Crítica

Toda viagem é um caminho sem volta

Livro remonta o caminho percorrido pelo personagem do road-movie 'Viajo porque preciso, volto porque te amo'

TEXTO Adriana Dória Matos

18 de Setembro de 2017

Frames do longa-metragem de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, lançado em 2009

Frames do longa-metragem de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, lançado em 2009

FOTO Divulgação

A narrativa começa numa estrada, de noite, as luzes do farol do carro iluminam o chão com a sinalização horizontal refletindo no olho. Com pouco, entra o título: Viajo porque preciso, volto porque te amo. Vamos seguir nessa viagem supondo que nenhum de nós assistiu ao filme homônimo de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, que passou pela primeira vez em 2009, porque agora estamos lendo um livro.

A primeira coisa que chama a atenção nesse livro de palavras e imagens é que ele corre rápido, a gente passa as páginas ligeiro porque parece que o texto é uma estrada. Quer dizer, as linhas de texto não preenchem cada página, uma linha debaixo da outra, como na maioria dos livros; longe disso, elas vão feito uma tira (a tinta é vermelha) de uma página a outra, margeando acima ou abaixo as imagens, que, também elas, não ocupam a página toda. E as imagens vão se encadeando, uma ao lado da outra, feito num álbum doméstico ou num caderno de anotações (às vezes, até, elas se sobrepõem, sofrem cortes, interrupções, vão aparecer na outra página, um pedaço ou metade). As imagens fazem o mesmo percurso de estrada do texto… mas nem texto nem imagens tomam conta do espaço, tem bastante branco nas páginas. Tem bastante silêncio nesse livro.

Repare, há muito silêncio porque o narrador está sozinho, é um solilóquio mesmo. E ele nos conta, aos poucos – porque estamos como voyeurs a xeretar este livro-diário que acabamos de abrir – o motivo de estar ali, naquele lugar que é um deserto para qualquer um que já viveu um deserto na vida. Também o livro não tem número de páginas, deixa a gente bem solta, então só podemos dizer que ele tem cinco partes, porque os autores assim escreveram – Parte I, a maior de todas; Parte II, bem curtinha e doída; Parte III, cheira a sexo; Parte IV, pintada de vermelho; Parte V, aquática. A gente aprende quase tudo sobre esse personagem andando nessa estrada vazia na primeira parte da história.

No dia 2 do diário, nosso narrador escreve: “Tempo de duração da viagem: trinta dias. Porra, trinta dias. Estou na BR 432, quilômetro 45. Altitude 450 metros. O clima da região é árido, o terreno terciário. […] A região se chama Varzinha – apesar disso não vejo nenhuma várzea. São doze horas da manhã”. Ele fala umas coisas difíceis sobre geografia, daquelas que a gente aprendeu na escola e esqueceu. Mas depois entendemos: ele é geólogo e está fazendo o mapeamento da região que vai desaparecer do mapa, porque ali vai passar um canal. Ele discorda, acha que esse canal podia passar em outro lugar, vão desapropriar casas, tirar gente dali.

Como todo diário, tem umas partes bem de vida pessoal, com isso nos referimos a AMOR. “Galega, bom dia! Bom dia meu amor. Hoje é 28 de outubro, dia do funcionário público. Em Fortaleza, ninguém trabalha na repartição e eu aqui nesse torrão seco, dando um duro danado. Faltam 27 dias e 12 horas para acabar a viagem. Parece uma eternidade. Do dia que eu saí de Fortaleza até aqui quase não vi ninguém na estrada. Fico com o rádio ligado, pensando em você a viagem toda e só.” Aí ele anota o acontecimento que deu nome a esse livro que a gente está lendo, mas que, a essa altura, a gente já esqueceu que é um livro e pensa que é um diário que surrupiamos.

“Hoje parei num posto e vi uma coisa pintada na parede, meio hippie. Nem tinha reparado, quando saí é que me caiu a ficha da frase que tava escrita: Viajo porque preciso, volto porque te amo.” Essa frase é o detonador da história toda…

As fotografias do livro são de todo tipo e qualidade, tem foto colorida e preto e branco, tem foto parada, em movimento, coisa tremida… tem umas que o personagem desenhou com lápis por cima, mas é coisa sutil… tem fotos bem ruinzinhas, sabe, daquelas que nunca devíamos publicar… parecem uns erros, de quando a gente fotografava antigamente com máquina analógica e, quando mandava fazer as ampliações, vinham aquelas que a gente clicou sem querer (e pensávamos: por que o laboratorista ampliou essa porcaria, rapaz…). Não deixa de ser interessante constatar que essas fotos rudimentares dizem muito da errância desse homem solitário por essa estrada deserta; a gente acaba gostando delas e da paisagem que vai vendo pelo caminho…

Aos poucos, vai-se esclarecendo a história do narrador. A “Galega” dele é botânica, ele é geólogo (por isso tanto termo técnico, fica claro). “Um estuda as falhas nas rochas e o outro, flores. Um escava a terra e tira pedras, enquanto outro colhe flores. Um casamento perfeito. Todo casamento é perfeito, até que acaba.” É bem bonito como ele vai mostrando pra gente que era mentira aquele amor que imaginávamos existir entre ele e a mulher. Na verdade, isso é uma revelação que a estrada vai dar pra ele – uma revelação que ele vai se permitir na estrada. “A única coisa que me faz feliz nessa viagem são as lembranças que tenho de ti. Não. Não Galega. Não sei escrever cartas de amor. Não aguento a ideia de ficar só. Sabia que a única coisa que me deixa triste nessa viagem são as lembranças que tenho de ti?”

Nas Partes II e III, nosso narrador continua a sua agonia, ele está tão cansado… a gente se exaure com ele. Mergulho na noite, sombras, sonhos, pesadelos, sexo e perdição. Quem já andou pelas estradas da separação e da perda sabe o que é isso na vida. Não vamos contar tudo aqui. Só mais uma coisa dessa história de beira de estrada, que é o relato de uma prostituta que trabalha numa boate perto da feira. Ela diz tudo, a Paty. O sonho dessa menina-mulher é uma vida-lazer. “Um vida-lazer é assim: eu na minha casa, eu e minha filha, o companheiro que eu tiver ao meu lado, pra esquecer esses momentos todos porque não dá certo, é triste a pessoa gostar sem ser gostada.”

Agora nós vamos seguir por essa estrada numa outra linguagem. Agora assistimos ao filme Viajo porque preciso, volto porque te amo. A experiência emocional é a mesma: estamos numa estrada com esse narrador que sofre e anota sua experiência num diário. Ele continua a existir para nós como texto. Mas aí ganhamos os elementos do audiovisual: o som e o movimento. O que era texto vira fala, portanto, o geólogo é um off, apresenta-se para os expectadores como voz narrativa. Muitas imagens que não existem no livro dançam na nossa frente, uma coisa poética, simples e arrebatadora (esses adjetivos se encaixam direitinho aqui). Mas é preciso se acostumar com essas imagens, elas não chegam fácil, pelo contrário, nos oferecem resistência, em sua rudeza e sujeira.

Esse filme é muito bem bolado, sabia? Porque ele toma partido de coisas preexistentes para criar uma ficção, igualzinho ao processo dos escritores. Bem, os escritores costumam ficar observando a vida alheia, tomando notas de um monte de coisas do mundo real, do mundo mental e do mundo emocional, estudando, fazendo pesquisa e pensando e remoendo os próprios problemas. Eles podem nem usar tudo de uma vez, vão guardando, enquanto fazem outras coisas, como providenciar o almoço e escrever um romance, ou um roteiro encomendado.

O processo foi semelhante com Karim Aïnouz e Marcelo Gomes. Em entrevistas ao longo do processo de divulgação do filme, eles contaram isso. Esses cineastas de filmografias tão peculiares e pessoais se conheceram e logo se identificaram nos gostos cinematográficos e também porque ambos são de famílias sertanejas (Marcelo, de Pernambuco, Karim, do Ceará). Então eles quiseram fazer um filme juntos nesse espaço geográfico, esse sertão que é mais que um pedaço da geografia planetária, mas, sobretudo, um sentimento, um pertencimento, uma herança.

Pensavam num documentário, a princípio. Viajaram, sem roteiro, começaram a fazer umas anotações (os cineastas gostam de anotar com imagens, vocês sabem). Então, tinham colecionado já um bocado de imagens e de emoções (foi assim que Marcelo afirmou numa entrevista), mas foram fazer outras coisas. Aquilo ficou ali parado esperando o dia de nascer. Foi uma gestação bem longa essa, enquanto cada um fez seus filmes, até que se encontraram e deram uma forma àquele conjunto de imagens que poderiam ser aleatórias em si mesmas, mas faziam sentido. Marcelo, nessa mesma entrevista que deu junto com Karim para um festival aqui na América Latina, conta que interessava a ambos descobrir caminhos novos nas formas de fazer cinema. Ele disse: “gerar um tremor na gramática do cinema tanto ficcional como documental, também junto com outras linguagens artísticas, das artes visuais”. Ótima ambição, não? Ainda mais porque sabemos, quando vemos Viajo porque preciso, volto porque te amo, que ela se realizou com a liberdade que o cineasta afirma ser necessária para realizar filmes. Assim, veja esse filme também como literatura.


O livro traz também ilustrações de Pedro Migué

A edição de Karen Harley é um primor, junta todos os dissensos visuais – fotos e filmes gravados em diferentes bitolas, iluminação, qualidade etc. – numa história que encontra seus núcleos temáticos e temporais. E isso – não se pode fazer injustiça! – também precisa ser atribuído ao narrador, ao ator Iranhir Santos, que interpreta com tanta justeza e sensibilidade o papel do viajante.

E, para não sugerir que as imagens do filme são todas esboços, há coisas filmadas ali soberbas, de uma força poética grandiosa. Dois momentos marcantes: 1) Quando o narrador fica cansado da solidão da estrada e sai da rota pela primeira vez para ir à “cidade dos romeiros”, há um longo close-up numa mulher que se pendura num caminhão no estilo pau de arara que captura a emoção do expectador; aquela criatura perscruta a nossa alma! 2) Quando o narrador, em mais um desvio de rota, decide dormir em Caruaru (“Vou me esconder no meio daquela feira de gente.”). A filmagem de madrugada dos trabalhadores carregando e empurrando suas mesas, umas peças de madeira… aquela luz, aquele movimento, aquela beleza de horror e pesadelo e grafismo e sincronia… (Deixe dizer mais uma cena dessas hipnóticas, os corpos dançando naquela casa de forró, tudo tão disparatado e rítmico, perfeito.) Nas últimas cenas, parece que os diretores se enganaram e colocaram ali um contexto que não tinha nada a ver com o filme. Mas, não é que tinha?

P.S.: O livro Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karin Aïnouz e Marcelo Gomes, foi lançado em 2015 pelas Edições Sesc e inclui o DVD do filme. A gente esperou para publicar este comentário no site da Continente quando publicássemos, na versão impressa, o artigo que a pesquisadora Sylvie Debs escreveu sobre o cinema de Marcelo Gomes. E assim foi feito.

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