Artigo

Miranda, o guru dos bastidores

Carlos Eduardo Miranda foi responsável por descobrir, divulgar e/ou produzir diversas bandas e ampliar o interesse da imprensa e gravadoras do Sudeste para artistas de outras regiões do país

TEXTO Débora Nascimento

23 de Março de 2018

Carlos Eduardo Miranda produziu artistas pernambucanos como Mundo Livre S/A. Cordel do Fogo Encantado e Zé Manoel

Carlos Eduardo Miranda produziu artistas pernambucanos como Mundo Livre S/A. Cordel do Fogo Encantado e Zé Manoel

FOTO Divulgação

“Fico com muito orgulho de ter tido oportunidade de, de alguma maneira, participar um pouquinho da vida de cada artista desses dos anos 1990. O Skank ajudei a levar à gravadora, a ficarem conhecidos dos jornalistas. Virei um soldado do Skank, quando conheci eles, de graça, fiz por prazer, porque eles mereciam, eu quis ajudar. A gente é muito amigo até hoje. E eles são imensamente agradecidos a mim, coisa que eu nunca esperei de ninguém e eles são até mais do que podiam. Mas eu até estranho quando as pessoas são muito agradecidas. Não que eu duvide do agradecimento, mas eu fico muito honrado.”

Se pudesse captar todas as mensagens de gratidão dos artistas e amigos, Miranda estaria, hoje, além de honrado, feliz pelo que conseguiu conquistar em seus 56 anos, completos na última quarta-feira (21), um dia antes de falecer. Nascido em Porto Alegre (RS), Carlos Eduardo Miranda fez suas próprias tentativas de ser músico, integrando bandas gaúchas como Taranatiriça, Atahualpa Y Us Panquis e Urubu Rei. Mas foi como jornalista e produtor musical em São Paulo que construiu uma carreira sólida, ajudou a transformar a vida de vários músicos, colaborou com a renovação do rock nacional e ampliou o interesse da imprensa musical e das gravadoras para artistas de outras regiões do país.

“Se não existisse Miranda, talvez a história do rock brasileiro, a partir dos anos 1990, fosse completamente outra. Foi ele quem literalmente descobriu e trouxe à cena várias bandas daquela geração, inclusive o Skank. Posso dizer sem nenhum exagero que esse grande amigo que partiu hoje foi uma das figuras mais importantes da história do Skank e por certo do rock brasileiro dos 90”, escreveu Samuel Rosa no Twitter.

Atuando incansavelmente nos bastidores do mercado musical, Miranda fez uma revolução: foi responsável por descobrir, divulgar e/ou produzir diversas bandas, algumas delas ajudaram a mudar a cara do rock no país, como Raimundos e Mundo Livre S/A. As duas foram produzidas por ele no Banguela Records. O selo, uma microempresa dentro da gravadora Warner, surgiu a partir de uma de suas ideias mirabolantes. Essa virada de rumo em sua carreira e, ao mesmo tempo, no rock brasileiro aconteceu durante a gravação do Titanomaquia, lançado em julho de 1993.

“Na Bizz, disseram assim: Miranda, vai ter uma gravação dos Titãs com o Jack Endino, 'véio'. Eles vão ficar num estúdio não sei quanto tempo, cara. Só tem tu pra ir lá, porque todo mundo aqui é queimado com eles. Eles querem a caveira de todos nós. Então tu é o único que não queimou o filme com eles ainda. Tu é o único que os caras gostam”. Ao acompanhar essa gravação, Miranda estreitou os laços com o grupo. Num dia, aproveitou uma brecha no tempo dos integrantes e apresentou o material demo que levava consigo para todo lugar. Era a música que faria a mudança definitiva dos anos 1980 para os anos 1990: Raimundos, Mundo Livre S/A, Maskavo Roots, Little Quail, Planet Hemp, Chico Science... “Vocês querem ouvir o que tá rolando? Comecei a mostrar essas bandas. Isso tá acontecendo no Brasil. A gente tem que fazer alguma coisa por essa galera. Frommer ligou pra Warner, estamos aqui com Miranda...”

Com a força do nome dos Titãs dentro da Warner, e uma entrevista de Miranda anunciando o selo antes da aprovação da gravadora (história contada no documentário Sem dentes: Banguela Records e a Turma de 94, de Ricardo Alexandre), ele conseguiu abrir o Banguela, tendo o baterista Charles Gavin como principal parceiro na produção. Juntos, produziram discos emblemáticos daquela década como Samba esquema noise e Raimundos, ambos de 1994, que figuram no ranking dos melhores álbuns do rock nacional. Só para citar dois exemplos.

Quem não conseguiu contratar no Banguela, Miranda contribuiu, de alguma forma, para que assinasse com outras gravadoras, como Chico Science & Nação Zumbi e Planet Hemp. Para acelerar o processo de contratação da banda carioca pelo selo Chaos, da Sony, teve outra de suas ideias que mais pareciam ser traquinagem de garoto, fez um contrato falso para o empresário do grupo “esfregar na cara” do pessoal da gravadora, como uma espécie de chantagem. E funcionou.

Nos bastidores do mercado fonográfico, Miranda conseguiu mudar a história da música brasileira. Ajudou a divulgar o Manguebeat no Sudeste, despertando o interesse de jornalistas e gravadoras. Levou Otto, já ex-Mundo Livre S/A, para a Trama, na qual o compositor lançou, em 1998, o Samba pra burro, promovendo a transição do Manguebeat para uma nova fase na música pernambucana.

Nos anos 2000, criou e gerenciou o site Trama Virtual, um serviço brasileiro pioneiro (antes do sucesso do MySpace) que, em seus dez anos de existência, serviu de plataforma de lançamento para bandas como Cansei de Ser Sexy, Dance of Days, Teatro Mágico, Autoramas, Tequila Baby, Móveis Coloniais de Acaju, Apanhador Só, Ludovic, Black Drawing Chalks, Forfun, Hateen, Vanguart e NX Zero.

Concomitantemente, se tornou jurado de programas de talentos, como Ídolos, Astros e Qual o seu talento?, todos do SBT, firmando sua figura singular no imaginário do grande público brasileiro. E em muitas manchetes desta sexta-feira, ele foi definido assim, “jurado”, embora tenha sido muito mais. Algum livro ou documentário há de contar toda a sua abrangente trajetória, porque foi de empresário do Sepultura, em 1991, a produtor do pianista pernambucano Zé Manoel, em 2015.

Nelson Rodrigues costumava dizer que, se tivesse dinheiro, pagaria alguém para acompanhar Otto Lara Resende e anotar todas as frases geniais do seu amigo. Carlos Eduardo Miranda era um cara desses, merecia ter tido quem anotasse as coisas que falava. Como uma espécie de guru, dava generosos e importantes conselhos a todos. Como homem de humor ímpar, gostava de contar causos engraçadíssimos. Certamente, suas histórias vão continuar a serem contadas, vão atravessar gerações, contribuindo para levá-lo ao lugar que merece, o da lenda.

 

Homenagens a Miranda nas redes sociais: 

“Matias, velhinho, eu preciso escrever esse livro”, lamentou para mim inúmeras vezes, depois de lembrar, sempre às gargalhadas, de todas as merdas que fazia. “Escreve, porra!”, brigava. “Eu começo a escrever, paro pra ler e fico pensando: ‘mas esse cara se acha!’”, se criticava. “Mas Miranda, tu se acha!”, brigava de novo. “Não, cara, você que tem que escrever esse livro, tu escreve bem melhor que eu, fora que tudo que tu escreve fica bonito, parece que aconteceu de verdade. Se eu escrever, todo mundo vai ficar achando que é mentira”, gargalhava.

Alexandre Matias, jornalista


O Miranda era uma força da natureza. Um tufão. E era uma brisa, uma delicia de conviver. Era malaco e suave; contava altas lorotas e falava a verdade na lata. Era estratégico para armar suas paradas e louco varrido nas suas obsessões. Ganhou rios de dinheiro e gastou tudo em prazer - se empanturrando de DVDs e games e bonecos e comida boa, bebida boa, bons papos, só alegria. (...) Miranda era o amigo que todo moleque gostaria de ter.

André Forastieri, jornalista

 
Todos que estamos envolvidos de uma forma ou de outra com música no Brasil nos últimos trinta anos devemos muito a Carlos Eduardo Miranda. As duas principais bandas com as quais trabalhei, Mundo Livre S/A e Cordel do Fogo Encantado, tiveram seus melhores discos produzidos por ele. E dezenas de outras bandas e artistas também.

Antônio Gutierrez, produtor do Rec Beat

Perdemos nosso Guru da música e arte, um homem sem fronteiras, explorador do estranho, esquisito e legal! Nosso Rick Rubin!!! Não existem palavras suficientes pra expressar a minha eterna gratidão por ter acreditado nesses malucos de Brasília aqui! 'Bah velhinho' vai ecoar pra sempre no meu coração.

Digão, guitarrista dos Raimundos

Um dos caras que mais deu força no início da carreira do Jorge Cabeleira, coração imenso de generosidade, alma musical e completamente do bem. Vai em paz e nas ondas sonoras velhinho, obrigado por tudo!

Dirceu Melo, compositor, guitarrista e cantor

Ele sempre acreditou na música do Pará, eu vou lembrar do seu coração amoroso, do seu lado manteiga derretida e do paizão nosso que ele sempre será.

Gaby Amarantos, cantora

Dono de uma sinceridade ímpar, de uma sagacidade enorme, de muito humor, de muita paciência, um cavalheiro e um mestre capaz de lhe dar uma aula sobre tudo a cada momento... Obrigado por todas as lições e por tudo que falou ao vivo, em entrevistas, em palestras, em documentários, em comentários pra calouros ou pras bandas. Nem sei quantas vezes encontrei com ele... Não foram muitas mas também não foram poucas, mas em todas sinto que aprendi um pouco mais. Uma grande perda pra gente que teve a sorte de conviver com ele...

Jarmeson de Lima, produtor do Coquetel Molotov

Vai faltar espaço pra contar tudo de bom que o Miranda fez pela Música e da tristeza de tantos amigos. Uma perda e tanto, um cara sensacional. O mundo perde sua irreverência e conhecimento musical, Miranda, um dos baluartes da música boa no Brasil, vai fazer muita falta. Manda um abração pro Tom Capone!

João Barone, bateria dos Paralamas


Em 1993, Carlos Eduardo Miranda me ligou, de São Paulo. Queria saber sobre o som que rolava no Recife. Encomendou uma matéria para a revista Bizz. Mandei. Foi a primeira sobre o manguebeat publicada no Sudeste. Chamou atenção dos jornalões, da MTV. No primeiro Abril pro Rock, veio todo mundo para o Recife. Miranda, também, claro. Andava com uma mochila repleta de fitas k-7. Tanto recebia, quanto distribuía. Ganhei algumas, uma delas, a demo de Os Raimundos, que não tinha gravado disco ainda.

José Teles, crítico musical e escritor


Um dos caras mais legais que conheci na vida. Descanse em paz, Miranda.

Marcelo D2, compositor


Em 2016, eu e Miranda fizemos parte da comissão do Natura Musical. No último dia, voltamos juntos pra casa e dentro do carro rolou o maior papo pesado. Desabafei um monte de coisa, sobre estar em Recife, sobre a falta que sentia dele mais presente e de outras pessoas pra dar suporte ao Porto, falei tudo que queria. E o que recebi de volta foi: dois olhões azuis olhando bem sério pra mim, como nunca tinha visto, e na sequência uma enxurrada de ideias incríveis, justificativas fodas, alguns elogios e acima de tudo um: “estou aqui, sempre estive e sempre vou estar” . Desde que comecei minha carreira, que a presença dele é espiritual, que as gargalhadas são combustível e os puxões de orelha que levei, fundamentais. E agora ? Como disse Peninha, tudo fica muito mais sem graça agora...

Melina Hickson, produtora do Porto Musical


Difícil expressar o profundo choque e a tristeza que se abateram sobre a banda com o súbito falecimento do músico, produtor e brilhante agitador cultural Carlos Eduardo Miranda. Amigo e parceiro desde o Abril Pro Rock 93, o popular Veinho foi um dos primeiros a nos abrigar no Sudeste, patrocinando e produzindo – através dos selos Banguela e Excelente Discos – os álbuns Samba Esquema Noise (94), Guentando A Ôia (96) e Carnaval Na Obra (98). Desejamos muita luz e energia a todos os familiares e amigos mais próximos para suportar a imensurável perda dessa figura sempre otimista, cuja máxima era 'só alegria'. Tristes demais por terem nos roubado aquele que prometia ser um dos momentos mais felizes dos próximos meses: ouvir junto com Miranda o novo disco e presenciar suas primeiras reações. Suas expressões de êxtase artístico, gozo e nirvana, afinal, marcaram nossas vidas.

Mundo Livre S/A

Na noite do sábado, um dia antes do 1º APR, levei Gastão e o Miranda pro Poco Loco, show da Eddie e outra banda. O pau quebrou lá dentro, a briga saiu pra rua, parou o trânsito, um dos caras dava de cinto no outro. Logo depois, mais briga. Um carro diminuiu a velocidade e outro bateu atrás, jogando o carro em cima de outro estacionado. Tudo ali na nossa frente, em muito pouco tempo. Os caras não acreditaram, desistiram de entrar. Miranda questionou, 'Velho, o clima amanhã no festival vai ser assim? Caralho, nunca vi isso...'– Bem vindos...

Paulo André Moraes, produtor do Abril pro Rock

 

 

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