Entrevista

O teatro como expansão humana

Luciana Romagnolli e Soraya Martins, que assinaram junto a Grace Passô a curadoria do FIT-BH, analisam o eixo reflexivo fundado na ideia de corpos-dialetos que pautou o festival

TEXTO MATEUS ARAÚJO, DE BELO HORIZONTE

05 de Outubro de 2018

Luciana Romagnolli, Soraya Martins e Grace Passô, curadoras do FIT-BH 2018

Luciana Romagnolli, Soraya Martins e Grace Passô, curadoras do FIT-BH 2018

Foto Divulgação/FIT-BH

Durante 11 dias, entre 13 e 23 de setembro, o Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte (FIT-BH) reuniu, na capital mineira, 59 apresentações com trabalhos de 12 países e oito estados brasileiros. A Continente acompanhou o primeiro final de semana do evento.

Sob a ótica de "corpos-dialetos", como as curadoras definiram o eixo reflexivo dos espetáculos em cartaz no evento, as montagens apresentadas abrangeram debates sobre temas como colonização, liberdade, revolução e subversão de padrões. Em estéticas e linguagens múltiplas, do teatro performativo ao teatro de rua.

“Uma revisão crítica da História e das relações sociais a partir de narrativas para além das versões oficiais e das perspectivas hegemônicas, desnaturalizando formas de violência física e simbólica que se perpetuam em nossos dias”, explica a crítica e pesquisadora Luciana Romagnolli.

Ela foi uma das curadoras do festival junto a Soraya Martins e Grace Passô. Pela primeira vez, o FIT lançou uma convocatória de projetos de curadoria para selecionar a equipe e propostas que nortearam a programação. O trio de mulheres teve ainda como assistentes os curadores Anderson Feliciano, Daniele Avila Small e Luciane Ramos.

Nesta entrevista, Luciana e Soraya refletem sobre os apontamentos do festival e fazem comentário a partir da relação arte, política e identidade.

CONTINENTE Na construção da curadoria do FIT deste ano, vocês se propuseram a um olhar sobre o que chamam de “corpos-dialetos”. Qual balanço vocês fazem desse panorama traçado com relação à reflexão para os espectadores e também para os próprios artistas brasileiros?
SORAYA MARTINS Faço uma reflexão muito positiva, na medida em que colocamos em cena trabalhos que não são temáticos e/ou identitários, são trabalhos que tratam do humano e, por isso, mesmo chamam os espectadores para uma reflexão mais ampla sobre as realidades do país, ampliam a noção de teatro brasileiro e recontam nossas histórias a partir de outras perspectivas e protagonistas. O teatro é para isso também... Chamar para deslocamentos e reflexões que expandam nosso modo de ser e estar no mundo, como artista-cidadão, cidadão-artista.
LUCIANA ROMAGNOLLI Sinto que conseguimos apresentar à cidade uma visão mais abrangente de teatro, tanto do ponto de vista das muitas possibilidades dessa linguagem artística, quanto dos muitos grupos sociais que fazem o teatro brasileiro e internacional. A programação instigou o público a uma revisão crítica da História e das relações sociais a partir de narrativas para além das versões oficiais e das perspectivas hegemônicas, desnaturalizando formas de violência física e simbólica que se perpetuam em nossos dias. Com isso, convidou a imaginar formas de vida menos restritivas, com mais liberdade.

CONTINENTE A partir do trabalho de curadoria, como vocês percebem os questionamentos decoloniais como dispositivo criador no teatro latino-americano?
SORAYA MARTINS Pensar em decolonidade é difícil, já que vivemos ainda no gerúndio da colonização. O teatro latino-americano, incluso, obviamente, o teatro brasileiro, com suas relações e manutenções de poder têm ainda que ser fissurados. Essa fissura, tanto nas relações de poder, quanto na criação, é importantíssima para que subjetividades, singularidades, outros corpos, grupos sociais e pensamentos sejam vistos e ensinem epistemologias contra-hegemônicas.

CONTINENTE O FIT nos possibilitou assistir a espetáculos produzidos fora do já habitual eixo Rio-São Paulo. Até mesmo para além de Belo Horizonte. Espetáculos do Sul e Nordeste, por exemplo, estiveram com grande destaque. Essa é uma decisão claramente política, de democratização. O que isso trouxe de especial para a programação?
SORAYA MARTINS Pensar as produções artísticas de maneira ampla, pensar nas produções existentes e resistentes pelo Brasil afora que são negligenciadas por olhares ainda tortos, por classismos, racismos e preconceitos.
LUCIANA ROMAGNOLLI A forte presença de produções do Nordeste fez com que se dissesse que apresentamos uma “cena nordestina” no FIT. Nunca vi chamarem de “cena do Sudeste” a hegemonia de produções de São Paulo e Rio. Penso que essa redistribuição geográfica é fundamental para desnaturalizar uma noção de universalidade do Sudeste, como se a região fosse “o” país; ao mesmo tempo em que permitiu uma visão menos folclorizada e menos padronizada do teatro feito em estados nordestinos, mostrando suas singularidades.

CONTINENTE Curiosamente, durante o festival o Brasil viu surgir um forte movimento das mulheres contra a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência. Uma espécie de primavera feminista, de enfrentamento às posições machistas e violentas do deputado carioca. E é interessante perceber que arte e “vida real” não estão desassociados. Mais: a arte é e tem sido plataforma política de todas essas insurgências. O que o teatro do FIT apontou especialmente sobre o feminismo como força motriz de uma revolução social contemporânea?
SORAYA MARTINS A força matriz e motriz das mulheres contemporâneas, modernas, do antigamente, de sempre, de ancestralidades.
LUCIANA ROMAGNOLLI: Para mim, mulher branca, o que fica de mais marcante é o foco no feminismo negro, esse lugar de encruzilhada entre duas formas de opressão, o racismo e a misoginia, e que é a posição mais revolucionária que temos hoje na nossa sociedade. Ntando Cele [Black off], Alessandra Seutin [Ceci n’est pas noire] e Dorothée Munyaneza [Unwanted] apresentaram trabalhos dos mais impactantes desta edição, tanto em termos discursivos quanto formais, e são três espetáculos bastante distintos, que falam das singularidades e das potências desse feminismo negro para deslocar nossa percepção de mundo.

CONTINENTE A programação do festival esteve pulverizada também em regiões mais periféricas da cidade – como na Ocupação Dandara, onde houve apresentação da peça Assembleia Comum. O que isso representa como construção política da curadoria?
SORAYA MARTINS Representa pensar, de maneira mais satisfatória, a acessibilidade ao teatro. Pensar em reconfiguração de espaços, geografias, centros e privilégios.
LUCIANA ROMAGNOLLI Um pequeno passo em direção à compreensão de que a cidade é muito maior do que o centro e os bairros oficiais. Um reconhecimento da importância das lutas sociais por moradia e demais direitos básicos de cidadania.

CONTINENTE Aliás, a própria curadoria do FIT é um instrumento democrático, uma vez que o festival fez uma convocatória para escolher os curadores. Na prática, como vocês percebem o reflexo desse processo?
SORAYA MARTINS O pensamento curatorial, tecido pela equipe de curadoras, tem como base pensar política, estética e democratização da cultura. Na prática, isso significa que vários grupos sociais, corpos, geografias e singularidades vão gozar também do festival (como artista e como cidadão), já que é um festival público feito na, com e para as pessoas da cidade, isso pressupõe ampliação dos olhares e ações para que o sentido da palavra “democracia” ganhe mais coerência.

CONTINENTE Também em setembro, o Mirada (festival de artes cênicas do Sesc Santos, litoral de São Paulo) apresentou espetáculos cujas temáticas aprofundavam as questões sobre decolonização, corpo e subalternidade. Bem parecido com o eixo curatorial que vocês apresentaram no FIT. Essas reflexões estão como uma voz uníssona na produção artística da América Latina, atualmente?
SORAYA MARTINS O FIT Belo Horizonte 2018 não foi temático. O que colocamos em cena foi um pensamento, um conceito curatorial que vai além das demandas reflexivas da atual América Latina. Se essa mesma equipe tivesse curado o FIT, por exemplo, há 10 anos teria feito um festival igualmente político, estético e mais democrático. Falar de gênero, corpos, classes sociais e raças não é falar de tema ou da atualidade, é falar do que sempre existiu, é falar de humanidades, base do teatro. O pensamento curatorial, corpos-dialetos, é fruto de um entendimento e de estudos que toda a equipe de curadoras vem tecendo ao longo das trajetórias individuais como artistas, pesquisadoras, críticas e dramaturgas. Estudo política e estética no teatro há 14 anos, esse estudo é base da minha graduação, do meu mestrado, do meu doutorado e, consequentemente, base do pensamento curatorial do FIT 2018, do qual faço parte. Foi sobre vivências, amplas e expandidas, essa edição do festival.
LUCIANA ROMAGNOLLI Não estive no Mirada este ano, então não posso traçar um comparativo justo. Embora haja uma crescente movimentação social – tardia! – que amplifica os questionamentos sobre a hegemonia branca e masculina nas artes, e demanda ações urgentes contra isso, ainda estamos muito, muito, muito longe de isso ser uma “voz uníssona”. Não basta meia dúzia de festivais de grande porte começarem a rever os processos institucionais de exclusão em edições temáticas. Sendo mais precisa: não basta abordar esse problema estrutural da sociedade (e da arte) brasileira como temática, somente. O FIT-BH não se fez como um festival de arte negra, nem de arte feminista, nem de arte LGBTTQI, mas, sim, como um Festival de Teatro. E Teatro não pode ser só teatro branco, não pode ser só teatro feito por diretores homens etc. Apresentamos uma programação com produções de artistas brancos e negros, mulheres e homens, do Norte, do Nordeste, do Sudeste, do Sul, de matriz europeia e de matriz africana. Ou seja, uma visão um pouco mais ampliada dos muitos teatros que compõem o Teatro. Tudo isso, fruto do trabalho de uma equipe curatorial de seis pessoas, quatro delas, negras, e cinco delas, mulheres. Isso não se vê todo dia, infelizmente.
 
MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador, crítico de teatro e mestrando em Artes Cênicas pela Unesp.

* O jornalista viajou a convite da organização do FIT-BH.

Publicidade

veja também

“Arte demanda um completo sacrifício”

"Não há tema brasileiro mais ilustre que o cangaço"

“São estratégias de sobrevivência esses caminhos da arte”