Entrevista

“Foi uma aula ouvir Humberto Mauro falando”

Sobrinho-neto de um pioneiro do cinema brasileiro, André di Mauro conversa a respeito do documentário que fez sobre o realizador que ensina sobre nosso imaginário cinematográfico

TEXTO Marcelo Abreu

20 de Dezembro de 2018

O cineasta André di Mauro

O cineasta André di Mauro

Foto Divulgação

As imagens icônicas de clássicos do cinema como Brasa dormida (1928), Ganga bruta (1933) e O descobrimento do Brasil (1937) ressurgem agora para as novas gerações no documentário que leva o nome de Humberto Mauro (1897-1983), considerado o grande pioneiro do cinema brasileiro, deixando filmes como os mencionados acima. O longa-metragem Humberto Mauro foi realizado pelo ator, produtor e diretor de cinema André di Mauro, sobrinho-neto do cineasta mineiro.

Redescoberta pela geração do Cinema Novo nas décadas de 1950 e 1960, a obra do realizador de Cataguases ajuda a povoar o imaginário de todo mundo que faz cinema no país até hoje. O filme é rico em imagens que retratam o Brasil profundo do interior de Minas Gerais no começo do século XX. Humberto Mauro se notabilizou pelos filmes que fez em sua cidade, antes de trabalhar na produtora Cinédia, no Rio de Janeiro, e partir para os documentários educativos realizados para o Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince).

Exatos 80 anos após Humberto Mauro ter participado do Festival de Cinema de Veneza, na Itália, seu sobrinho-neto apresentou em setembro, no mesmo evento, o documentário onde resgata a história do seu tio-avô. Além de um vasto currículo como ator em novelas e no teatro, André di Mauro, 54 anos, atuou em muitos filmes e produziu e dirigiu curtas no cinema. Este é seu primeiro longa como diretor. Nesta sexta (21/12), ele está no Recife, no Cinema da Fundação do Derby, para apresentar seu filme e participar de um debate na 21ª Mostra Retrospectiva/Expectativa. No dia seguinte, o documentário tem exibição no Cinema do Museu, em Casa Forte.


Humberto Mauro. Foto: Reprodução

Nesta entrevista, concedida durante o Fest Aruanda, em João Pessoa, André di Mauro explica o trabalho de reconstituição da história do tio-avô, fala sobre o legado deixado por ele e as inovações estéticas apresentadas pelo documentário.

CONTINENTE Como surgiu a ideia do filme?
ANDRÉ DI MAURO Em 1997, para comemorar o centenário (de nascimento) de Humberto Mauro, escrevi um livro sobre ele. Eu tinha já a intenção de fazer um filme para homenageá-lo, mas a primeira ideia era utilizar atores, tinha feito um roteiro de uma biografia romanceada. Alguns personagens eram sintetizados. Tenho o projeto há muitos anos, inclusive comecei a fazê-lo com Fábio Barreto. Mas seria muito caro fazer um filme de época. Recentemente, conversando com uma amiga, surgiu a ideia de fazer um documentário e depois o filme. O projeto começou a caminhar muito rapidamente em 2015. Acabou tomando rumo inesperado e tem ido superbem. Superou as expectativas. Consegui uma entrevista completa de Humberto Mauro no Museu da Imagem e do Som (MIS) e foi muito arrepiante, sobretudo os trechos nos quais ele manda mensagens para o futuro. Na entrevista completa, ele fala: “Se tiver um parente meu ouvindo lá pelo ano de 2016...”. Imagina eu ouvindo isso agora. Fico todo arrepiado. Mesmo vendo várias vezes durante a montagem do filme, era impossível não me arrepiar. É tipo uma cápsula do tempo, ele pensava no futuro. O filme tem o lado criativo e o lado afetivo. Por ser um parente, mexe com muitas coisas.

CONTINENTE O acesso às imagens dos filmes realizados nos anos 1920 e 1930 foi difícil?
ANDRÉ DI MAURO Tive muita facilidade por ser parente. As portas se abriram no Centro Técnico Audiovisual (CTAV), ligado ao Min e à Secretaria do Audiovisual, onde o Zeca Mauro, filho de Humberto, trabalhou muitos anos. O CTAV, onde estava grande parte do material, não deixa de ser uma consequência do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), onde Humberto trabalhou. Eu tinha as autorizações todas da família, tive acesso à boa parte do material já telecinado. Tive também de correr atrás de outras coisas. Tem material que surgiu no processo, como as imagens inéditas dele indo para Veneza e os áudios do MIS. O que deu muito trabalho foi a seleção desse material. Entre longas, curtas e médias, trabalhei em cima de uns 100 filmes. Ver isso tudo, fazer uma primeira seleção e fazer a montagem deu muito trabalho. Tivemos cuidado de escolher material de qualidade, para, mesmo em telas enormes, poder exibir com boa qualidade. Alguns filmes, como Brasa dormida e Canto da saudade, estavam em vídeo no formato Betacam, tive de redigitalizá-los inteiros.

CONTINENTE A opção de usar basicamente imagens dos filmes de Humberto Mauro, sem entrevistas, sem narração – salvo o áudio da voz dele – e montar tudo isso com a música, dentro de uma tensão, de um crescendo, lembra o recente documentário Cinema novo, de Eryk Rocha. Isso já configura uma tendência recente? Você tinha consciência disso?
ANDRÉ DI MAURO Tinha consciência e acho que é uma tendência. O documentário agora está com uma força muito grande e começa a ter uma nova forma de contar essas histórias. Quando assisti a Cinema novo, vi uma linha do que eu pretendia fazer, que é usar imagem dos filmes sem as chamadas talking heads, as cabeças falantes, que tiram um pouco o ritmo. Cheguei a radicalizar, fizemos entrevistas com pesquisadores, biógrafos, pessoas que participaram dos filmes de Humberto, mas acabei tirando as entrevistas todas e não usando fotos, nada, seguindo esse caminho. É uma nova tendência, sim, surgindo no documentário.

CONTINENTE Já há um nome para isso, um rótulo?
ANDRÉ DI MAURO Acho que não (risos). Eu tenho falado em “narrativa sensorial”, porque é como consigo explicar o que aconteceu. Sensorial porque a gente usa muito imagens, apesar de termos (em áudio) uma longa entrevista de Humberto no Museu da Imagem e do Som norteando as imagens, mandando mensagens para o futuro. Tem muito trechos sem fala: é música e imagens. Tentamos tocar as pessoas. Não deixa de ser um documentário que mostra um universo, mas de uma forma não tão óbvia ou didática. Um dos problemas que sempre me incomodou em documentários é o excesso de didatismo que, às vezes, deixa você cansado, enjoado. Quando você não dá tudo de uma vez, quando a pessoa vai percebendo, sempre com uma coisa a resolver no cérebro, você cria uma tensão maior, como nos filmes que não são documentários.

CONTINENTE Como na própria vida, onde a gente vai decifrando as coisas.
ANDRÉ DI MAURO Exatamente. A gente não quis entregar logo tudo. Ao assistir uma segunda vez, a pessoa vai descobrindo outras coisas.

CONTINENTE Curiosamente, o filme estreou em Veneza, onde Humberto Mauro foi o primeiro brasileiro a representar o país num festival internacional, em 1938.
ANDRÉ DI MAURO Exatamente 80 anos depois. A gente competiu na categoria Melhor Documentário sobre Cinema e perdemos para Peter Boganovich, o que foi uma honra (risos). Mas só ser selecionado para Veneza já foi uma coisa incrível. É um dos festivais mais fechados do mundo, muito disputado. Ter conseguido entrar e estrear o filme lá foi fantástico. Abriu muitas portas. Só este mês, a gente participou em oito eventos em cidades como Havana, Teerã e Buenos Aires. Estivemos em Brasília, Rio, São Paulo. A previsão de estreia no circuito é 30 de abril de 2019, quando Humberto Mauro faz aniversário.

CONTINENTE Você conheceu Humberto Mauro em vida?
ANDRÉ DI MAURO Tive poucas vezes com ele pessoalmente, duas ou três vezes, na infância, numa casa de praia no estado do Rio. Ele vinha de Minas e eu do Rio de Janeiro, com a família. Outra vez, nos encontramos na casa do meu avô. Algumas coisas me marcaram porque ele falava no rádio amador e a gente ouvia na casa do meu avô aos domingos. Uma vez na escola, projetaram o filme João de Barro – que incluo no documentário um trecho – e, no final, apareceu o nome do meu tio. Eu criança, aquilo causou um impacto grande. Depois, já nos anos 1980, teve uma mostra sobre ele em Cataguases, que eu compareci, já adulto. É aí que começou essa ideia de pesquisar e fazer coisas sobre ele.

CONTINENTE Algum novo projeto?
ANDRÉ DI MAURO Em cinema, tem A maldade está nos olhos de quem vê, uma ficção que quero filmar toda em Cataguases, estamos montando um projeto junto ao Polo de Cinema da Zona da Mata, ele é todo cenografado nessa região. O documentário foi uma grande aula para mim, ouvir Humberto Mauro falando sobre como se faz cinema, dizendo coisas como: “Tem de usar ângulos insólitos, coisas que os olhos não estão acostumados a ver, criar coisas diferentes”. E agora vamos filmar na cidade dele. Também estamos fazendo a série Elementos, feita para o canal Woohoo, gravado no Brasil e nos Estados Unidos, documental, pegando personalidades do meio artístico e esportivo cujas vidas mudaram devido ao esporte ou à arte. Serão 10 episódios.

CONTINENTE Pesquisando sobre um pioneiro como Humberto Mauro, você encontrou muito desconhecimento sobre o trabalho dele?
ANDRÉ DI MAURO Realmente, é bem desconhecido. Um dos objetivos de fazer o filme era tentar trazer para as novas gerações a história e a memória dele. Mas é um problema geral com outros grandes artistas que são desconhecidos do grande público. Humberto Mauro seria um Charles Chaplin, atuava, dirigia, produzia. Foi considerado por Georges Sadoul como um dos sete principais do cinema mudo, tem coisas incríveis e elas não têm o devido valor. Mas isso se deve a uma série de coisas. Esse documentário poderia ter sido feito há muito tempo. Não precisaria eu estar fazendo agora. Poderia já ter havido vários documentários sobre ele como há, por exemplo, sobre Chaplin e Frida Kahlo. Se houvesse mais livros, filmes, programas de TV, cinematecas, museus, tudo isso se refletiria no conhecimento do público. Não é só falta de interesse das pessoas, o que falta é que se chegue até elas.

MARCELO ABREU é jornalista e autor do livro Viva o Grande Líder – Um repórter brasileiro na Coreia do Norte.

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