Portfólio

Adriana Moreno

Um caminho de saída e retorno para a pedra

TEXTO GIANNI PAULA DE MELO

11 de Outubro de 2019

A litografia é um modo de reprodução de imagem desencadeado pela repulsão entre água e gordura

A litografia é um modo de reprodução de imagem desencadeado pela repulsão entre água e gordura

Imagem Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 226 | outubro de 2019]

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Quando conhecemos e nos aproximamos do trabalho de Adriana Moreno, retornamos ao tempo como um dos materiais mais caros de toda a criação artística. O tempo de formação de repertório, o tempo da intimidade com uma técnica, o tempo de reconhecimento dos suportes, a paciência de chegada ao termo em que uma obra se apresenta, sempre provisório. A paulistana tem se dedicado à litogravura desde 2014, um período ainda breve de realizações, mas cultivado com atenção minuciosa, com transições graduais e significativas. Os seus materiais de trabalho são o foco das pesquisas que vem desenvolvendo, numa caminhada que concilia a invenção com o esforço acadêmico de revisão dessa tradição. Desse modo, um importante interesse do seu trabalho é, propriamente, a formação calcária das pedras, as propriedades químicas do calcário litográfico, as decisões de granitagem – grão desejado para o desenho – e os experimentos com ácidos.

Para nós, do chão pernambucano, litografia evoca quase automaticamente a Oficina Guaianases de Gravura e a referência que é mestre Hélio Soares, guardião da técnica no estado, com mais de 50 anos de ofício. Ele já pontuou a resistência a essa arte, o desinteresse do mercado nesse tipo de obra, o alto custo da sua produção e a carência de ateliês em nosso país. Esse panorama, por si, agrega curiosidade a uma artista contemporânea que vem desenvolvendo a espinha dorsal de seu trabalho a partir dessa técnica tão exigente e, de certo modo, tão propícia às frustrações.

A litogravura se distingue de outras técnicas do mesmo campo pela enorme implicação química no processo. Diferentemente da xilogravura ou da gravura em metal, em que o desenho é determinado por uma variação de relevo gerada a partir da feitura de sulcos na superfície da matriz, a litografia é um modo de reprodução de imagem desencadeado pela repulsão entre água e gordura. No seu feitio, usa-se uma pedra calcária porosa sobre a qual a imagem é diretamente desenhada com materiais oleosos e, posteriormente, são aplicados ácidos que atuam na definição dessa imagem. Assim, o artista convive com a limitação da sua interferência, e o resultado sempre acumula traços imprevisíveis.


Figuras aludem a fósseis e ao efeito de sedimentação.
Imagem: Reprodução

Diante disso, num primeiro momento, a tarefa de Adriana foi a de aprimorar o domínio desse procedimento enquanto desenvolvia o álbum Zoólitos, composto por 20 gravuras. “Propus-me a buscar controlar ao máximo o processo, para ao menos ter alguma constância nos resultados”, explica. Zoólitos são artefatos arqueológicos esculpidos em pedra por homens pré-históricos. Essa temática deriva do impacto da sua ida à Cidade do México, em 2014, quando seu interesse foi deslocado para os museus de antropologia e as ruínas dos templos muito presentes no espaço da cidade. As fotografias dessa viagem são a base para seus primeiros experimentos, ao enveredar pela litografia.

Produzir imagens que lembravam fósseis ou objetos arqueológicos foi sua primeira estratégia para amalgamar assunto e técnica, uma aproximação inicial que carregava certa obviedade. Já nesse momento, porém, também buscava modos de agregar ao seu desenho traços que simulavam o processo de sedimentação das pedras. Muito claramente, seu interesse inicial eram os objetos e registros artísticos ditos “primitivos”, como as pinturas rupestres, e também elementos da arte indígena.

Ainda na época de Zoólitos, no contexto das investigações materiais, o tusche ocupou um lugar central da reflexão, interessando-lhe pensar em suas possibilidades enquanto ferramenta de expressão gráfica. O tusche, material gorduroso apresentado na forma de barra, demanda diluição em água ou solvente, o que gera variadas concentrações e texturas. Uma vez que se trata de um material utilizado em meio líquido, seu resultado se aproxima de aquarelas e aguadas. “Nas gravuras produzidas, que utilizavam o tusche diluído em grandes quantidades de água, é possível observar o processo de sedimentação e acúmulo desse material na superfície da pedra”, destaca. Até fins de 2015, a principal questão colocada por Adriana era: quais qualidades materiais a litografia agrega ao desenho? Essa indagação ainda a acompanha, mas a ela começaram a se sobrepor novos rumos do seu projeto.

O ACASO, O INFORME
Foi o exercício disciplinado da técnica com o tusche que obrigou a artista a pensar nos modos de inclusão do acaso na sua produção. “Esse material foi escolhido pela impossibilidade de controlá-lo, especialmente com o uso que faço dele. O desenho é determinado pelo processo de deposição de material sólido em meio fluido, quase como uma simulação do próprio processo de formação das rochas sedimentares. Realizo um caminho de saída e retorno para a pedra. Dessa forma, procuro tratar esses materiais como se possuíssem autonomia, o que denomino de contingência do material. O acaso aqui é propiciado pela contingência do material, o qual eu não controlo e que se autodetermina. Só a combinação entre pedra, tusche e água promovem esse tipo de mancha”, comenta.


Gravuras da série Zoólitos, de 2015. Imagem: Reprodução

A partir de 2016, alguns fatores vão adensando a proposição da litogravurista, entre eles, a sua entrada no mestrado de Poéticas Visuais, na Universidade de São Paulo, que aconteceria no ano seguinte. Aos poucos, ela vai ampliando as escolas e artistas que deseja pôr em diálogo com seu projeto, com destaque para aqueles que foram chamados de pós-minimalistas. Interessam a Adriana, especialmente, os trabalhos de Eva Hesse, Louise Bourgeois e Yayoi Kusama. Entre os artistas contemporâneos brasileiros, ela dedica especial atenção à produção de Ana Maria Maiolino e Leda Catunda.

A série que desenvolveu nos últimos dois anos evidencia um distanciamento cada vez maior de elementos figurativos, que vão se tornando secundários em relação à potência da matéria em suas gravuras. Nesse percurso de amadurecimento, é notável a relação que sua série mais recente estabelece com processos metodológicos que acolhem desvios, como é o caso de Accident, de Robert Rauschenberg. Nesse trabalho, quando já estava na etapa de impressão, a pedra litográfica se fragmentou e o artista decidiu incorporar o que seria um erro técnico. Tendo iniciado sua produção a partir de certo viés temático, Adriana passa então a fazer uma aposta mais corajosa na força dos materiais que manipula, colocando a própria sedimentação como uma das principais questões a serem exploradas na litografia, tal qual fizeram artistas como Helen Frankenthaler e Robert Motherwell.

Uma experiência de retorno ao México, em 2016, teve grande importância nesses encaminhamentos. Nesse ano, a artista passou uma temporada atuando em um ateliê que utilizava um mármore da região de Xalapa, uma pedra diferente da que estava acostumada a trabalhar. “Essa mudança de material acarretou alterações significativas na prática, pois a pedra litográfica alemã é constituída por 97% de carbonato de cálcio, e isso promove estabilidade para obter o resultado que se deseja. Já o mármore mexicano, que é constituído também de carbonato de cálcio, não possui uma formação homogênea e tem em sua composição outros minerais que variam dependendo do fragmento da pedra”, esclarece. Além disso, as tintas, lápis, tusche, rolo de entintagem e papel eram todos produzidos no próprio ateliê a partir de recursos locais.

O acolhimento do acaso e o empenho cotidiano com os materiais somaram-se ainda a um investimento em imagens produzidas a partir da ideia de não racional. Para isso, a artista voltou às práticas de desenho dos surrealistas e integrou a ideia de automatismo como expressão do inconsciente para a produção de imagens que possuem um quê de enigma. A partir daí, Adriana passa a se questionar cada vez mais sobre as possibilidades da pesquisa e realização da litografia a partir do viés experimental da gravura, uma vez que estamos diante de uma técnica tão rigorosa. Sua preocupação está mais atrelada à construção do desenho em si que à sua reprodução.


Tusche é material central na sua produção. Imagem: Reprodução

O estudo sistemático de referências e materiais a levaram a um caminho que segue testando, como descreve a seguir: “No desenho, a minha ação é a de orientar os espaços delimitando onde serão criadas ‘poças’ de água e, posteriormente, depositado o tusche diluído. Nessas áreas, a tinta se espalha de acordo com as concentrações dos fluidos e se deposita segundo seu tempo de secagem, estabelecendo as manchas e as linhas limítrofes, sem que eu tenha ação direta sobre os acontecimentos”. Assim, ela estabelece um dispositivo de encaminhamento do acaso, consciente de que não lhe cabe definir os seus resultados plásticos: “A intenção é, justamente, que nos seus comportamentos físicos, água e tusche se organizem como a conjuntura ambiental lhes permitir. Abrindo, desta forma, a oportunidade do acaso se instaurar. Além disso, me interessa o resultado plástico da mancha que destaca o próprio processo de formação, de forma em formação”, afirma.

Enquanto avançava nos seus estudos de litografia, Adriana Moreno também desenvolveu alguns objetos em cerâmica que comungam dos pressupostos que compõem o seu projeto artístico. São, no entanto, construções pontuais. Seu movimento de criação exibe a paciência aqui inicialmente mencionada e evidencia a consciência da prática diária, num trabalho que aparenta dar passos miúdos de uma gravura para outra, mas que revela a força da entrega a uma técnica entre tantas possíveis.

GIANNI PAULA DE MELO, jornalista, mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e arteterapeuta em formação.

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