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Polícia: A realidade como fonte

A literatura que retrata e redimensiona a violência nas ruas do país – vigiadas por personagens que comumente se equivocam sobre seus papéis

TEXTO Rodrigo Casarin

01 de Dezembro de 2015

Foto Fabio Teixeira/UOL/Folhapress

"O menino ouviu outros estampidos. E, antes que os policiais sumissem morro acima, sentiu algo lhe beliscar o peito. Encostou-se na parede de madeira do barraco, inesperadamente fraco, uma estranha queimação nas costas. O caderno lhe escapou da mão e caiu sobre o peito. De um instante para o outro, os olhos lhe pesavam, estava com sono, cansado de ter corrido até a venda, o estômago rumorejando de fome. A boca começou a lhe saber à ferrugem. O peito ardia, e ele suava, suava tanto, que o corpo ensopara. As vistas se escureciam; mas ainda há pouco era tarde, o sol fulgurava, como a noite chegara tão depressa? O que estava acontecendo? Um vulto se inclinou sobre ele, não conseguia distinguir seu rosto, mas sabia: era a mãe."

A cena acima poderia descrever o assassinato do garoto Eduardo de Jesus, morto aos 10 anos, em abril deste 2015, no Complexo do Alemão. Também poderia descrever o assassinato do menino Herinaldo Vinícius da Santana, morto aos 11 anos, em setembro, na Favela Parque Alegria, no Caju. Policiais cariocas tiraram a vida de ambos. Mas a narrativa faz parte de No morro, escrito em 2001 por João Anzanello Carrascoza, que, na época, se inspirou em uma outra criança morta dessa maneira para escrever o conto, publicado originalmente no livro Duas tardes.

Ao vermos como a polícia brasileira está retratada em nossa literatura, é fácil constatarmos que quase sempre ela se aproxima mais dos bandidos do que de corretos defensores públicos. Hoje, escritores como Ferréz, Edyr Augusto e Marcelino Freire, em livros como Capão pecadoMoscow e Contos negreiros, transformam em ficção os descalabros, comumente noticiados nos jornais, promovidos por policiais. Levam à literatura as chacinas, as farsas, o abuso de poder e a corrupção, que afastam cada vez mais o braço armado do estado de boa parte da população.

“Na nossa literatura, a polícia aparece como bandido. Isso tem muito a ver com o fato de termos uma polícia militarizada, herança da nossa ditadura. A polícia militar, com sua filosofia de guerra, não cabe numa sociedade democrática. Ela é vista pela população não como segurança, mas como ameaça. Por muito tempo, boa parte da nossa sociedade manteve um ethos ‘infrator’ de não respeitar leis, de subornar guardas de trânsito, de achar que prisão e regras são para os pobres. E, claro, a polícia é um reflexo dessa sociedade. Não é por acaso que temos visto tantos policiais sendo presos. A verdade é que nossa democracia ainda está em construção, e a corporação policial tem que acompanhar esse movimento, vai ter que se adequar ao clamor ético da sociedade, vai ter que sofrer uma reforma estrutural. Enquanto isso não acontece, enquanto a massa policial continuar insatisfeita e malpaga como é, seu retrato será esse”, analisa a escritora Patrícia Melo.

Em Fogo-fátuo, seu último trabalho, no entanto, Patrícia cria a investigadora Azucena, personagem que procura mostrar um outro lado da polícia, aquela correta, que, apesar dos percalços, mantém-se conforme os princípios que a profissão exige. “Queria mostrar a dificuldade que é, para um policial sério, trabalhar sem equipamentos, sem estrutura, numa corporação viciada e corrupta.”


João Anzanello Carrascoza inspirou-se em morte violenta de uma criança em conto do livro Duas tardes. Foto: Divulgação

A autora conta que se inspirou no trabalho de uma perita para compor o ethos profissional de Azucena. “Há na polícia gente muita séria, como ela, que se dedica de corpo e alma ao trabalho. São pessoas assim que fazem com que a instituição mude para melhor. Conheci muita gente boa durante a fase de pesquisa. O problema é que nossa violência acontece em escala industrial. Não temos força, equipamento, nem inteligência que dê conta desse volume de violência”, opina.

NÃO FICÇÃO
Se a escala da violência é industrial, o impacto disso fica mais evidente nas obras de não ficção, segmento no qual é ainda mais difícil de se encontrar representantes edificantes da polícia. Em 2012, Rodrigo Nogueira Batista, ex-soldado da PM carioca, lançou o livro Como nascem os monstros, em que revela o processo de desumanização ao qual os policiais são submetidos, quando passam a fazer parte da corporação. Na obra, detalha como jovens que recebem a farda sonhando em servir a população são engolidos pelo sistema vigente e transformados em criminosos; ou, ao menos, em coniventes e atemorizados cúmplices.

Batista foi preso em 2009, após ser condenado por crimes como atentado violento ao pudor e tentativa de homicídio triplamente qualificado. “No militarismo, não tem como uma coisa, seja ela boa ou errada, continuar sem a anuência de quem está no comando. Se eu e você estamos na patrulha, trocando tiros, matando gente, e a gente continua na patrulha, é porque o comando quer que a gente continue. Toda área de batalhão no Rio de Janeiro tem ponto de táxi, tem clínica de aborto, tem tráfico de drogas, tem oficina de desmanche, tem jogo do bicho. Essas atividades só podem ocorrer enquanto o policial não vai lá e manda parar. Por que o policial não vai lá pra impedir? Porque ele tem determinação pra não ir. Posso garantir pra você que qualquer policial do Rio de Janeiro que fechar uma banca de bicho na área do batalhão dele, no outro dia, ele tá em outro batalhão. Isso, se não estiver em outra cidade. E ainda pega fama de ‘rebelde’, de ‘problemático’ ”, denunciou, este ano, em entrevista ao site A pública, que serve como um pequeno exemplo do que trata em seu livro.

Da prisão, escreveu seu trabalho, e também dela acompanhou os desdobramentos da publicação, que, como era de se esperar, desagradou a corporação. Sua mulher foi impedida de entrar com 30 exemplares da obra no antigo batalhão em que Batista atuava; ela distribuiria os volumes entre os ex-colegas do marido. A partir do episódio, a esposa fez uma denúncia de censura no Ministério Público, o que, segundo o autor, valeu-lhe uma sessão de tortura, com direito a choques, para que a acusação fosse retirada.

Quem também já teve que conviver com ameaças da polícia por conta de seu trabalho publicado em livro foi o jornalista Caco Barcellos. Em 1992, ele lançou Rota 66, no qual denuncia o modus operandipor trás de muitas execuções da Rota, braço mais truculento da polícia paulistana. Revelar e detalhar a prática de oficiais assassinarem pessoas e, em seguida, forjarem que houve troca de tiros que justificaria o ato rendeu a Caco, além do Prêmio Jabuti na categoria Reportagem, juras de morte. O autor voltaria a tratar de questões relativas à polícia em Abusado, no qual conta a história do traficante Juliano VP. O olhar complexo e humanizado que destinou ao criminoso fez com que o autor passasse a ser visto por muitos como defensor de bandidos.


Edyr Augusto ficcionalizou casos noticiados nos jornais. Foto: Divulgação

JORNALISMO
Já no trabalho do também jornalista Kléster Cavalcanti, a importância da polícia na sociedade fica evidente justamente pelo que pode acontecer onde ela não está ou está de maneira enfraquecida e corrompida. Três obras de Kléster escancaram como a ausência do estado e de seu braço armado cumprindo sua função original, no caso, podem levar a situações inaceitáveis. Em O nome da morte, o jornalista traça um perfil de Júlio Santana, matador profissional que já tinha tirado a vida de quase 500 pessoas. Em Viúvas da terra, ele mergulha na violência agrária brasileira, revelando um campo com gente cruel e sanguinária. Já em Dama da liberdade, seu livro mais recente, narra a história de Marinalva Dantas, advogada cuja atuação no Ministério do Trabalho e Emprego já levou à libertação de mais de 2.300 pessoas que, mesmo no Brasil do século 20 e começo do 21, viviam como escravas.

“É óbvio que, se o estado funcionasse, muitos dos nossos problemas seriam menores. No caso da segurança, vemos que a situação só piora. Nos três livros, fica evidente que há muitas situações que acontecem no Brasil pela ausência da polícia, do estado. E há situações em que o problema é a presença podre da polícia, o que é pior ainda. Pior que não tê-la, é ter a polícia que trabalha como bandido”, diz Kléster.

Para exemplificar essa última possibilidade, lembra quando esteve na delegacia de Porto Franco, no Maranhão, onde o matador de O nome da morte morava. Lá, conversou com policiais e percebeu que todos conheciam o pistoleiro, mas, para se manterem acomodados e tentarem despistar o jornalista, garantiram que o assassino era de um lugar longe dali. Pior: recorda que, na única vez em que prenderam o bandido, o delegado o soltou em troca de uma moto.

Nos outros dois trabalhos, situações semelhantes também ocorreram. Reconstruindo a história de Marinalva, por exemplo, viu que em muitos casos a juíza se deparava com a polícia atuando para os fazendeiros que mantinham escravos em suas fazendas. “Tanto que, quando escravos fogem, nunca vão ao posto da polícia, não confiam. Os caras são vítimas de um dos crimes mais bárbaros do mundo atual, mas não conseguem confiar na polícia. É a mesma sensação que o povo em geral tem, no Brasil todo, as pessoas não confiam na polícia.”

Na visão de Kléster, essas situações deveriam ser mais denunciadas na literatura contemporânea. “Acho que nós, jornalistas e escritores, deveríamos tratar de assuntos mais atuais. Não vejo problema em quem faz livro sobre nosso passado, mas precisamos olhar mais pro hoje, para o lado humano”, afirma. Sobre a literatura que, mirando na realidade, traça o retrato de policiais como indivíduos que matam impunemente, o jornalista afirma: “São caras malpreparados, sem educação, a quem, na academia, ninguém ensinou que estão na rua para servir, para proteger; acham que estão ali para mandar”. 

RODRIGO CASARIN, jornalista, atua como freelancer escrevendo sobre literatura.

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