Artigo

Brasil, número um

A incrível e obscura associação entre escravidão, religiosidade católica, poder jurídico, assassinatos, polícia, Carnaval, futebol, cirurgia plástica, cesárea, antidepressivo e agrotóxico

TEXTO E ILUSTRAÇÕES DANIEL LIMA

27 de Novembro de 2017

Os brasileiros têm a máxima “o mais grande del mundo” – brincam os amigos argentinos. Mas em quais aspectos o Brasil é o número um? Encarar o desafio de criar relações com números e estados de coisas, partimos. Fazemos aqui um exercício cartográfico, com uma sequência que pode ser refeita conforme a intenção do leitor. O objetivo em ordenar tais lideranças é revelar como o nosso passado se expressa no presente e para onde caminhamos. Relacionar dados macropolíticos para uma interpretação micropolítica que afeta a todos.

Os números são assustadores. Assustam as marcas traumáticas da colonização e os reflexos da extrema violência da nossa realidade atual. Como pensar no futuro em um país com verdadeira epidemia de assassinatos? Como nos tornamos um país genocida por meio do controle exercido pelas forças policiais?

A maior escravidão do planeta gerou uma das maiores exclusões sociais de muros visíveis e invisíveis. Temos a maior frota de veículos blindados civis. Blindagem, um recurso militar de proteção sendo usado na cidade. Assusta também a ruptura com o nosso corpo vibrátil: o ideal colonizado versus o corpo vivo. Temos no Brasil o maior número de cirurgias plásticas, o maior uso de remédios antidepressivos e de controle de humor, a maior quantidade de partos por cesarianas e, retornando ao corpo morto, o maior número de assassinatos.

Uma história de negação de si mesma como sociedade, como nação. Autoestima e reconhecimento particularmente conflitivas nos contextos de países colonizados onde o padrão de vida, conhecimento, verdade foram trocados com a eterna presença do colonizador, em um encontro sempre devedor de sua própria existência. A Igreja como um dos principais vetores de imposição do padrão europeu de beleza, de verdade, de construção de mundo. A Igreja, “o” principal vetor da colonização? Diante da visibilização de uns, a invisibilização da maioria.

Os números da polícia e do judiciário também assustam, um pela sua letalidade brutal e outro pelo seu imenso poder; o poder de manter tudo como está – controle – baseado na autonomia sem transparência. Corpo jurídico para manutenção da injustiça. Cada juiz um poder, cada policial um juiz da morte. O Estado Policial construído nos mínimos detalhes. A prática letal e ilegal das forças policiais conjugadas com a conivência judicial forma uma sociedade genocida. Genocida, em relação à sua população mais vulnerável: jovem, negra e pobre. O racismo constituinte da sociedade se expressa não somente na exclusão social, mas no corpo violentamente assassinado. É preciso dizer e redizer isso de novo. De novo e de novo…

Mas nem tudo está dominado. As histórias funcionam também ao revés, se a contrapelo a escovamos. As catarses do futebol e do Carnaval tornaram-se símbolos nacionais e lideranças mundiais. Alienação, espetacularização, profanação a sublimar a moral cristã. O vira-latas se torna rei do mundo!

O binômio “país que mais usa agrotóxicos no mundo” versus “a maior biodiversidade do planeta”. O capitalismo do lucro sem fim, da terra sem fim, do latifúndio eterno, vale tudo, até se envenenar em morte lenta cancerígena. Agrotóxicos proibidos no mundo todo aqui estão disponíveis ao agronegócio.

Deixamos de fora muitos números e lideranças: Brasil, o maior produtor de café, por exemplo. E nos deparamos com outros mitos: não temos a maior taxa de juros do planeta. Guardamos para outro estudo índices alarmantes que tem crescimento contínuo nas últimas décadas e que já alcançam a indesejada posição de destaque mundial: um dos maiores encarceramentos e sistemas prisionais. Temos a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas de países mais populosos como EUA, China e Rússia.

Cada um dos apontamentos abre para outras linhas que, em alguns casos, são concentradas em blocos autônomos, como a maior quantidade de assassinatos no mundo, que se desdobra em outro extremo: a maior quantidade de assassinatos de travestis no mundo.

Escolhemos assuntos que potencializam a construção de uma narrativa sobre nossa história americana. Pontos delimitados que propiciam conexões para formação de diagramas cartográficos. Aqui a cartografia toma corpo como um exercício de “associologia” como propõe Bruno Latour: “Estas pesquisas não dizem respeito à natureza ou ao conhecimento, às coisas-em-si, mas antes a seu envolvimento com nossos coletivos e com os sujeitos. Não estamos falando do pensamento instrumental, mas sim da própria matéria de nossas sociedades”.

A pesquisa aqui desenvolvida, de maneira independente, pretende, portanto, dar instrumentos para uma visão panorâmica do estado excepcional que vivemos no Brasil hoje, que se reflete em diversas dimensões da vida, e sua conexão com a história de colonização das Américas. Para tanto, considerou índices dos últimos cinco anos, de forma que algumas estatísticas são “conquistadas” entre 2012 e 2017. Destaca-se o ano de 2013, talvez por reproduzir estatisticamente o auge econômico do ano precedente de 2012.

Somam-se aos índices atuais visões historicamente criadas como a maior escravidão do mundo. A intenção é poder abrir um caminho de relações temporais não cronológicas que podem ser lidas de trás para frente, do passado ao presente, ou simultaneamente. Esta cartografia pretende dar instrumentos para uma visão panorâmica do estado excepcional em que vivemos no Brasil, que se reflete em todas as dimensões da vida hoje, e sua conexão com a história de colonização das Américas. O Brasil passa a ser ponta de lança das tendências do novo capitalismo financeiro e cognitivo. A cartografia pode se desdobrar e criar conexões com o contexto do Sul global.

Como todo trabalho, este também fala a partir da sua forma, seu processo constitutivo. Seguindo um caminho crítico em relação à ciência, este trabalho propõe um olhar torto ao paradigma dominante da ciência que busca dividir a realidade em oposições puras – “mente versus corpo; forma versus conteúdo; observador versus observado; objetivo versus subjetivo; imaginação versus real; coletivo versus individual” – e aposta em um paradigma emergente no qual:

Todo o conhecimento científico-natural é científico-social.
Todo o conhecimento é local e total.
Todo conhecimento é autoconhecimento.
Todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.(1)

A estes campos, o estudo pretende relacionar conceitos que podem ajudar a espalhar as reflexões por outras tramas conceituais, como técnica moderna, espaço público e antropologia simétrica, invisibilidade e reconhecimento. Se há um tom militante na “associologia” proposta, é a aposta na urgência como ponto de partida, a fim de detectar pontos e nós para investigações mais aprofundadas de uma perspectiva descolonial.

BRASIL#1 MAIOR ESCRAVIDÃO DO MUNDO
O Brasil foi erguido por uma diáspora forçada de mais de quatro milhões de africanos escravizados que cruzaram o Atlântico. Essa diáspora se configurou como a maior escravidão da história moderna em números totais. Também em duração foi umas dos sistemas escravocratas mais longos: o Brasil foi o último país a abolir a escravidão na América. O Brasil foi a mais importante colônia para o tráfico negreiro. Estima-se em 45% de todos os negros escravizados abasteceram o sistema produtivo da Terra Brasilis, sendo que mais de 660 mil morreram no trajeto da África à América.

Tivemos no Brasil, assim como em várias partes da América, a expressão da técnica moderna caracterizada pelo desafio e pela exploração. A técnica moderna, no contexto das sociedades coloniais, é uma bizarra combinação entre humanos e não humanos. Começa por considerar como não humano o próprio humano. A escravidão explorava este ser humano como “energia estocável” até o limite vital. Mesmo diante da morte dos escravizados, aqui incluídos também nativos americanos, existia a garantia do abastecimento constante da energia na forma de força de trabalho durante séculos de triangulação do tráfico negreiro.



A técnica moderna nasce do desafio da exploração do humano posto na condição de não humano. Podemos enxergar esta extração a partir do mínimo de despesas do mundo colonizado na utilização do trabalho escravo e exploração da natureza humana. A natureza nesta trajetória seria secundária. Antes de mais nada, há de explorar a natureza humana e sua força de trabalho.

Somente a partir desta exploração, foi possível a capitalização do mundo ocidental para a nova fase industrial. Não à toa, a Inglaterra, o primeiro país a marcar sua sociedade pela industrialização, tenha sido o principal beneficiário do comércio de escravos nos tempos modernos.

Do humano ao não humano, essa animalização vai gerar consequências radicais nas sociedades que adotaram a escravidão como processo produtivo. A animalização do outro, a diferenciação do outro como coisa, se conjura na demonização desse outro. Nesta perspectiva, é impossível desconsiderar a inevitável batalha pelo reconhecimento da humanidade dos negros e indígenas. Uma luta por reconhecimento não como queixa, mas como sobrevivência.

BRASIL#1 MAIS CATÓLICO NO MUNDO
A religião e a escravidão andaram sempre juntas na história moderna. Era necessário batizar o escravo para que ele pudesse entrar em terras americanas, talvez o primeiro sinal de colonização da identidade. Não por acaso, o país com a maior escravidão tem também o maior números de católicos.



O tríplice trauma da colonização – escravidão, extermínio indígena e perseguição religiosa – marca nossos corpos. Indivíduo e sociedade vivem um duplo de movimento: de um lado, uma luta por reconhecimento dessas tragédias e dos que foram atingidos nas longas políticas de opressão; do outro, um apagamento extremo dessa história. Há no Brasil, cerca de 123 milhões de católicos que representam 64,6% da população, segundo o censo IBGE de 2013. No primeiro censo, em 1872, a religião católica era seguida por 99,7% da população. Hoje, a religiosidade cristã está diluída entre os evangélicos em crescente aumento.

BRASIL#1 O JUDICIÁRIO MAIS CARO DO MUNDO
O custo da justiça no Brasil é recorde. Cerca de 1,3% do PIB brasileiro fica com o Poder Judiciário, ou 10,7% de tudo o que é gasto pela União, estados e municípios. Os membros do judiciário no Brasil custam 11 vezes mais do que o da Espanha, 10 vezes mais do que o da Argentina, nove vezes a mais do que o dos EUA e da Inglaterra, seis vezes mais do que na Itália, na Colômbia e no Chile. É um gasto anual de R$ 306 no bolso de cada um dos 200 milhões de habitantes do Brasil. Justiça cara e cuja característica é a lentidão.

A Faculdade de Direito foi uma das primeiras faculdades no Brasil. A formação em Direito foi historicamente reservada à elite brasileira. Apesar de representar o constante embate por um sistema legal mais justo e democrático, o corpo jurídico do Estado brasileiro serviu e serve à manutenção da injustiça e do desequilíbrio social.



Soma-se a esta situação o aumento vertiginoso do encarceramento no Brasil, que nos coloca atualmente como quarta maior população carcerária do mundo. O país aumentou sua população carcerária em 270% nos últimos 14 anos, seguindo o modelo estadunidense de encarceramento em massa na falida guerra contra drogas – que afinal pune desproporcionalmente jovem, negro e pobre.

Uma das características do Poder Judiciário brasileiro é autonomia sem transparência. Não há um Poder Judiciário no Brasil, mas cerca de 17 mil magistrados. Cada juiz, uma sentença. Cada juiz, um poder local. A jurisprudência no Brasil não é uma prática reiterada. Ao mesmo tempo que é independente e menos sujeito a controle, não tem nenhum mecanismo de legitimação popular. o contrário de outras partes do mundo, como nos EUA, onde se elegem juízes, no Brasil a eleição fica reservada às indicações do Supremo Tribunal. O nosso judiciário, na maior parte, seleciona os seus próprios integrantes, criando um círculo vicioso de autonomia excessiva e democracia escassa.

BRASIL#1 MAIS ASSASSINATOS NO MUNDO
Se a Copa do Mundo não nos trouxe recordes, em 2014 os homicídios atingiram a proporção de 29,1 mortos por 100 mil habitantes. O Brasil se colocou como o detentor do trágico título de país com o maior número absoluto de homicídios do planeta, representando cerca de 10% dos homicídios no mundo, em uma população que representa apenas 2,8% da população no mundo.

Jovens, negros e pobres são as maiores vítimas desses homicídios. Somente 3% desses assassinatos têm apuração e são levados a julgamento. São 163 mortos por dia, assassinados. As armas de fogo são responsáveis por 76,1% do total de homicídios no país. A evolução dos homicídios cresceu 18,2% entre os negros e entre os não negros, diminuiu 14,6%. A idade em que se há mais risco de ser vítima de homicídio no Brasil é aos 21 anos de idade.



Todo debate político atual no país deveria começar pela discussão sobre a epidemia de assassinatos em que vivemos. Como discutir a taxa de juros diante de 163 assassinatos por dia? Como discutir a retomada da economia diante de 163 assassinatos por dia? Como viver dia a dia diante de 163 assassinatos por dia? Talvez a pior consequência desses números letais seja a naturalização da violência.

A violência é chave para nossa passagem do humano ao não humano, não em simetria, mas, sim, em hierarquia profunda, que vai da animalização à demonização do outro.

Além disso, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Cerca de 600 mortes em seis anos colocam nosso país com o maior número de assassinatos de travestis e transexuais, revelando um grave quadro de violência homofóbica. Mais de 14 pessoas por dia são vítimas de violência homofóbica no Brasil. Cerca de 15,6% dos homicídios tem um gatilho policial, segundo o relatório da organização não governamental Transgender Europe, no ano de 2014.

BRASIL#1 A POLÍCIA QUE MAIS MATA E MORRE NO MUNDO
Levantamento aponta que, em cinco anos, as polícias brasileiras – civil e militar – mataram tanto quanto a polícia norte-americana em três décadas. Aqui, os números foram entre 2009 e 2013 de 11.197 mortes reportadas, causadas por policiais. No mesmo período de cinco anos, foram mortos 1.770 policiais. Isso nos coloca no ponto alto da violência perpetrada e sofrida por agentes de segurança do Estado.



Tal política de segurança genocida remonta à nossa história de colonização em que a maioria, a imensa maioria, tem de ser controlada. Esse controle, dentro dos aspectos da sociedade brasileira, torna-se brutal e fatal. Cabe perguntar: qual a atuação do judiciário em relação a essa polícia extremamente letal e extremamente violentada? Como o judiciário se torna conivente com uma atuação policial genocida?

BRASIL#1 MAIOR FROTA DE VEÍCULOS BLINDADOS DO MUNDO
“Você nos melhores lugares” é o slogan do Citroen C4 Lounge lançado na televisão brasileira em 2013. Na propaganda, acompanhamos um casal dentro de um carro, cruzando a noite de cidade deserta. Diante da entrada arquitetônica moderna de um imponente teatro, o carro se dirige ao espaço interno. Da rua asfalto ao carpete do espaço privado. Entre pessoas “comuns”, o casal segue dentro da sua redoma automobilística. Dentro do carro protegidos de qualquer interação, o motorista estaciona o veículo entre a plateia, em um espaço reservado. Diante da admiração de todos da audiência, o casal está agora posicionado para ver o espetáculo.

Este breve comercial televisivo demonstra a mentalidade de proteção desdobrada em isolamento que se expressa no nosso contexto atual no Brasil. A mensagem é clara: o carro é nossa bolha pessoal, nossa mediação com o mundo. O carro e a unidade familiar tornaram-se um só, protegidos de uma sociedade hiper violenta. A bolha móvel como extensão do corpo. O receptáculo de proteção característico de sociedades que tiveram colonização escravocrata na qual a maioria vive em condições precárias em oposição a uma pequena elite abastada em constante medo.



BRASIL#1 FUTEBOL MAIS VITORIOSO DO MUNDO
Futebol: orgulho nacional! O maior campeão de Copas do Mundo! O maior esporte nacional, fervor nacionalista verde e amarelo, desempenha também importante papel no imaginário brasileiro, seja na questão racial ou de gênero. Em termos raciais, o futebol funciona como metáfora da democracia racial. O Brasil como um “cadinho de raças”, como prega Gilberto Freyre (2). O futebol com sua seleção multiétnica sendo uma representação em microescala da identidade macunaímica da nação (3): a junção crioula entre as heranças europeias, africanas e ameríndias a gerar o drible, a malemolência e a vitória. A nação vira-latas vence diante do purismo europeu. O negro herói coroado rei pela rainha dos elfos.



O espetáculo semanal futebolístico busca também representar o papel feminino na sociedade patriarcal. Durante 120 minutos televisivos no horário nobre, vemos somente homens em competição atrás da bola, e do chute à rede. Talvez o esporte se configure como o principal bastião do patriarcado, já que o é narrado a partir da perspectiva masculina. Neste sentido, o futebol é apenas a ponta de lança do esporte como discurso. O Brasil, mesmo sendo sede da Olimpíadas de 2016, teve quais categorias esportivas dos jogos, sejam masculinos ou femininos, narradas pela voz de uma mulher? É o modelo do protagonismo masculino da batalha de nações, sejam de identidades locais, nacionais, regionais ou continentais.

BRASIL #1 MAIOR CARNAVAL DO MUNDO
Ao lado das estatísticas de extrema violência (maior quantidade de assassinatos no mundo e de polícia que mata e morre no mundo), temos no Carnaval o contraponto da multidão como transbordamento, festa como sublimação e fantasia sexual como catarse. No Carnaval maior do mundo, representamos em gozo o ideal da democracia racial da nação brasileira. Mas, ao mesmo tempo, reconhecemos a falência desse projeto nos diversos dispositivos de segregação impostos às multidões pelo Brasil afora. Seja nos dispositivos “corda e cordeiro”, que na festa de trios de Salvador separam a “pipoca” negra dos portadores de “abadá”, seja nos destaques brancos das escolas de samba do Grupo Especial do desfile carioca.



BRASIL#1 MAIS CIRURGIAS PLÁSTICAS NO MUNDO
O Brasil liderou o ranking de realização de cirurgias plásticas estéticas em 2013. Mais de 1,49 milhão de cirurgias plásticas para fins estéticos no ano, quase 13% do total mundial.

A manipulação do corpo pode ser vista pelo viés do hibridismo entre humano e máquina. Entretanto, impossível não pensar como o padrão colonizador cria um corpo desejado que não corresponde ao corpo vivo. O olhar atento à liderança do Brasil, não só à quantidade, mas ao tipo de cirurgia, pode apontar esta distância entre o que é o corpo e o que se deseja do corpo. O recorde mundial nas cirurgias de nariz, por exemplo, levantam a hipótese de recusa do fenótipo étnico não branco. O discurso hegemônico sobre a beleza branca é reiterado diariamente e envolve nossa concepção de gênero e etnia. No Brasil, o embranquecimento ocupa as nossas subjetividades fragilizando a autoestima e reconhecimento. 

BRASIL # 1 MAIS CESÁREAS NO MUNDO

A cada 10 partos realizados em maternidades particulares no Brasil, 8,5 são cesáreas – a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda 1,5. (mais aqui) 

A ruptura com o corpo vivido também se expressa na recusa social do processo de parto que ocorre no Brasil nas últimas décadas. Uma cultura de afastamento de um possível parto normal já estava contida nas maternidades que até hoje têm altos índices de violência obstétrica. Grande parte das mulheres brasileiras já estava submetida, na vivência do parto, a uma recusa do tempo e do cuidado que o parto exige. Entrar numa maternidade até hoje, para grande parte, significa estar submetida a um mundo cultural que, seguindo os passos do patriarcado, impõe violências obstétricas. Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo em 2011, uma em cada quatro mulheres afirma ter sofrido maus tratos durante o parto.



A operação cesárea, então, expressa essa ponta de lança do processo de desumanização do parto. Novamente aqui podemos buscar a simetria entre humano e máquina, no sentido de observar que nas sociedades que sofreram o trauma da colonização, essa simetria pode significar rebaixar o outro à categoria de coisa, de número, de não digno de tratamento humano.

BRASIL # 1 MAIOR USO DE ANTIDEPRESSIVOS DO MUNDO
O maior consumidor de antidepressivos do mundo nos comunica o ritmo voraz e a disfunção entre vida e desejo. As funções cotidianas tornam-se tão insuportáveis diante de tamanha precarização da vida que somente com a medicação generalizada é possível manter máquina-capital funcionando. A demanda pela manutenção do ciclo incessante de trabalho e consumo é explorada pelo mercado farmacêutico. Quem lucra com essa dessincronia entre forças vitais e cotidiano maquínico?



Podemos espreitar este mundo distópico novamente pela lente da simetria entre humano e não humano. Tomando a metáfora dos infinitos filmes que pipocam sintomaticamente nestes tempos, podemos imaginar que a fome antropofágica zumbi, fome de corpo e cérebro, afinal é a fome pela força vital, pelo corpo vibrátil. Numa simetria espelhada, somos os sobreviventes e os zumbis. E na luta pela sobrevivência do ser humano em nós, eliminamos o outro monstrificado.

BRASIL # 1 MAIOR USO DE AGROTÓXICOS DO MUNDO
Seja na relação entre natureza e agrotóxico, seja entre humano e antidepressivos, vivemos no Brasil e no mundo a realização da distopia moderna. Jamais fomos modernos senão na distopia, no oposto da purificação entre cultura e natureza, razão e emoção, humano e não humano. Nos alimentamos e somos, juntos à química forjada em séculos de desenvolvimento tecnológico, um ser híbrido: parte corpo e parte droga. Um encontro complementar não para formar uma coesão em torno da vida, mas, sim, como para emular a satisfação da vida.

“Desde 2008, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Enquanto nos últimos dez anos o mercado mundial desse setor cresceu 93%, no Brasil, esse crescimento foi de 190%, de acordo com dados divulgados pela Anvisa. Segundo o Dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) – um alerta sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde, publicado nesta terça-feira no Rio de Janeiro, 70% dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos. Desses, segundo a Anvisa, 28% contêm substâncias não autorizadas.”



BRASIL # 1 MAIOR BIODIVERSIDADE DO MUNDO
“Dentre as 200 nações do mundo atual, apenas 17 países possuem em seus territórios cerca de 70% da biodiversidade, representada pelas espécies animais e vegetais hoje existentes. A riqueza animal, que confere ao Brasil a primeira colocação em alguns outros quesitos, é representada por 524 espécies de mamíferos, 70 espécies de pássaros da Ordem Psittaciformes (araras, papagaios e piriquitos), mais de 3 mil espécies de peixes de água doce e algo entre 10 e 15 milhões de espécies de insetos (a grande maioria ainda não foi descrita pela ciência).” (4)

Podemos enxergar a distinção de mundos quando consideramos o maior uso de agrotóxicos e a maior biodiversidade do planeta. Este conflito fundante da nossa sociedade já estava marcado nos ciclos econômicos iniciais do Brasil Colônia. A extração de Pau-Brasil, as plantations (monoculturas) de cana-de-açúcar e a mineração, todas formas modernas da técnica como desafio e exploração somado à exploração na força de trabalho escrava. A diversidade biológica era, então, um obstáculo a ser transposto. E assim também a diversidade social era um obstáculo à planificação e normatização da vida colonial. A tentativa moderna de purificação da cultura versus a natureza expressava a distância entre perspectivas de mundo diante de europeus e ameríndios.



Mas a maior biodiversidade do planeta cercada nos nossos limites territoriais nacionais é o anúncio de um outro mundo possível. Um devir Brasil do mundo pelo qual a biodiversidade pode ser pensada como uma rede entre natureza e cultura. Uma rede bio-técnica-social que nos forma dentro de uma biodiversidade natural e social. A nossa perspectiva revolucionária desta equação entre biodiversidade natural e cultural gera novas formas de vida híbridas no presente e aponta ao futuro. Não à toa, lutamos contra a hegemonia, pois esta é o apagamento e a sobreposição das diferenças. Nesta batalha biopolítica, somos atravessados não somente pela substância das forças de controle e planificação da vida, mas também, em oposição, somos atravessados pela subsistência da diferença. Para superar a desumanização colonial, a biodiversidade nos propõe uma outra humanização, a reconquista da relação entre humano e não humano.

NOTAS:

(1) SANTOS, Boaventura de S. Um discurso sobre as ciências. 7.ed. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

(2) Gilberto Freyre defendeu a perspectiva racial miscigenada no Brasil em seu livro Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (1966) como expresso no trecho: “A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. A índia e a negra-mina, a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social no Brasil”.

(3) O escritor brasileiro Mario de Andrade publicou Macunaíma, o herói sem nenhum caráter em 1938.

(4) O resultado está no livro Megadiversidade: As nações biologicamente mais ricas do mundo, com 300 páginas, publicado em inglês e espanhol, lançado em dezembro de 1997, em Washington.

DANIEL LIMA é artista, pesquisador, editor e curador. É bacharel em Artes Plásticas pela Escola de Comunicação e Artes da USP, mestre em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC/SP e doutorando em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicação e Artes da USP.  Próximo de trabalhos coletivos, desenvolve pesquisas relacionadas a mídia, questões raciais e processos educacionais. Membro fundador de A Revolução Não Será Televisionada, Política do Impossível e Frente 3 de Fevereiro. Dirige a produtora e editora Invisíveis Produções.

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