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Tradições: Juntando forças

Livro 'Reencontros', com fotos de Mateus Sá e Guga Soares, traz o reconhecimento mútuo entre as culturas dos índios capinauás e do maracatu rural

TEXTO Guilherme Novelli

01 de Fevereiro de 2014

Foto Mateus Sá/Divulgação

O primeiro, de Buíque, Sertão, terra dos capinauás, um dos 12 povos indígenas de Pernambuco. O segundo, de Nazaré da Mata, Zona da Mata, terra do maracatu rural, uma das manifestações culturais mais ricas da cultura popular brasileira. Encontros no primeiro e último sábados de julho de 2013. De início, o estranhamento, medo do contato com o desconhecido, uma clivagem cultural imposta, estereotipada do índio: povo selvagem, com arco e flecha, cabelo liso e papagaio no ombro.

Imagem bem diferente daquela encontrada pelos brincantes de maracatu que se aventuraram a sair de seus domínios, muitos deles pela primeira vez na vida, e participar do toré – ritual religioso capinauá, realizado na Furna, caverna indígena sagrada.

Depois dos encontros, a valorização do índio, da importância dele dentro do maracatu, pela figura do caboclo de pena, personagem do brinquedo que representa o índio, o pajé, o curandeiro. Em ambos, o reconhecimento de si através da cultura do outro. Juntos, índios e brincantes na batida de pé do coco, o maracatu na sambada e o canto capinauá: “Eu cheguei agora nessa nova aldeia, eu cheguei agora nessa nova aldeia”.

Reencontros é o nome do livro que registra esse contato, com fotografias de Mateus Sá e Guga Soares, texto de Lula Marcondes e Caroline Leal, com lançamento previsto para o mês de março, numa parceria entre a oficina de criação O Norte e o Funcultura. Registra os dois encontros entre os capinauá e o maracatu rural com o intuito do reconhecimento das semelhanças culturais entre os dois grupos, além de possíveis diálogos quanto às problemáticas distintas que cada um enfrenta.

“Todos os que não estiveram presentes no primeiro encontro fizeram questão de estar no segundo”, conta Lula Marcondes, idealizador do projeto. “No final, falaram que estavam muito felizes em conhecer a cultura do outro por dentro e ver a força de cada grupo para a luta.”

Enquanto os capinauás lutam pela terra, o maracatu luta para manter sua expressão cultural. A data do primeiro encontro em Buíque foi escolhida em função da “retomada” de uma fazenda, há décadas expropriada, dentro das terras capinauás.

“O elemento que os assemelha é o da opressão histórica, com percursos e formas de resistência diferentes”, define Caroline Leal, doutora em Antropologia pela UFPE e consultora do projeto. “É justamente por não existir um diálogo que nasce a nossa proposta, pois os capinauás têm um processo de resistência através da luta pela terra, e os brincantes do maracatu foram expropriados, historicamente, mas não têm essa luta; sua forma de resistência é através do belo, da arte”, complementa.


Os encontros ocorreram entre índios e brincantes durante a realização do toré, ritual religioso dos capinauás: Guga Soares/Divulgação

Os dois encontros provocaram essa discussão, essa reflexão para ambas as partes: os brincantes de maracatu compreenderam a organização e a articulação indígena para a retomada e conservação de suas terras; os capinauás, a força do maracatu pela manutenção de seu patrimônio cultural.

AUTORES
Mateus Sá é um fotógrafo com um olhar antropológico sutil e ao mesmo tempo profundo. O projeto que o tornou conhecido como artista foi a pesquisa Luz do Litoral, de 2005, uma documentação fotográfica sobre as comunidades nativas de pesca do litoral de Pernambuco, incluindo Fernando de Noronha, que estão em vias de desaparecer devido à especulação imobiliária e ao modelo de turismo do estado.

Em Reencontros, ele e Guga Soares procuraram capturar a surpresa presente nos dois encontros, o encantamento de uns com os outros, a proximidade e o estranhamento, um observando a cultura alheia. “Eu tive um enriquecimento pessoal ao fotografar os dois encontros, pois há algum tempo realizo pesquisas com o maracatu e os povos indígenas, e esse evento ampliou meu entendimento, minha compreensão, minha admiração por ambos”, conta Mateus.

O texto do livro não tem a intenção de folclorizar o maracatu e os povos indígenas. “Essa é uma crítica que nós fazemos, pois, historicamente, os governos que se sucederam sempre usaram o maracatu como propaganda da cultura local”, argumenta Caroline. “Ele é mesmo o exemplo de Pernambuco, porque é o explorado, o oprimido, representante do trabalho escravo que persiste até hoje na Zona da Mata, e isso é muito mascarado pela alegoria, pelo folclore”, defende a antropóloga.

O legado de Reencontros é o de caminhar rumo a uma sociedade intercultural, não apenas na questão do respeito à diversidade étnica e cultural, mas no reconhecimento social e estatal de que essas comunidades também são sujeitos de direito. “São sujeitos que estão vivos e têm de estar presentes na contemporaneidade também sob um ponto de vista jurídico, econômico, linguístico, territorial, cultural”, resalta a antropóloga. Os capinauás aceitaram participar do projeto com a condição de que o livro seja parte do currículo das escolas indígenas. 

GUILHERME NOVELLI, jornalista.

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