Artigo

Matrix, 20 anos depois

Um retrospecto sobre a obra que mudou o curso dos filmes de ação em Hollywood e antecipou questões sociais deste século como nenhum outro título do mítico ano de 1999

TEXTO Rodrigo Carreiro

21 de Maio de 2019

Os personagens Agente Smith (Hugo Weaving), Morpheus (Lawrence Fishburne), Neo (Keanu Reeves) e Trinity (Carrie Anne-Moss)

Os personagens Agente Smith (Hugo Weaving), Morpheus (Lawrence Fishburne), Neo (Keanu Reeves) e Trinity (Carrie Anne-Moss)

Imagem Divulgação

Três policiais entram no quarto escuro do hotel vagabundo sem entender por que os agentes do serviço secreto queriam evitar, a todo custo, que a abordagem daquela mulher vestida de couro negro fosse feita por eles. Afinal, era uma mulher sozinha, desarmada, em um cômodo praticamente vazio, à exceção de uma cadeira, uma escrivaninha e um computador. Eles eram três homens, estavam armados, e haviam recebido treinamento para lidar com situações como aquela. O que poderia dar errado? Descobririam em um momento: assim que o primeiro deles toca a mão da desconhecida, a fim de algemá-la, a mulher lhe quebra o braço, vira de frente para ele e salta para o alto, em uma pose típica de quem vai disparar um chute de kung fu.

Até esse momento, decorridos apenas alguns minutos de filme, Matrix já começara a derrubar estereótipos de filmes de ação, algo que faria repetidas vezes, antes e depois da projeção: a heroína, que ousava reagir contra a investida de três policiais homens, era uma mulher, e estava sozinha. Mas o primeiro de muitos momentos do filme capaz de deixar milhões de espectadores mundo afora de queixo caído viria a seguir. Trinity salta e para no ar. Literalmente. Ela para, e tudo o mais em torno dela. O tempo da narrativa congela. Mas não o dos narradores, pois a dupla de diretores novatos – que, mais tarde, protagonizaria duas ousadas mudanças de gênero e se tornariam mulheres trans – só interrompiam a ação dentro do mundo fictício. Enquanto a atriz permanece parada por exatos três segundos, a câmera dá um giro de 180 graus em torno dos dois atores, até estacionar do lado oposto. Só aí a ação retorna, com um dos chutes mais famosos da história do cinema sendo desferido pela atriz Carrie Anne-Moss. Mais 15 segundos e os três policiais estão desacordados, enquanto ela não tem um arranhão sequer. E os espectadores, assombrados, começam a se dar conta de que estão testemunhando uma pequena revolução.

Sim. Com o recuo proporcionado pelos 20 anos que se passaram, é evidente que Matrix mudou o curso dos filmes de ação em Hollywood, influenciou uma geração inteira de cineastas e tornou-se parte importante de tendências não apenas cinematográficas, mas também sociais e culturais, das duas primeiras décadas do século XXI, incluindo a valorização da cultura negra, o protagonismo feminino e, até mesmo, ainda que discretamente, a ascensão do movimento LGBTQ+. Goste-se ou não do filme, Matrix antecipou o século XXI como nenhum outro título do mítico ano de 1999, que nos deu outras obras de grande impacto da cultura pop (A bruxa de Blair, Clube da luta e O sexto sentido, por exemplo).


Cena lendária de Trinity e a inauguração do efeito bullet time. Foto: Reprodução

BULLET TIME
Dentro de uma perspectiva cinematográfica, o chute de Trinity marcou a primeira aparição de um efeito especial que revolucionaria não apenas as imagens geradas por computador, mas também a própria técnica da montagem em sequências de ação. A cena se tornou um momento tão paradigmático da cultura pop quanto o banho sangrento de Janet Leigh em Psicose (1960), e foi citada em dezenas de produtos audiovisuais nos anos seguintes, de comerciais de margarina a animações infantis como Shrek (2000). O efeito, denominado bullet time, envolvia o registro feito por duas câmeras de vídeo e execução sincronizada de uma sequência de 120 fotografias estáticas, animadas posteriormente em computador. Ele reapareceria aperfeiçoado, mas sem o mesmo impacto estético, nas sequências do filme – Matrix reloaded e Matrix revolutions (2003), que juntos com o primeiro filme, comporiam uma trilogia – e em dezenas de produções, desde 300 (2006) até o brasileiro Dois coelhos (2012). A técnica de alterar a velocidade da projeção no meio de um movimento, atrasando-a e/ou acelerando-a, se tornou ferramenta onipresente no repertório dos montadores, em sequências de luta. Ela pode vista em títulos como Mulher maravilha (2017), Vingadores: ultimato (2019) e em muitos outros, e não existiria sem a influência cultural do bullet time.

Curiosamente, a abertura de Matrix constituiu um risco calculado por Larry e Andy Wachowski, nomes utilizados na ocasião pela dupla de diretores e roteiristas. Como eram iniciantes (haviam dirigido, até então, somente um filme de baixo orçamento), eles tiveram apenas US$ 10 milhões liberados para as filmagens pela Warner. E gastaram a maior parte filmando a sequência de Trinity no hotel. Tinham fé de que, depois de verem o resultado pronto, os executivos do estúdio aumentariam o orçamento para os US$ 80 milhões que haviam calculado. Era uma aposta alta – e eles venceram. A produção, filmada na Austrália (cujos incentivos fiscais baratearam o custo total), recebeu sinal verde para ir em frente. Matrix chegou aos cinemas em 31 de março de 1999 (no Brasil, como era hábito na época até mesmo para as maiores produções de Hollywood, estreou algumas semanas mais tarde, no dia 21 de maio) e tornou-se um fenômeno da cultura pop. Até os modelos dos óculos escuros usados pelos protagonistas viraram coqueluche mundial. Os US$ 460 milhões arrecadados nos cinemas transformaram Matrix na produção mais lucrativa da história da Warner, até então.

O abalo provocado pelo filme na indústria do entretenimento não se restringiu à invenção de uma técnica de montagem, ou à venda de merchandising. O filme foi diretamente responsável pela popularização de um novo suporte de armazenamento e reprodução de filmes para o mercado doméstico: o DVD. O disco de Matrix contava com uma opção interativa que permitia aos espectadores acessar, durante a projeção, pequenos documentários mostrando o processo de criação de determinadas cenas, incluindo o chute de Trinity e o momento icônico em que o protagonista Neo (Keanu Reeves) – o programador de computadores responsável pela descoberta de que a raça humana foi transformada em alimento para máquinas, e a realidade não passa de um grande sonho coletivo – tem a capacidade de desviar de balas.



O DVD de Matrix não apenas bateu recordes de comercialização, vendendo mais de 30 milhões de cópias em três anos (há 20 anos, filmes de grande sucesso não atingiam sequer 10% desse total; o megassucesso Titanic, lançado no mesmo ano, não chegou a vender um terço desse total), como impulsionou fortemente as vendas de aparelhos de DVD, fazendo o suporte relegar o VHS ao esquecimento e modificar os hábitos dos consumidores, que pouco a pouco deixaram de lado a prática de alugar fitas em videolocadoras e passaram a comprar e colecionar discos contendo filmes e documentários de bastidores.

Muito se falou, na época do lançamento original, no modo como Matrix introduziu, no mundo da cultura pop, um interesse pela filosofia, até então restrito a acadêmicos. Filósofos como Jean Baudrillard e até mesmo Platão, que inspiraram o roteiro, passaram a ser lidos por jovens que usavam óculos escuros e botas de couro preto. Muitos deles demonstravam também um interesse especial pela cultura produzida no Oriente, em especial animações de ficção científica e histórias em quadrinhos. Esse interesse foi ampliado e diversificado nas duas décadas que se seguiram, em torno de fenômenos como o interesse crescente pelos thrillers e filmes de ação do Japão e da Coreia do Sul, e por toda a cultura que hoje chamamos de J-Pop e K-Pop. Sem Matrix, esse interesse talvez nunca tivesse se expandido tanto.

O universo ficcional de Matrix também foi um dos primeiros a explorar a convergência midiática, através de produtos conexos que expandiam o enredo central em múltiplas direções. Em 2003, durante a preparação para o lançamento do segundo filme da franquia, os criadores da saga conceberam Animatrix, uma coleção de nove curtas-metragens animados, com pequenas histórias vividas por coadjuvantes do primeiro filme, ou anônimos habitantes do universo nele estabelecido. Além disso, um game eletrônico intitulado Enter the Matrix trazia cenas gravadas com os atores da franquia, que revelavam detalhes inéditos da história contada nas duas sequências. Os enredos transmídia começaram a se tornar populares a partir daí.

MINORIAS
Além de tudo isso, os 20 anos transcorridos desde o lançamento permitem ao observador atento perceber que a própria trama de Matrix já sinalizava tendências culturais que ferviam no submundo frequentado pelos irmãos Wachowski, mas que só seriam percebidas como fenômenos sociais de grande alcance vários anos depois. O enredo do filme, por exemplo, valoriza sistematicamente o papel de personagens femininas fortes, inclusive fisicamente, que Hollywood costumava reservar para os homens – Trinity é o exemplo mais latente, mas há outras mulheres empoderadas no filme e em suas sequências, como Switch (Belinda McClory) e Niobi (Jada Pinkett-Smith).

Na linha de frente de uma tendência que só se tornaria massiva em Hollywood anos depois, Matrix também abre espaço de destaque para os negros no elenco: Morpheus (Lawrence Fishburne), mentor e professor de Neo, no primeiro filme, e vários outros personagens no restante da franquia – como Zee (Nona Gaye), Link (Harold Perrineau Jr) e a própria Niobi – são negros. A maior parte dos habitantes de Zion, a cidade subterrânea onde se escondem os últimos humanos livres sobreviventes, é formada por negros, como fica claro nas multidões que frequentam as raves que agitam as noites subterrâneas, nas duas sequências.

Aliás, o próprio Neo seria originalmente um negro, já que o ator escolhido pelos irmãos Wachowski para o papel – que ele recusou – era Will Smith. Além de tudo isso, o filósofo Cornel West (da prestigiada Universidade de Princeton), que atuou como consultor de filosofia nos filmes, faz uma ponta no segundo filme e está presente na trilha, em um comentário em áudio presente em Matrix reloaded e Matrix revolutions, para explicar as ideias filosóficas que ajudaram a elaborar a construção conceitual da franquia.

Finalmente, o filme ainda abraça a cultura LGBTQ+ de forma sutil, pois se não é possível ver esse tipo de relação afetiva em primeiro plano narrativo, elas aparecem nas paisagens humanas de corpos dançantes, nas festas agitadas que ocorrem em todos os três filmes. A questão ganharia força e visibilidade nos anos seguintes, tendo os dois diretores como protagonistas involuntários: Larry se tornaria Lana em 2012 e Andy passaria a assumir o nome de Lilly em 2016, ambas se tornando mulheres trans após fazerem terapias hormonais. As irmãs dirigiriam, ainda, duas temporadas da série Sense8 para a Netflix, em 2015, emprestando o carisma e a fama para angariar respeito e credibilidade à causa trans. Desde o sucesso avassalador do primeiro filme, as duas vivem discretamente e fazem raras aparições públicas, mas têm perfeita noção do quanto foram importantes para esgarçar o tecido da cultura pop do século XXI.

RODRIGO CARREIRO, jornalista, crítico e professor do curso de Cinema da UFPE.

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