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Engenho de Teatro: A poesia do abandono e a simplicidade cênica

Grupo estreia espetáculo 'Mariano, irmão meu', que trata de dois irmãos cuja mãe está ausente, num texto que discute as relações sociais e afetivas

TEXTO Pollyanna Diniz

01 de Maio de 2013

Foto Divulgação

Da poesia de Manoel de Barros vem uma das lições caras ao grupo pernambucano Engenho de Teatro: “com as palavras se podem multiplicar os silêncios”. Cada vez que vai ao cais esperar pela mãe e pergunta ao irmão porque ela demora tanto para voltar, Mariano, personagem principal da nova montagem do Engenho, não encontra respostas. Língua falada ou escrita, tanto faz, se transformam em vazio. Como lidar com o abandono, com as dificuldades banais como a falta de dinheiro, com a crueldade da sociedade que não aceita diferenças? Mariano reflete a busca constante, a incompletude, o sentimento de que há algo errado – em si mesmo e no mundo. O texto da peça Mariano, irmão meu, que estreia este mês no Recife, dentro da programação do festival Palco Giratório e depois entra em temporada no Teatro Marco Camarotti (Sesc Santo Amaro), é do dramaturgo e ator Alexsandro Souto Maior; a direção, de Eron Villar.

“A peça nos faz pensar sobre as relações sociais, familiares, afetivas. Para compor a encenação, mergulhamos em várias referências. Uma delas, a literatura de Guimarães Rosa, tema de estudo desde o primeiro espetáculo do grupo, estreado em 2002. Outra é a poesia de Manoel de Barros, com sua complexidade de sentidos, mas, ao mesmo tempo, sutileza e simplicidade na escrita”, explica Eron Villar. O texto refere-se a dois irmãos obrigados a conviver com a ausência da mãe. O mais velho tomou a responsabilidade de cuidar do menor, que possui alguma deficiência mental, não especificada. Na tentativa de poupar o irmão do sofrimento, Damião recorre ao Apocalipse, último livro da Bíblia: conta a Mariano que, logo depois do parto, a mãe fugiu para escapar de um dragão cor de fogo, com sete cabeças e 10 chifres. Tia Augusta, a terceira personagem – há ainda algumas outras, que aparecem rapidamente – simboliza a voz da razão, aquela que indica como resolver os problemas, mesmo que os caminhos sejam espinhosos demais.

“O texto tem um lirismo muito pungente, mas traz também a característica da fragmentação, do discurso sintético. Para o ator, há o desafio de lidar com a contenção, tanto na palavra como no gestual. O espetáculo é resultado da continuação da pesquisa do grupo, que existe desde 1999, quando nos reunimos para fazer um espetáculo baseado no conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa”, explica Alexsandro Souto Maior, que, na peça, interpreta Damião.

“A nossa pesquisa passa pela ressignificação dos gestos, pela essencialidade, pela simplicidade. Queremos contar uma história ao pé do ouvido e, para isso, a palavra se une a outros elementos. No palco teremos um ator-narrador, no limiar entre a interpretação e a contação de histórias”, avalia o diretor da peça. O grupo já montou outros quatro espetáculos, todos com dramaturgia própria: O terceiro dia (2002), Nero (2004), Luzia no caminho das águas (2006) e Meninas de engenho (2009)

Em Mariano, irmão meu, a música tem a intenção de traduzir as imagens presentes no texto. A trilha foi criada por Kleber Santana e será executada ao vivo, pelos próprios atores e pelo músico Leandro Almeida. Outro recurso que deve estar presente em cena são as formas animadas. “As fábulas do texto me trouxeram referências, fizeram com que resgatasse a minha própria história. Vim do Mamulengo Só Riso (companhia de bonecos com sede em Olinda), passei sete anos no grupo. Impossível pensar no dragão a que se refere o personagem Damião e não relacionar com bonecos, formas animadas, sombras”, conta Villar, que também assina a iluminação do espetáculo. A ficha técnica traz ainda Java Araújo na direção de arte.

COMPOSIÇÃO DE PERSONAGEM
Para Tatto Medinni, convidado pelo diretor para interpretar Mariano, o texto se mostrou um desafio. “Como compor esse personagem sem escorregar pelo óbvio, pela alegoria, pelo clichê? Aceitei o papel pela possibilidade de superação, por tudo que Mariano pode me enriquecer como ator”, explica Medinni. Ele esteve em cartaz recentemente com o Coletivo Angu de Teatro em Ópera, texto de Newton Moreno, e com a Trupe Ensaia Aqui e Acolá, na peça O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, que circulou o país ano passado, através do Palco Giratório, projeto do Sesc que promove festivais e a circulação de espetáculos em todos os estados.

A terceira atriz que compõe o elenco é Ana Cláudia Wanguestel. “O processo de trabalho de Eron Villar tem muita sensibilidade. A pesquisa que estamos fazendo, as referências trazidas, a preparação do ator, a forma como ele lida com a dramaturgia”, explica a atriz. “Vivenciamos um processo pleno de liberdade, sempre com a orientação do diretor, mas de forma coletiva e com autonomia para a criação do ator”, complementa Tatto Medinni. “A peça fala de amor: toca em questões importantes, mas sempre com uma delicadeza profunda. E Tia Augusta carrega uma dicotomia muito real: apesar de amorosa com o sobrinho, ela não se exime quando precisa ser dura, transforma-se no elo que os dois irmãos têm com a realidade”, analisa Ana Cláudia.

Embora essa não seja a temática central do espetáculo, o problema mental de Mariano ainda faz refletir sobre assuntos que muitas vezes são negados, escondidos, encobertos pelo preconceito que teima em ser maior do que o esclarecimento. Não há lições, moral da história, resultados prontos. Cada um tire as próprias conclusões, depois do que vir no palco. Mas não será um jogo no escuro: no elementar, no minimalismo e na subjetividade trazidos à tona por Mariano, irmão meu, o público logo deve se reconhecer.

No palco, alguns símbolos se desdobram e assumem múltiplas funcionalidades. A mala representa a espera, o desejo de ir embora, a ânsia pelo novo, pelo momento do reencontro. As portas trazem possibilidades que vão desde a fuga até a volta para casa. “São elementos-chave na encenação: as malas, as portas, os mapas. A luz segue a proposta da direção de arte e ambienta a poesia que já está presente no texto”, explica o diretor e iluminador.

O grupo tenta seguir o que diz Manoel de Barros, que fala de poesia, mas bem poderia ser de teatro também: “Para entender, nós temos dois caminhos: o da sensibilidade, que é o entendimento do corpo; e o da inteligência, que é o entendimento do espírito. Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar”. 

POLLYANNA DINIZ, jornalista e organizadora do blog Satisfeita Yolanda?.

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