Entrevista

“Sou a pessoa mais desempregada que eu conheço”

O cineasta Elia Suleiman é uma figura única e sua autenticidade contradiz não só o que alguns esperam de um artista palestino, como atesta uma profunda visão de mundo, conforme lemos a seguir

TEXTO Luciana Veras

24 de Janeiro de 2020

O palestino Elia Suleiman é um desses cineastas imprescindíveis para entender o mundo contemporâneo

O palestino Elia Suleiman é um desses cineastas imprescindíveis para entender o mundo contemporâneo

Foto Natali Hernandes/Agência Foto

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Minha conversa com Elia Suleiman
só aconteceu porque houve um atraso no voo que o transportava para São Paulo, onde ele seria homenageado pela 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; e, depois, porque eu mesma perdi o avião que me traria de volta ao Recife. Ou seja, muito embora a entrevista houvesse sido agendada com a assessoria do festival para uma sexta-feira, foi só graças aos contratempos que o encontro, ocorrido na manhã do último domingo de outubro de 2019, pudesse ocorrer. Na verdade, graças aos percalços da vida e ao meu cunhado Márcio, que me levou na garupa da sua moto por um percurso de 11km, transpostos em apenas 19 minutos (a vida, bem sabemos, nada tem de estanque).

Contei essa história ao próprio cineasta palestino tão logo o conheci – na ocasião, ele fumava um cigarro do lado de fora do hotel que funciona como QG para os convidados da Mostra de São Paulo. Ele perguntou se Márcio, ninja no trânsito paulistano, não poderia levá-lo ao aeroporto - infelizmente, meu super versátil cunhado não estava disponível para esse corre, mas mesmo assim Suleiman sorriu, algo que seu personagem em O paraíso deve ser aqui (It must be heaven, França/Catar/ Alemanha/Canadá/ Turquia/Palestina, 2019) não faz. 

Neste longa-metragem que lhe deu uma menção especial no último Festival de Cannes (bem como o prêmio da Fipresci, da federação internacional de críticos), em cartaz no Cinema da Fundação, Suleiman interpreta alguém que pode ser ele mesmo, identificado apenas pelas iniciais ES. Um homem de meia idade que sai da sua Palestina para morar em Paris e depois em Nova York, em uma travessia que o leva a observar as complexidades e contradições de um mundo onde as relações humanas parecem resvalar para a superficialidade.

Com o mesmo humor inteligente e sutil que marca Intervenção divina (2002) e O tempo que resta (2009), e os mesmos questionamentos acerca dos nossos propósitos – quem somos, o que fazemos, como vivemos em um planeta em colapso? –, o filme é uma das pedras preciosas que a safra 2019 deixa de legado para um 2020 que se inicia sob o signo da resiliência. E, sim, para além da sua obra e dos não-lares que mantém ao redor do globo, Suleiman, que nunca terminou os estudos, falou sobre a vida, suas criações, suas influências, Buster Keaton, o fascismo e formas possíveis de resistência.


O diretor e ator é seu próprio personagem em O paraíso deve ser aqui (2019).
Foto: Divulgação

CONTINENTE Posso começar perguntando onde você mora? Qual o lugar que chama de lar?
ELIA SULEIMAN Começa assim, é? (risos). Está gravando? Bem, então vamos lá. Meu lar ainda é o lugar onde não moro. Basicamente, eu venho de Nazaré e Nazaré ainda é o lugar que chamo de lar, por falta de outros “lares”. Não é que eu more lá, é que apenas nasci lá. Certo? Numa certa noção, não seria se eu tivesse um outro lugar que estivesse chamando de “casa”, mas eu não tenho. Queria ter. Na verdade, faz uma década, ou duas até, que venho pensando onde é que eu gostaria de estar, um lugar onde eu pudesse dizer: “OK, é isso, estou aqui e não quero me mudar”. Mas a verdade é que cada lugar é como se fosse uma base.

CONTINENTE Certo, mas por exemplo, quando for embora do Brasil, você estará voltando para onde?
ELIA SULEIMAN Paris. Mas não é um lar. E nem sou francófono.

CONTINENTE Não? Sem amor pelo cinema francês ou pela culinária parisiense?
ELIA SULEIMAN Não. Até sou um cuisinier, mas não necessariamente pela cozinha francesa. E não, não amo o cinema francês, mas também não tenho o oposto do amor. Na verdade, não teve nada em particular que me atraiu. A razão pela qual moro em Paris é verdadeiramente circunstancial. Eu morava em Nova York, depois voltei a morar em Jerusalém, aí fiz meu primeiro filme e, em seguida, fui para Paris e fiquei um tempo em uma espécie de ateliê que me deram para que eu pudesse escrever meu segundo filme, Intervenção divina. E quando o filme terminou, eu estava vivendo em um apartamento que era para a produção e ficou para a pós-produção. Mas eu não sabia o que fazer. Não sabia para onde ir, não queria voltar para Nazaré ou para Jerusalém, e também não queria ir para Nova York. Então disse: “OK, posso alugar um apartamento aqui e ver o que acontece”. Fiquei lá. Dezoito anos depois, essa é a vida.

CONTINENTE Dezoito anos? Foi justamente na época em que você estava lançando Intervenção divina depois do prêmio em Cannes. Me lembro de ter visto o filme em 2002, 2003, no Festival do Rio.
ELIA SULEIMAN Sim, sim, eu estava lá. Foi a minha primeira vez no Brasil. E essa (Mostra de Cinema de São Paulo, em 2019) é a segunda vez.

CONTINENTE Imagino que tenha percebido muitas mudanças no nosso país.
ELIA SULEIMAN Sendo sincero, nem consigo lembrar direito o que vi para poder constatar as mudanças. (risos)

CONTINENTE Bem, você falou de Paris e de Nova York, cidades onde vive e onde também já morou, e ambas as metrópoles estão em O paraíso deve ser aqui. Qual era o seu propósito principal? A sua motivação para fazer esse filme?
ELIA SULEIMAN Hum… Não sei se normalmente eu tenho essa motivação. Acho que existem duas versões para responder a essa pergunta. E acho que não tenho essa pulsão. Tudo começa com uma imagem, um sentimento, uma sensação, começa com alguma coisa no interior... Um tipo de desejo. OK, não tenho esse tipo de prática em que eu digo que quero fazer um filme e faço. Não funciona dessa forma para mim. Eu apenas me questiono. Na verdade, passo a minha vida me questionando.

CONTINENTE Se questionando ou deambulando? (as palavras wonder e wander, de sonoridades muito parecidas em inglês, possuem significados bem diferentes – to wonder, se questionar, ou se mesmo se maravilhar, e to wander, que é perambular)
ELIA SULEIMAN Vivo minha vida andando por aí e me questionando, e acho que essas duas coisas estão exatamente no mesmo lugar. Essa é, na verdade, a minha profissão desde o primeiro dia. E acho que, estando alerta e inteiro, sabe, começo a absorver o ambiente, como uma esponja mesmo, e começo a perceber as coisas. E você sabe, tudo isso em combinação com o sonhar acordado. Provavelmente, sou a pessoa mais desempregada que conheço. Porque passo a minha vida sem fazer nada. Basicamente, sonho quando durmo e sonho acordado e imagino coisas. E, bem, depois surge um momento em que tudo que você escreveu e que sabe está na hora de sair. Porque algo dentro de você diz que chegou esse momento.


Cena do filme Intervenção divina (2002). Foto: Divulgação

CONTINENTE É esse o momento em que você decide partilhar o que compôs?
ELIA SULEIMAN Sim, de fato nem sempre eu sei como compartilhar minhas reflexões e minha própria solidão, e também a minha intensa alienação para o que tem acontecido com todos nós ultimamente. Esse meu último filme não é sobre nós, mas é também. E eu estava com um certo tempo para tudo que eu estava testemunhando e isso terminou se tornando um motor para dividir com o mundo, até mesmo para algum tipo de consolo. E é por isso que meu personagem é diferente em comparação com meus filmes anteriores. É como se fosse uma pessoa que vai sendo engolida pela realidade. Queria fazer assim porque queria justamente compartilhar tudo que estava sentindo.

CONTINENTE É. E ele é solitário e parece não se conectar com ninguém, mas está sempre observando. E há o silêncio. Seu personagem não diz uma única palavra, mas isso também diz muito. No mundo de hoje, estamos sempre conectados e há muito ruído, mas em O paraíso deve ser aqui você prefere o silêncio.
ELIA SULEIMAN Não sei se é uma preferência ou se é apenas meu jeito de pensar, de me expressar. Em primeiro lugar, nós tendemos a esquecer que a linguagem é apenas uma forma de comunicação, e a comunicação verbal também, e que existem outras tantas formas de linguagem com as quais podemos nos comunicar. E se formos pensar bem, na verdade passamos muito do nosso tempo sem falar. Então talvez essa seja apenas uma faceta da linguagem que eu experimentei. Em segundo lugar, acho que o fato é que gosto de maximizar a possibilidade do que o cinema é na sua essência, ou seja, a imagem. Então, tentei resumir, ao máximo, qualquer forma de informação que fosse linear e direta. Não tenho diálogos desse modo no filme, porque sinto que o espectador pode querer participar na composição da sua própria versão do roteiro, talvez falando consigo mesmo ou com outras pessoas. Mas isso não é uma estratégia, é uma sensação, uma experiência que teve início desde o primeiro dia em que comecei a fazer filmes. Também acho que o silêncio é reflexivo e meditativo. O que quero dizer é que, embora muito derive do silêncio, nem tudo vai ser alegre o tempo inteiro. Porque se inundarmos tudo com fala, com estridência, talvez isso nos faça perder questionamentos essenciais – por que estamos aqui? Isso tudo que chamamos vida significa o quê? Talvez esse filme seja a minha obra mais intensa e reflexiva, porque está a dizer algo que todos nós sabemos sobre o mundo. Todos nós vemos, mas não conversamos sobre nossas emoções. Apenas lemos as manchetes, mas não nos aprofundamos nem no mundo nem em nós mesmos. E acho que o filme é sobre a contemplação individual e não apenas sobre o que estamos testemunhando, que é tensão e polícia e fronteiras e revistas em qualquer lugar que estejamos.

CONTINENTE E tem aquela cena fantástica em que ele, ao ser parado na revista do aeroporto, age como um samurai.
ELIA SULEIMAN É o resultado direto da minha tremenda experiência em passar por check points. (risos)

CONTINENTE Seu personagem tem um olhar firme mesmo sem falar nada. Ele não exprime uma única palavra, mas aquela mirada é como se fosse um enigma para nós, pois nos espelhamos nos seus olhos. Isso constrói uma relação com o público.
ELIA SULEIMAN Não faço filmes para mim. Não faço filmes para impor ao público. Repudio essa ideia. Não quero passar informação que o espectador não precisa aprender por mim. Aliás, qualquer coisa pode ser aprendida a qualquer hora, em qualquer lugar. Então, não quero dar uma lição, e sim partilhar algo, o prazer de estar vivo no mundo, mas não de uma forma linear. Mas, ao começar do ponto de partida, como posso maximizar o momento do prazer? Para mim, a essência é o instante de prazer que você dá ao público e, se eles sentem isso, então podem partir em qualquer direção que queiram. Eles querem apenas rir do que estão vendo ou querem rir e refletir sobre? Cada emoção de um espectador tem a liberdade para viajar em qualquer direção. É muito importante para mim que o filme não coloque coisas dessa forma – tipo, agora vou fazer o público chorar. Pessoalmente, acho um insulto quando vejo um filme que está o tempo todo tentando se impor sobre mim. É como se estivesse subestimando minha capacidade de olhar, minha inteligência para, sei lá, ligar os pontos. Ou seja, aquele filme está assumindo, a priori, que eu sou ignorante, que não consigo sentir, ou pensar, ou mesmo ver. Então sou e ajo opostamente a isso. Quero reduzir ao máximo as possibilidades de imposição. Se você tem a sua ética em fazer um filme, então a experiência de vê-lo não deve ser como, sei lá, sair para dançar. É gratificante, para mim, ver as pessoas se conectarem ao filme pelo prazer de vê-lo, pelas sensações que as imagens emanam, e não porque aprenderam algo. Acredito que o aprendizado venha em outra vereda da vida, e não de algo que eu tenha feito.

CONTINENTE Vi seu filme numa sessão para a imprensa e quando terminou, tudo mundo estava meio mudo, meio “uau”. Daí saí da cabine e fui almoçar com uma amiga e ela disse que, por ter amado Intervenção divina, queria muito ver O paraíso deve ser aqui. Então, ela me perguntou sobre o que era esse filme. Respondi que o filme tinha você, o personagem com um olhar marcante, mas que era difícil conjurar as palavras para descrevê-lo. Era quase uma epifania, definitivamente uma experiência. E que uma possível descrição, bem sumária, seria dizer que é sobre um cara que viaja muito.
ELIA SULEIMAN Sim, se você colocar dessa forma, é bem simplista e vai reduzir o filme a um slogan. Que, no final das contas, não fará jus ao que ele é. Dá quase para dizer isso, mas, na verdade, esse é um filme difícil de publicizar (risos). Porque você pode até dizer que é isso mesmo, é sobre um homem que viaja muito, então a trama seria sobre essas viagens, pessoas, mas acho que o filme é uma experiência em si. E, ao assistir um filme, qualquer que seja, um bocado de narrativas pode emergir, não necessariamente a partir da frase que colocamos no cartaz.

CONTINENTE Mas em O paraíso deve ser aqui, você também está dizendo algo sobre o cinema, sobre as relações de poder nessa produção e também sobre práticas coloniais que ainda se perpetuam. Como produtor e cineasta, você ouve muito justificativas do tipo “esse seu projeto não é palestino o suficiente”?
ELIA SULEIMAN Sim. Esse tipo de anedota que está no filme se relaciona com algo que aconteceu quando eu decidi que queria virar cineasta. Naquele tempo, as pessoas de esquerda na França achavam que possuíam o copyright na causa palestina. E que só elas sabiam da Palestina. Então, lá chego eu, palestino, querendo fazer um filme, mas elas se portam como se eu precisasse de suas autorizações.

CONTINENTE Sério que isso aconteceu com você?
ELIA SULEIMAN Sim, sério. Para fazer o filme, eu teria que obedecer às regras deles e a suas ideias preconcebidas sobre o que os palestinos necessitam, ou sobre como a causa palestina deveria ser retratada. Acho que a parte mais interessante de tudo é que eles não confiavam em mim. Então, se recusaram a me produzir. É, é verdade: fui rejeitado por produtores franceses antes de fazer meu primeiro filme. Um dos motivos foi porque meu filme não mostrava a violência. Acho que eles queriam mostrar Gaza, os conflitos, a violência, e o filme era engraçado e humano. O que eles queriam? Que nós, palestinos, aparecêssemos sofridos e oprimidos. Agora, essas mesmas pessoas devem se arrepender de ter dito isso.


Cena de O paraíso deve ser aqui (2019). Foto: Divulgação

CONTINENTE Voltando ao filme, queria falar sobre a sua estrutura. As cenas podem ser vistas também como uma sucessão de esquetes, como em um filme mudo, e sempre quis perguntar a você sobre a comparação com Buster Keaton. É uma semelhança que você percebe e acolhe? Porque, assim como você em cena, Keaton era um ator muito sério, mas também muito divertido, com olhos que diziam bastante.
ELIA SULEIMAN Bem, tem sido assim desde o primeiro dia em que apareci. Logo de cara, as pessoas diziam que eu parecia com Buster Keaton. E não acho tão estranho, na verdade, mas eu nem o conhecia. Fui influenciado por diretores que não têm nada a ver com o meu estilo – Ozu, Bresson. São cineastas que faziam algo totalmente diferente do que faço, o que me leva a pensar que essa mistura de melancolia/humor talvez tenha simplesmente vindo da minha criação familiar. Havia muitos momentos felizes, mas também uma melancolia básica. E eu era o caçula, então talvez tenha absorvido isso com mais força. Meus pais eram, ao mesmo tempo, ternos e engraçados, mas não tinham relação com a arte – minha mãe era professora e meu pai, mecânico. Talvez meus irmãos fossem um pouco intelectuais e tenham me apresentado a uma determinada via de música que eles escutavam nos anos 1960. Eu era um garoto, mas, como eles ouviam Beatles e Bob Dylan e esse temperamento revolucionário da década estava sendo dado para as pessoas nas universidades, acho que isso chegou neles enquanto estávamos crescendo.

CONTINENTE E em você também, por tabela?
ELIA SULEIMAN Sim, também. Mas o que quero dizer é que o que eu faço não vem, necessariamente, de referências. E também não necessariamente de filmes ou do cinema. Pode vir da literatura, da experiência, da arte, de vários lugares. Mas eu não sei de onde vem o meu estilo. O que sei é que eu posiciono a câmera muito intuitivamente. Talvez como um pintor, que começa pigmentando a imagem e vai vendo e se perguntando: o que mais posso ter? Como pode ser mais coreografado? Tudo isso nunca veio de alguma fonte específica, acho que veio de tudo que me formou e que terminou constituindo meu jeito de filmar. E depois o que tenho que fazer é cavar mais e mais profundamente dentro de mim para descobrir mais verdades em potencial, ou mesmo as meias-verdades, e ver como se sente. Na essência, temos que ser muito sinceros sobre o que fazemos e como fazemos nosso trabalho. E depois, sim, podemos falar sobre arte, sobre a forma do filme... OK, O paraíso deve ser aqui tem as gags, tem Keaton, tem a coreografia, mas, essencialmente, ele começou com a seguinte pergunta: como posso ser verdadeiro e fiel a mim mesmo?

CONTINENTE Mas imagino que dentro dessa busca por verdade em você o humor tenha um lugar próprio, não? Porque esse filme tem muitas cenas divertidas. Como foi o processo de escrita?
ELIA SULEIMAN OK, não é lá uma palavra tão legal, mas eu tive muitos momentos gargalhantes nesse processo. Ria o tempo inteiro das minhas piadas. Então, era uma felicidade. Na verdade, acho que eu estava curtindo o processo de escrita porque estava rindo muito enquanto roteirizava e ficava imaginando, sabe? Imaginando e, na maioria das vezes, tendo a fé extrema de que às vezes você sabe, você tem certeza, de que está conectado ao seu espectador no grande cosmos. Mais ou menos, nós temos os mesmos sentimentos e as mesmas emoções sobre as coisas e eu ficava verdadeiramente meditando sobre o ponto de conexão entre mim e o meu público. Foi um momento feliz e me lembro de ter, na verdade, passado por vários momentos alegres me dando conta de que o humor pode ser essa conexão. De fato, tem muito humor nesse filme, acho até que mais do que nos meus filmes anteriores. Que sim, são engraçados, mas esse é mais.

CONTINENTE As pessoas riram bastante na sessão de imprensa.
ELIA SULEIMAN Sim, porque eu também estava rindo muito enquanto estava escrevendo esse filme. Eu estava, de verdade, apreciando cada minuto daquele processo. Eu não tinha lá muita certeza se conseguiria rodar o filme, porque eram muitas cidades, muitas viagens, mas fico muito feliz por ter conseguido. E acho que talvez tenha ficado mais feliz ao constatar que, se tinha algo que me mostrava que a audiência iria rir ao ver o filme, é a certeza do quão desesperadas as coisas estão. Você sabe, quando tudo está realmente desalentador, todos nós gostamos de nos acabar numa risada. E você e eu estamos vivendo em uma era de desespero, então acho que a minha jogada no momento foi, OK, vamos lá falar sobre paraíso, mas assim, com uma lâmina que corta dos dois lados.

CONTINENTE Estamos mesmo vivendo em um mundo desesperador, e precisamos de mais risadas e empatia, e acho que seu filme aponta para esse caminho. No final, O paraíso deve ser aqui termina com uma linda sequência de jovens dançando, uma música vibrante, as pessoas felizes na pista de dança, partilhando energia naquele que talvez seja um dos espaços mais democráticos do mundo, e o seu personagem presente, observando e absorvendo tudo aquilo. Presumo que nada está por acaso no seu filme, então pergunto: como decidiu incluir essa cena?
ELIA SULEIMAN Sim, sim, tem esses jovens que são a nova geração, que não estão se identificando com o modo como o futuro está sendo construído. Quer dizer, não apenas os palestinos, até porque esses jovens existem aonde quer que eu vá, mas na verdade eu achei esses palestinos em Haifa. Bem, eu sou de Nazaré, mas Nazaré não é mais uma cidade tão legal, a verdade é essa. Haifa, por sua vez, é a nova metrópole cosmopolita muçulmana. Os melhores bares, as melhores galerias, os melhores restaurantes são palestinos. E algumas pessoas de Haifa vieram trabalhar no filme, então elas me levaram para os melhores lugares de farra. E lá fomos nós, pulando de bar em bar, e terminei que fiquei completamente destruído em uma noite, mas elas disseram que ainda havia um bar que eu não tinha visto e precisava conhecer. Então lá estava esse bar, com essa fantástica luz azul, e havia sete ou oito pessoas dançando e bebendo como se não houvesse amanhã. Ah, e claro que era um bar lésbico. Porque os bares lésbicos são os melhores.

CONTINENTE Sério? Que incrível. No Recife, cidade onde nasci e moro, costumamos dizer que sapatão é revolução (explico para ele o que significa “sapatão”, traduzindo para butch ou mesmo dyke, e ele ri).
ELIA SULEIMAN Nesse bar, as pessoas estavam pegando fogo! Então, sentei e comecei a observar e uma garota que trabalhava comigo percebeu tudo e me perguntou: “Você vai filmar aqui, né?”. Ela me viu indo para um canto e me abaixando já pensando onde iria botar a câmera. Então foi isso, fechamos o bar num outro dia e rodamos a cena. Eu até levei algumas das mesmas pessoas que estavam dançando nessa primeira vez. A imagem é realmente incrível, fantástica até, porque aquelas pessoas não possuíam algum conceito para estar ali, sabe? Elas são organicamente construídas para um tipo de ativismo universal. A causa palestina, para elas, não está ligada à National Geographic. Não é a Palestina sob demanda, é sobre ser palestino e estar conectado ao mundo na contemporaneidade. Então, aqueles jovens são pessoas muito orientadas nos debates sobre gênero, raça, sexo, cor. E são até mesmo ligadas a outras culturas ao redor do mundo. E não precisaram interpretar nada para mim: elas são assim, eu apenas cheguei e as filmei. E essa geração mais jovem, orgânica no ativismo e em como se posiciona no mundo, são a resistência. Diante do fascismo generalizado, de tudo que vivemos ao longo dos últimos 70 anos com Israel, elas talvez sejam as únicas que estejam se mantendo de uma maneira festiva. Alegre. E isso é muito importante. Elas são verdadeiramente resilientes. Não pertencem a partido algum, não defendem idelogia política, mas são a resistência. Isso é um assunto sério para Israel, porque o que vão fazer com essas lindas pessoas jovens que amam dormir com todas e todas e bebem muito e que dançam e fazem farra até o amanhecer? Vão acusá-las de terrorismo? Elas são a resistência. O futuro.

CONTINENTE Parece que você também está descrevendo o Brasil, cujo atual presidente é um cidadão que adora se gabar das suas conexões com Israel e também se preocupar com quem os jovens estão fazendo sexo... O fascismo está generalizado.  
ELIA SULEIMAN Mas é isso mesmo, a verdade é que muitos países agora têm políticos fascistas no poder e gerações mais jovens que estão basicamente mandando-os se foder. Eu não sei aonde vamos parar, mas se você me perguntar, te confesso que isso é o que tem me dado esperança. Esses jovens, a música, a dança... Essa resistência. E foi por isso que quis trazer o escopo dessa cena para o espectador. Sim, é verdade, as coisas não estão tão legais no mundo inteiro, mas assistam isso, políticos fascistas, que isso vai lhes atingir diretamente, filhos da puta.



LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.

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