini e Francisca do Val, zoólogos com a finalidade de pegar lagartixa, não dava para acreditar. O delegado, Seu Felizardo, amanhecia dentro do barco e saía ao escurecer. Eu ficava pintando e os outros entravam na mata para pegar bicho. Um dia Seu Felizardo me disse: “Eu queria ter um quadro”. Perguntei qual quadro. “Um índio flechando uma arara.” Pintei na hora, à sua vista. Ele ficou na maior felicidade, saiu correndo com o quadro que mandou despregar de chassi e disse que ia pregar atrás da janela. Em resumo: liberou o barco. Aí me deu aquele estalo. Sempre nos propusemos fazer uma arte ao alcance da compreensão de todos mas não perguntamos o que querem que pintemos. Aí está por que não conseguimos vender: porque continuamos a impor-lhes a nossa estética!

Mas agora, argumentava Maurício, que enfim escapamos da tutela do cliente, que podemos trabalhar sem nos amesquinharmos, que conquistamos a liberdade total, você quer voltar a essa sujeição? Aí entra em cena uma terceira personagem. De pijama de listras azul claro, pijama tradicional de paletó de mangas compridas e calças compridas, chinelo, charuto, que estivera fumando no escuro do quintal, Miguel Arraes. Senta na cadeira do outro lado da rede e diz: “Zé Cláudio tem razão”. E conta: “Quando Mao Tsé Tung assumiu, quis conhecer todos aqueles capitães que haviam lutado ao lado dele durante anos mas não conhecia pessoalmente, país do tamanho da China. Um apresentou-se e a primeira pergunta que Mao Tsé Tung lhe fez, assim que declarou o nome, foi: ‘Qual é a sua religião?’ O visitante, sentindo-se ofendido, julgando que Mao o tivesse chamado de ignorante, respondeu: ‘Exelência, eu sou marxista!’ ‘Tá errado’ tornou Mao Tsé Tung: ‘Se você não tiver a religião do seu povo, jamais conseguirá dialogar com ele!’ ”

Escrevo esta crônica em dez./2017. Há poucos dias fui ao lançamento dos livros Gordos, magros e guenzos, de José Almino Alencar e Contos da era das canções e outros escritos de Aluízio Falcão e encontro Maurício Arraes que me comunica estar pintando um quadro por encomenda. “Olhaí, olhaí!” exclamei cantando vitória, como se desde Giotto e desde quando se inventou pintura não se pintasse por encomenda. E o pior, disse Maurício, mostrando-me no celular foto do quadro começado, uma Ceia Larga de 0,70x1,60m, onde observei que o Judas não estava com o cotovelo em cima da mesa como é tradição desde a Ceia de Da Vinci. “Mas está com a bolsa do dinheiro”, me fez ver no canto direito (de quem vai) da mesa oval. Também pensei que foi por causa desse cotovelo de Judas que até hoje, dizem, vou perguntar a Lecticia Cavalcanti, é feio botar cotovelo em cima da mesa. “Pior”, disse Maurício, “são as exigências.” O cliente, o dono do quadro, queria que na mesa houvesse as comidas de que mais gostava e não só pão e vinho. Imaginei logo uma Santa Ceia com chambaril, buchada, inclusive a cabeça do bode para a gente comer o miolo, sarapatel e quem sabe para tira-gosto uma farofa de tanajura. Mas parece que chegaram a um acordo. Menos quanto à bebida que ele exigia, em vez de vinho, escocês.

Engraçado que, consultando especialistas, um padre e um pastor batista, me disseram que isso tem todo cabimento, porque na ceia de Páscoa se botava do bom e do melhor. Portanto, metaforicamente, podia na pintura ter até peru, bicho do continente americano.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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