Entremez

A santa hipocrisia da classe média brasileira

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

28 de Setembro de 2018

Praça de Casa Forte - Desenho de Burle Marx

Praça de Casa Forte - Desenho de Burle Marx

Foto Reprodução

[conteúdo exclusivo Continente Online | outubro 2018]

Sábado, 6 horas da manhã, feira de orgânicos, Praça de Casa Forte Recife.

O cliente comete a indiscrição de perguntar ao comerciante em quem ele vota. O vendedor titubeia, olha para os lados e responde quase sussurrando: Bolsonaro. Não acredito, diz o freguês com espanto. E em tom de brincadeira, acrescenta: nunca mais compro a você. Vou pedir aos amigos a quem recomendei-o que deixem de adquirir seus produtos. Faça isso não, é a resposta do vendedor, também em tom de graça. Eu voto 13 mais 4, assume debochado o gaúcho sócio do furgão frigorífico, abarrotado de carne de sol de boi, carneiro e porco, linguiça, queijo, bolo-de-rolo, castanha e manteiga.

Depois de pagar a conta, o cliente abraça seu amigo comerciante e retira-se com as mercadorias. Não dá três passos e é abordado por um homem aparentando mais de 60 anos, na companhia de um filho jovem, malhado e bonito. São pessoas de classe média alta, moram em algum edifício no entorno da praça.

Eu conheço o senhor, diz o homem resguardado pelo filho musculoso, sei que é um intelectual e por isso faço questão de lhe dizer que voto em Bolsonaro, um voto útil para acabar com os petralhas e a bandidagem do país. Meu candidato era Alckmin, continua discursando em voz alta, mas ele não ganha e por isso escolhi um que vença e acabe com os lulistas.

Quer dizer que o senhor não escolhe o futuro presidente pelo seu projeto de governo, prefere votar contra candidatos?

O homem e o filho se inflamam, insistem que é preciso acabar com os corruptos e tudo o que cheire ao Partido dos Trabalhadores. Outras pessoas se aproximam, os ânimos se exaltam e o intelectual foge à conversa, sorrateiramente.

Terça-feira, 5 horas da tarde, Praça de Casa Forte.

O intelectual caminha pelo passeio de areia, evita as calçadas de pedra portuguesa que ladeiam a praça. Elas ficam perigosamente próximas ao trânsito de carros. Um vacilo e...

Costuma fazer o passeio todas as tardes, conhece os frequentadores do local, lamenta o lixo jogado nos jardins de Burle Max, os bancos mal conservados, os tanques de peixe e vitórias-régias fornecendo água aos lavadores de carro. As ruas laterais à praça se transformaram num grande lava jato. E se os proprietários de carro não usassem esse serviço proibido por lei municipal? Pensa nessa questão, caminha até suar a camisa e cansar as pernas.

Os garotos e garotas dos prédios já desceram para as rodas de fumo. Todas as tardes é assim. Há vários grupinhos espalhados pelos bancos, de estratos sociais diferentes. Alguns meninos se aplicam em retirar os caroços do bagulho, em enrolar os fininhos da maneira mais perfeita. Não há pressa, fazem isso livremente, brincam, conversam alto, cumprimentam os passantes, mais amigos chegam, o clima é de festa. O intelectual dá voltas e mais voltas até que o primeiro baseado esteja aceso.

O cheiro forte ganha o ar, o cigarro roda de mão em mão, alguém menos experiente se engasga e tosse. Nas rodas dos mais humildes, bem menores em número de membros, os caras parecem desconfiados, disfarçam o fino na concha da mão. Os guardas também dão voltas em torno da praça, talvez resguardem os rapazes e moças de serem molestados. Bem diferente da Linha do Tiro, bairro onde o filho da empregada do intelectual levou um tapa desmoralizante de um soldado, porque sua roupa cheirava a maconha. O rapaz confessou que tinha fumado, mas não tinha um toco sequer com ele. Mesmo assim, não houve atenuante, e ele teve de mentir para os colegas do call center sobre o rosto inchado e com hematomas.

Um dos quatro lavadores de carro prepara um charo, numa das ruas que dividem a praça. Os outros três olham o colega trabalhar na confecção do reforçado, riem, brincam, soltam piadas, enquanto trabalham nos carros de dois boys, que observam de perto a habilidade do lavador com o papel e a maconha. Reconheço um dos boys, era o que estava na feira, escoltando o pai. Mas só agora descubro o homem sentado numa cadeira, oculto por um veículo, indiferente ao que acontece em volta dele.

Passam duas garotas, uma delas reclama a um dos lavadores: Ruivo, pra gente você nunca arranja nada. O ruivo se defende: vocês nunca querem quando eu trago. Hoje eu tenho. Corre ao tanque, afasta uma touceira de paqueviras e traz um embrulho. Perco o restante da negociação porque caminho e não posso olhar para trás. Daria bandeira ou correria o risco de me transformar em estátua de sal.

Na volta, o charutão foi aceso e passa entre os dedos e os lábios dos rapazes ricos e dos lavadores. Aposto que a seda foi babada. O homem eleitor de Bolsonaro, pai de uma das crias bem nutridas, finge não ver a cena, nem sentir o cheiro forte da maconha. Escuto um resto de conversa dos rapazes malhados, ricos, o melhor produto físico da nossa classe média universitária, rica e com viagens e intercâmbios no estrangeiro.

Tem que votar em Bolsonaro, irmão. Vamos acabar com a petralha e meter bala em bandido. Traficante vai comer chumbo grosso.

Termina de falar e passa o charo ao Ruivo, que traga forte.

Os quatro lavadores de carro fumam, riem, tiram baldes de água dos tanques de vitória-régia, lavam os carros e nem pensam no que ouvem.

Ou pensam?

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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