Matéria Corrida

Um grande pintor

TEXTO José Cláudio

04 de Dezembro de 2017

Irmão Afonso Haus aos 17 anos, quando entrou na Ordem dos Irmãos Maristas em 1937

Irmão Afonso Haus aos 17 anos, quando entrou na Ordem dos Irmãos Maristas em 1937

Foto Reprodução

O irmão marista Irmão Afonso Haus, único, de onze irmãos, homens, a escapar de ser morto na guerra, acaba de completar 97 anos. Escapou porque não estava na Alemanha. Entrara quase menino na ordem dos Irmãos Maristas, tendo ido para a Itália e depois vindo para o Brasil. Encontramo-nos no Colégio Marista, na então Rua Conde da Boa Vista, 365 se não me engano – taí, vou jogar hoje esta centena, a primeira de macaco, vou arriscar hum real do primeiro ao quinto, 5 reais, na banca que pagar mais, ou pedir ao amigo Marcelo Santos para jogar na Paraíba que lá é do primeiro ao décimo –, eu com 11 anos, em 1943, para cursar o Admissão, e ele com 23, justamente titular do Admissão A. Eu era do Admissão B, de Irmão Tomás. Delícia recordar essas coisas.

O irmão marista Irmão Afonso Haus que, zombando de Hitler, acaba de completar 97 anos, com saúde, deu uma risada de boca aberta mostrando todos dentes, abriu os braços e exclamou: “Um grande pintor...” Isso, em Apipucos, onde atualmente funciona uma faculdade marista e existe um prédio destinado aos irmãos idosos, um lugar sossegado, bem arborizado, no alto, criando um microclima muito agradável, na mesma ladeira onde tem a casa de Gilberto Freyre.

O Marista tinha adquirido o vizinho Colégio Carneiro Leão, para onde passara o primário, dividindo os dois espaços um grande alpendre que à noite servia de recreio coberto para os internos, com um palco, mesas de bilhar e pingue-pongue e onde um belo dia apareceu um viveiro de passarinhos, ainda sem os ocupantes: em lugar disso, engaiolado, o Irmão Afonso pintando. Lembro que era de manhã. Íamos em fila do refeitório para o primário, e lembro também que lamentei não poder ficar olhando o que significava um grande espetáculo, ver um pintor pintando, um fato inédito. Deve ter-me causado grande impressão, pois até hoje não esqueci. Sempre me dominara o sestro de rabiscar nos papéis de embrulho na loja de meu pai em Ipojuca, imitando o meu padrinho de crisma, o pintor Othon Fialho de Oliveira, ex-promotor de lá, que às vezes tirava alguns dias de férias e passava em nossa casa, morando ele já no Recife. Seu filho João José, Zezo, de minha idade, entrou na Faculdade de Direito ao mesmo tempo que eu. Faz tempo não nos vemos. Zezo, me dá um alô. E foi na Faculdade de Direito que descobri um quadro de Fialho de Oliveira, umas vacas num rio, que botei no livro Artistas de Pernambuco. Mas nunca tinha cogitado pintar nem ser pintor antes de ver pela primeira vez alguém pintando, e talvez tenha sido essa primeira visão, Irmão Afonso engaiolado, a plantar a primeira semente daquilo que viria a ser minha profissão e que tomou conta de mim de forma avassaladora fazendo com que abandonasse a Faculdade para nunca mais pisar lá, mesmo causando um trauma na minha família. Outro dia até comparei essa minha saída da Faculdade ao rompimento de Tereza Costa Rego .do casamento na alta burguesia para viver na clandestinidade.

Percebi até, acredite se quiser, que ele estava angustiado com o tempo. A aula ia começar e ele não tinha mais tempo para pintar. Tinha que largar a pintura no meio. Mas já estava um nascer-do-sol deslumbrante, pelo menos aos meus olhos de menino de onze anos. Tanto assim que na manhã seguinte estava ele lá de novo. De novo no desespero. Muito da luz que me encantara no dia anterior tinha desaparecido, como se o pintor quisesse fazer tábula rasa, e acho mesmo que ele não sabia mais o que queria. Ah, Irmão, quantas vezes não me lembraria disso ante o fracasso dos meus próprios quadros depois de trabalho exaustivo!

Às vezes me lembro de um cientista asiático, cuja nacionalidade não consigo lembrar, nem o nome. Faz mais de 60 anos. O filho de Otávio Mangabeira, que eu acho que tinha sido governador da Bahia, Otavinho, dirigia um instituto de pesquisas científicas, não sei de que ramo, qualquer coisa ligada à biologia talvez. A essa altura eu era ajudante do pintor Jenner Augusto Silveira, sergipano do Lagarto, estabelecido em Salvador, e ele me incumbiu de ir lá ao instituto, tendo já falado com Otavinho, para fazer uns estudos, em guache sobre papel, de uma cobaia, um rato aberto, para botar num painel que ele estava pintando não sei para onde. Logo à entrada me deparei com esse retrato do asiático e perguntei a Otavinho quem era. “O maior cientista que trabalhou neste instituto”. Perguntei que descoberta tinha feito. “Nenhuma. Porque o filão seguido por ele não levava a lugar nenhum.” Eu quis então saber por que o considerava o maior cientista. Otavinho explicou que ele realizara um trabalho gigantesco que orientará em escala mundial todos os estudos a respeito do mesmo assunto. E que se dedicara de tal forma que, à constatação de que não chegara a nada, suicidou-se.

No desespero de fim de quadro, na hora do fracasso, é que aparece a estatura do artista. Pode-se dizer que o quadro só nasce depois de você dar por perdido. Se você não tiver coragem de ir até as últimas consequências, correndo o risco de destruir o quadro e você de quebra, a confiança nos seus conceitos, na sua estética que não consegue por em prática, na sua vocação que não é capaz de produzir um mísero quadro, você não pode ser chamado de pintor.

Sem querer fazer drama, você morre de uma morte que é pior do que a morte física, que é a morte moral. Dependendo do seu caráter, a ocorrência dessa morte levará você ao rancor, à arrogância ou à humildade. Essa que faz com que, escapando de todas as mortes, Irmão Afonso abra os braços num grande gesto de vencedor e exclame: “Um grande pintor...”, sinônimo de: “Uma grande ilusão...”, como o espanhol que descobriu: “a vida é sonho”.

Não deu macaco.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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