Curtas

Que histórias o cinema não contava?

Em seu primeiro longa-metragem, Fernanda Pessoa reúne cenas de títulos da pornochanchada para ilustrar o imaginário popular nos anos em que o Brasil vivia sob o jugo de uma ditadura militar

TEXTO Manu Falcão

29 de Agosto de 2018

Atriz Maria Lúcia Dahl em frame utilizado para construir a narrativa

Atriz Maria Lúcia Dahl em frame utilizado para construir a narrativa

FOTO Boulevard Filmes/Divulgação

É possível que as gerações mais recentes desconheçam a Boca do Lixo. Mas, se a conhecem, certamente sua fama – ou infâmia – lhes precede. Localizada no bairro da Luz, em São Paulo, a região não só deu lugar ao que hoje conhecemos como Cracolândia, mas também a um conglomerado de estúdios cinematográficos, sendo uma espécie de Hollywood brasileira, underground e subversiva. Subversiva porque suas produções, datadas entre as décadas de 1960 e 1980, são inerentes à revolução de costumes que fervilhava nos anos em que foram rodadas. Os filmes, ainda que muito diferentes uns dos outros, logo foram taxados enquanto parte de um cinema de gênero – as pornochanchadas.

A recorrência, além do baixo orçamento, era o humor escrachado mesclado com erotismo e foram nessas histórias que a diretora Fernanda Pessoa resgatou e retratou o imaginário de um povo sob regime militar. Seu filme de estreia, Histórias que nosso cinema (não) contava, em cartaz no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, nas unidades do Derby e Museu, já traz no título uma referência a um dos “clássicos” da pornochanchada, Histórias que nossas babás não contavam (dirigido por Oswaldo de Oliveira em 1979).

Trata-se de um documentário de montagem que relaciona cenas de 27 desses filmes, colocando-as para dialogar uma com a outra de forma anacrônica, sem interferência de narrações e nada além da própria montagem. Eis alguns deles: A super fêmea (1973, dir.: Aníbal Massaini Neto), Corpo devasso (1980, dir.: Alfredo Sternheim), Elas são do baralho (1977, dir.: Silvio de Abreu), Eu transo, Ela transa (1972, dir.: Pedro Camargo), O enterro da cafetina (1971, dir.: Alberto Pieralisi), Nos embalos de Ipanema (1978) e Terror e êxtase (1979) de Antônio Calmon, e E agora José? (Tortura do sexo) (1979, dir.: Ody Fraga).

O resultado desses recortes acaba sendo tão coeso quanto engenhoso. Ao delinear o humor, as vivências e as predisposições afetivas desses personagens, das mais eróticas às corriqueiras, Fernanda expõe fissuras nas narrativas do cinema e da história, colocando-as como acontecimentos que podem (e devem) gerar novas interpretações. “Várias micronarrativas são resgatadas,” conta a diretora em conversa com a Continente. “O êxodo rural e o milagre econômico, por exemplo. E aquelas que podem ser reconfiguradas no contemporâneo: machismo, racismo, homofobia, a fragilidade democrática e medo do comunismo. Tudo é contado com uma pluralidade de pontos de vista. Por mais que o cânone tenha configurado os filmes em um gênero específico, é um cinema bastante heterogêneo – alguns cutucavam o regime, outros lhe pareciam conivente, e havia os que simplesmente não o abordavam. O que reverbera politicamente é o próprio ato de fazer cinema e registrar a vida normal em um contexto totalitário”, acrescenta.


Diretora Fernanda Pessoa FOTO: Divulgação. 

Fernanda revela que sua aproximação com esse cinema se deu quando trabalhava na filmoteca da FAAP, onde estudou, após ler suas fichas técnicas para catalogação. “Um filme, particularmente, chamou minha atenção – o E agora José?, do Ody Fraga, que trata explicitamente da tortura dos presos políticos. Foi quando percebi quantos subtextos políticos a pornochanchada abarca, e como podemos acessar uma sensibilidade imagética intrínseca à época revisitando esses aspectos da cultura popular. Infelizmente, os filmes sofreram certo apagamento de todos os lados: enquanto conservadores de direita os censuravam pelas temáticas eróticas, críticos culturais os consideravam alienantes", comenta.

A realizadora observa que, até hoje, existe o consenso de que são obras medíocres. “Eu não os acho ruins, mas o meu filme não é necessariamente uma ode à pornochanchada. É mais uma tentativa de legitimá-la enquanto cinema e um dos muitos fios condutores de uma parte de nossa história. Quando fiz meu mestrado na França, estudei sobre a reutilização de imagens no cinema experimental e foi aí que tive a ideia de colocar essas imagens em relação e ver o que eu poderia aprender com elas."

Voltar às Histórias que nosso cinema (não) contava toma um sentido vertiginoso e necessário, uma vez que estas são reintegradas a uma narrativa conduzida por censura e desvalorização. Qualquer noção positivista é diluída e o passado, bem como suas ressurgências, é reescrito.

MANU FALCÃO é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

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