Comentário

EUA na cruzada pela democracia

Documentários fazem campanha em prol do voto – e contra o atual presidente Donald Trump, candidato à reeleição no próximo dia 3 de novembro

TEXTO Mariane Morisawa

01 de Novembro de 2020

Imagem do filme 'All in: the fight for democracy' ('Até o fim: a luta pela democracia')

Imagem do filme 'All in: the fight for democracy' ('Até o fim: a luta pela democracia')

Foto Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Uma das frases mais escritas por norte-americanos no Twitter, nas últimas semanas, é “Vote como se sua vida dependesse disso – porque depende”. As eleições presidenciais dos Estados Unidos na próxima terça-feira (3/11), com Joe Biden, do Partido Democrático, desafiando o atual presidente Donald Trump, do Partido Republicano, são consideradas mesmo de vida ou morte. Por isso, não surpreende a quantidade de documentários lançados nos últimos meses, alguns finalizados a toque de caixa, como Totally under control, de Alex Gibney, sobre a maneira desastrosa como a atual administração lidou com a pandemia do novo coronavírus. Os Estados Unidos são os líderes mundiais da pandemia, com 9 milhões de casos e mais de 230 mil mortos.

Ninguém está escondendo seu objetivo: fazer com que as pessoas votem. De preferência, contra Donald Trump. No país, onde o voto é facultativo, a participação costuma ser baixa. O recorde na escolha do presidente, desde a década de 1970, foi a primeira eleição de Barack Obama, em 2008, quando 57,1% das pessoas aptas a votar participaram da eleição. Totally under control está disponível, de graça, no site do filme para moradores do território estadunidense até o dia da eleição, numa página em que a mensagem é clara: “Vote”. 


Totally under control aborda o descontrole político da pandemia nos EUA.
Foto: Divulgação


A mesma coisa acontece com All in: the fight for democracy (Até o fim: a luta pela democracia), de Lisa Cortés e Liz Garbus, disponível no Amazon Prime Vídeo (inclusive no Brasil) e no YouTube até o dia do pleito. Assim como Explicando: o poder do voto, com narração de Leonardo DiCaprio, na Netflix, o filme trata de um problema comum nos Estados Unidos: a supressão de votos. A democracia norte-americana sempre foi, no mínimo, imperfeita. Na fundação do país, em 1776, apenas 6% da população podiam votar – basicamente, os proprietários de terra brancos. Depois da Guerra Civil (1861-1865), a 15ª Emenda à Constituição garantiu o direito de voto aos negros. Mas, na prática, não foi assim. Durante o período das leis de Jim Crow, uma série de legislações foi passada pelos Estados para dificultar o voto dos negros e pobres, como testes de alfabetização ou taxas. Em 1965, a repressão violenta às Marchas de Selma a Montgomery, protesto pacífico pelo direito de voto dos afro-americanos, acabou resultando na assinatura do Ato pelo Direito ao Voto. Só em 1975 outras minorias tiveram seu direito garantido.

Série em três curtos episódios, Explicando: o poder do voto é bem didática, ao mostrar como sempre houve uma briga nos Estados Unidos entre quem vê o voto como um direito e quem o enxerga como privilégio. Até hoje, o problema persiste. Legisladores e governantes de vários Estados tentam dificultar o acesso ao voto, lançando mão de várias artimanhas. Por exemplo, o redesenho de distritos, que minimiza a presença de minorias no eleitorado – nos Estados Unidos, o voto é distrital. Também provocam a diminuição do número de locais de votação em áreas de grande concentração de minorias, da implementação de documentos de identificação específicos e outros empecilhos. Em alguns casos, a tentativa de trapacear é flagrante. Como o programa mostra, a Flórida foi um dos primeiros Estados a tornar praticamente impossível a restauração de direito de voto a presos que tinham cumprido sua pena. Em 2018, uma emenda para devolver os direitos a ex-condenados foi aprovada em plebiscito por 64,55% dos eleitores, o que deveria fazer com que 1,4 milhão de pessoas pudessem votar neste ano. Só que o governo estabeleceu uma série de multas e taxas para quem queria votar, impedindo a integração de milhares à lista de eleitores.

O documentário Até o fim usa a candidatura da democrata Stacey Abrams ao governo do Estado da Georgia, em 2018, para traçar um panorama da supressão de votos. Naquele ano, o candidato declarado vencedor, o então secretário de Estado Brian Kemp, também era o encarregado de organizar e gerenciar as eleições. Só isso já bastaria para soar o alarme em qualquer democracia séria. Entre 2012 e 2018, Kemp tirou das listas de eleitores 1,4 milhão de pessoas, 700 mil delas no ano anterior ao pleito. Em outubro de 2018, ele segurou mais de 53 mil registros, 75% deles de minorias. Nos dias de votação, diversos eleitores não conseguiram depositar seus votos porque assinaturas não batiam, documentos eram recusados, ou porque as urnas eletrônicas não funcionavam. No fim, a diferença foi de menos de 55 mil votos. Abrams virou uma estrela no Partido Democrático, mas, em vez de sair candidata a algum cargo este ano, decidiu dedicar-se a ajudar mais pessoas a votarem. Pode ter dado certo: os números da votação antecipada no Estado, até o fim da tarde do dia 30 de outubro, ultrapassavam 3,8 milhões. A eleição de 2016 teve um total de 4,1 milhões de votos.


Candidatura da democrata Stacey Abrams ao governo do Estado da Georgia, em 2018, é estudo de caso do doc Até o fim. Foto: Divulgação

O documentarista Alex Gibney, que normalmente é bem prolífico, lançou dois projetos pouco antes das eleições. Agentes do caos, disponível na HBO, é uma minissérie em dois episódios que investiga a campanha de desinformação da Rússia nas eleições norte-americanas de 2016 e a possível conspiração de membros da campanha de Donald Trump. A interferência russa apontada pelas agências de inteligência dos Estados Unidos foi objeto de investigações do procurador especial Robert Mueller e das duas casas do Congresso, resultando na acusação e prisão de diversos membros da campanha de Trump. Gibney teve acesso a jornalistas russos, membros do governo de Barack Obama e especialistas que destrincham o modus operandi das ações de desinformação em redes sociais. O documentário traz informações úteis para entender o fenômeno, que afeta todos os países, incluindo o Brasil.

Em Totally under control, Gibney mostra quase passo-a-passo como a resposta do governo dos Estados Unidos ao novo coronavírus foi uma comédia de erros desde o princípio, começando com a repatriação de norte-americanos infectados de Wuhan (epicentro inicial) e do cruzeiro Diamond Princess, passando pela falta de testes e máscaras e chegando ao cúmulo de Estados terem de competir, entre si e com o próprio governo federal, por ventiladores e outros equipamentos de atendimento aos infectados. Uma força-tarefa liderada pelo genro do presidente, Jared Kuschner, contratou estagiários sem experiência para conseguir máscaras e aventais, enquanto o governo empurrava a cloroquina para os hospitais. O documentário insinua a possibilidade de ter havido corrupção.


Agentes do caos investiga a campanha de desinformação da Rússia nas eleições norte-americanas de 2016. Foto: Divulgação

Como seu fiel seguidor Jair Bolsonaro, Trump sempre minimizou a seriedade da pandemia, mas, em entrevista ao jornalista Bob Woodward no início de fevereiro deste ano, admitiu que o vírus era transmitido pelo ar e era letal. A mensagem do filme é clara: a culpa da situação dos Estados Unidos – que na quinta-feira (29/10) bateu o recorde de casos confirmados num dia, com mais de 90 mil – é do seu gerente.

MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.

Publicidade

veja também

Tão próximos e tan lejos: o que nos impede de conhecer mais a música da Colômbia

Apontamentos para uma crítica náufraga

Karim AÏnouz coloca tempero brasileiro na realeza inglesa