Curtas

Macro

Fazendo do processo artístico a própria obra

TEXTO Mariana Filgueiras

08 de Outubro de 2019

Ney Matogrosso é um dos covidados do projeto Macro

Ney Matogrosso é um dos covidados do projeto Macro

Foto Elisa Mendes/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 226 | outubro de 2019]

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Quando fez Zii e zie, há 10 anos, Caetano Veloso dividiu com o público, pela primeira vez, o processo criativo de uma obra sua. Abriu um blog no qual compartilhava decisões sobre o repertório e digressões sobre os temas do disco. O diário virtual se desenrolava junto a um show semanal, Obra em progresso, no qual os fãs também podiam acompanhar os ajustes para o disco.

No filme A falta que nos move, de 2011, a diretora e cineasta Christiane Jatahy fez algo similar: incorporou todo o processo de filmagem à trama, os gatilhos sobre o que editar ou não, num jogo híbrido entre ficção e realidade.

Na montagem de Grande sertão: veredas, premiada adaptação teatral de Bia Lessa para a obra de Guimarães Rosa que circula pelo país há cerca de um ano, lá está o processo entregue à plateia: ao entrar no teatro, o público recebe fotografias dos bastidores da criação do espetáculo. Há imagens dos atores ora fazendo exercícios corporais, ora testando os papéis uns dos outros, com legendas que revelam as orientações da diretora: “Não caia na poesia, caia no chão”.

A história da produção artística brasileira tem visto cada vez mais criadores servirem suas entranhas ao público. Mostrando como algumas soluções estéticas nascem de acasos, como os artistas muitas vezes não sabem aonde querem chegar, assumindo o risco como parte fundamental da obra.

“Não é fácil você expor seus erros, o que não deu certo, os arranjos que deixamos para trás. Mas está tudo aqui, tudo o que a gente usou para fazer com que a música fosse atravessada pela imagem”, contava o músico Pedro Luís a uma plateia de convidados que visitava o estúdio onde ele praticamente morou durante dois meses este ano, o Labsônica, um espaço que serve de residência artística criado pelo Oi Futuro no Rio de Janeiro.

Foi lá que tomou forma o projeto Macro, cujo resultado final chega ao público em novembro: um álbum com 10 canções inéditas, incluindo um vinil, e um show-instalação capitaneado pelo artista visual Batman Zavareze e por Pedro Luís (o evento de lançamento está agendado para o dia 20 de novembro, no Teatro Oi Casagrande, no Rio).



Pedro Luís e a câmera térmica. Imagem: Divulgação

Ao idealizar o Macro, os dois amigos quiseram fazer do processo artístico a própria obra, esparramando a importância do resultado ao longo do período de experimentações. Batman entrava com sua inventividade visual e Pedro Luís com melodias e arranjos. Aos dois, juntaram-se convidados como Ney Matogrosso, Rubel, Jade Baraldo, Yuri Queiroga e a jornalista e poeta Bianca Ramoneda. Ninguém tinha nenhum roteiro pré-definido. O time de participantes, aliás, era a única ideia mais ou menos fechada. A única coisa que sabiam era que queriam extrair dali um disco e um show.

“O mais importante era seguir, caminhar, voar mesmo, sem saber aonde estávamos indo. Isso nos permitiu descobrir como deveríamos ser resilientes para ajustar e tomar decisões dentro de um processo criativo coletivo, totalmente aberto e vivo”, conta Batman, que sugeriu que cada um levasse alguns estímulos sonoros, visuais, literários. E assim o espaço foi ganhando livros, instrumentos inusitados, até brinquedos infantis. Começaram a ler poesias uns para os outros, mostrar arranjos, arriscar canções, filmar detalhes dos olhos de quem os visitava, a brincar com os encontros. E a coisa toda foi surgindo.

O grupo foi documentando tudo no Tumblr do projeto. É curioso ter acesso aos e-mails que trocaram entre si, aos rascunhos de canções, aos testes de uso de equipamentos que nunca tinham manuseado, como a tal “câmera térmica”, que só capta o que está quente. “O maior aprendizado, de fato, foi produzir algo que estava sendo criado ali mesmo. Ideias que surgiam e precisavam ser colocadas em prática imediatamente. A câmera térmica, por exemplo, surgiu de uma referência de um artista plástico que o Batman trouxe, mas ninguém tinha trabalhado com uma, não tinha contato, nada”, comenta a diretora de produção, Paula Sued, que também se encantou com o músico Yuri Queiroga tocando violão com uma caneta esferográfica, cena que viu por acaso. Ficou tão bom, que o efeito sonoro foi gravado.

Assim vieram outras surpresas: os poemas inéditos de Bianca Ramoneda, a lista de rios brasileiros musicada por Pedro Luís, a afinidade musical com Rubel, a potência de Jade Baraldo, cantora catarinense de 20 anos. “Ela é como um furacão, um terremoto, um tsunami, tem um cantar muito interessante e original”, elogia Pedro.

Batman, que nos encontros tentava iluminar tudo e todos, acabou sendo ele mesmo “iluminado” por Ney Matogrosso – numa das histórias mais interessantes desse processo. “Além de ser tudo que já sabemos, músico, intérprete, performer, um artista pleno, Ney é, para mim, uma referência de iluminador. Ele faz a luz de seus próprios shows, de uma maneira incomum, desde a forma como ele cria às dinâmicas das cenas, às paletas de cores que poucos shows usam e a uma combinação de refletores do passado com outros novíssimos. Eu fico sempre muito surpreso e criei a expectativa de que ele pudesse iluminar o show final do Macro, ao contrário do Pedro, que, claro, queria que ele cantasse. No fundo, eu queria que ele me ensinasse sua fórmula mágica…”, revela Batman, que não quis impor nada ao cantor, apenas deu algumas sugestões.

Batman conta que eles conversaram várias vezes com Ney sobre caminhos, mas deixaram as ideias abertas até sua chegada ao estúdio. Pelo pouco tempo, adiantou o desenho de luz, “mas mais para impressioná-lo”. “E Ney apareceu com um figurino que era um rebatedor! A luz não absorvia facilmente nele, era claramente uma provocação que ele me devolvia, depois de tantas que fiz a ele…(risos). Mas usamos uma luz preto e branco quase em alto-contraste e ficou lindo, essa instabilidade para criar é uma faísca maravilhosa”, conta Batman, que soma 25 anos de fotografia.

Outra história curiosa surgida do processo aconteceu à jornalista Bianca Ramoneda. Provocada por Pedro Luís e Batman a fazer uma entrevista inusitada com Ney Matogrosso, Bianca não hesitou. Só que os dois já tinham combinado, sem que ela soubesse, que as perguntas não seriam respondidas. A gravação da sequência de perguntas seria respondida apenas por acordes sonoros do pernambucano Yuri Queiroga, como uma peça performática do show.

No evento de encerramento da residência artística, Pedro Luís foi mostrando um pouco de tudo que fizeram juntos: a ideia do cenário do show, por exemplo, um grande livro aberto, veio dos livros que cada um foi levando para mostrar e que acabavam esparramados pelo estúdio (como o livro sobre o processo de criação do cineasta Akira Kurosawa, obra rara da coleção de Pedro); a videoinstalação com olhos dos artistas, que serão projetados no palco durante as leituras de textos, também.

A experiência vai além de um making of, eles deixam claro: “A essência do Macro é abrir a caixa preta do artista, revelar detalhes em que normalmente não vemos importância, porque artisticamente, muitas vezes, estamos com o olhar apontado para o produto final, o palco, a estreia, a inauguração”, comenta Batman. “O artista cria, se recolhe, reflete, erra, pesquisa, amadurece e expõe. E o resultado é de extrema contribuição para os tempos atuais no aspecto de trabalho colaborativo e multidisciplinar sempre com muita escuta.”

MARIANA FILGUEIRAS, jornalista, mestranda em Literatura pela UFF.

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