Resenha

São Jorge contra o dragão da maldade

Jorge Mautner lança com integrantes da banda Tono o disco 'Não há abismo em que o Brasil caiba', reafirmando a sua fé no país e no povo brasileiro

TEXTO Renato Lins

11 de Outubro de 2019

Capa do disco, que traz canções inéditas

Capa do disco, que traz canções inéditas

Imagem Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 226 | outubro de 2019]

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Em plena ascensão da extrema-direita no Brasil, vem justamente de um “filho do Holocausto” o disco de título mais otimista da temporada, Não há abismo em que o Brasil caiba. Trata-se do novo trabalho de Jorge Mautner, após 13 anos sem lançar material inédito, em que o carioca de 78 anos reafirma a fé no nosso país e no nosso povo. Mautner é filho de pai e mãe austríacos, forçados ao exílio pela máquina de extermínio nazista – uma experiência definidora na trajetória dele que, ainda assim, é um otimista incorrigível.

Lançado pela Deck nas plataformas digitais e lojas de discos em abril passado, com promessa de edições em vinil para breve, o disco retira seu título de outro momento conturbado de nossa trajetória política. No início dos anos 1990, o filósofo português Agostinho da Silva, ao ser informado sobre as agruras do governo Collor, amenizou as preocupações de seus interlocutores ponderando que “o Brasil tem um destino tão grandioso, tão grandioso, que não tem abismo que o caiba”. A hipérbole ficou na memória de Mautner até aparecer, levemente alterada, na bela capa do novo álbum.

Retomada de carreira, Não há abismo em que o Brasil caiba marca, também, o primeiro trabalho do “profeta do Kaos” sem o parceiro de longa data, Nelson Jacobina, a quem o disco é dedicado. Falecido em 2003, vítima de câncer no pulmão, Jacobina começou a acompanhar um Mautner já trintão, quando ainda era um adolescente de 16 anos, em meados da década de 1970. A diferença de idade não atrapalhou a parceria, responsável por momentos antológicos da música brasileira.

Igualmente jovens, seus substitutos, os integrantes da banda Tono, liderada por Bem Gil, filho de Gilberto Gil, cumprem com louvor a tarefa de musicar as letras às vezes cantadas, às vezes quase faladas de Mautner. Os arranjos, ao mesmo tempo instigantes e delicados, deixam as faixas com um ar contemporâneo que jamais parece postiço, evitando o risco, comum nesse tipo de colaboração, de colocar quem assina o disco em segundo plano.

Ótimo exemplo da parceria do senhor já entrado em anos com a juventude é a música de abertura Ruth rainha cigana. Composta em homenagem a Ruth, esposa de Mautner há cinco décadas, a filha Amora e a sua única neta traz os versos cuidadosamente embalados por violões e percussão, que ganham volume à medida que as estrofes avançam. É nela onde encontramos a receita do autor para manter inabalável o otimismo: “O fim sem fim da doçura do amor/ Supera tudo seja lá o que for/ Até mesmo o terror da dor que emana/ Da fúria de um açoite”. Um sentimento poderoso (o amor) ao qual Mautner louva, invocando Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé, dois dos três ramos principais de sua ecumênica religiosidade, faltando apenas a cabala judaica.

Protegido pelos orixás, pelos sábios rabinos e por um Cristo amoroso a anos-luz da versão fundamentalista, Mautner parte para encarar as mazelas brasileiras. As duas faixas mais explicitamente políticas do disco têm como mote a violência do Rio de Janeiro, onde ele reside, no Bairro do Leblon.

A primeira delas, o samba Bang Bang, traduz em versos tipicamente mautnianos o cotidiano perigoso da ex-cidade maravilhosa: “a bala perdida/ lá do bang bang/ abre uma ferida/ de onde escorre o sangue/ que se esvai e vai e corre/ e a pessoa morre/ gritando ai ai ai/ é tristeza em absoluto/ parece que ninguém se lembra/ de Joaquim Nabuco”. O lamento pelo esquecimento das lições do estadista do Império está ligado, aqui, à necessidade de uma segunda abolição da escravatura, a ser feita “com distribuição de renda, piedade/ Compaixão, igualdade e misericórdia”. Ou isso, ou, avisa em tom profético, “chegará o sangue da revolução”.

Marielle Franco, composta na noite em que a vereadora do Psol foi assassinada, traz um Mautner indignado, a bradar contra o retorno desse “demônio inferior” que exterminou, em outro tempo, quase todos os familiares de seus pais. “Uma força furiosa me impele a gritar”, canta ele, “com os nervos à flor da pele/ É preciso exterminar/ A doença mental, física e assassina/ Do racismo, do antifeminismo e do neonazismo”. Não custa reforçar a importância do Holocausto para o conjunto de sua obra. “Eu fui educado nessas memórias, e essas memórias são a alma e a carne viva da minha vida, desde a minha infância, até os dias de hoje, em direção à eternidade. Tudo o que escrevi, compus, falei e senti gira e girará em torno disso”, afirma, em um trecho do primeiro volume de suas memórias, intitulado, de forma reveladora, O filho do Holocausto.

Ao horror nazista, devemos somar os pesadelos da ditadura militar instalada em 1964. Mautner foi um dos primeiros artistas forçados ao exílio residindo inicialmente nos Estados Unidos e, depois, na Inglaterra. Em terras estrangeiras, manteve o nada ortodoxo padrão de militância da pátria natal. Se, por um lado, permaneceu por anos filiado ao Partido Comunista, o antigo PCB, por outro, cultivou um lado anárquico que o levou, na filosofia e na arte, para bem distante da rigidez stalinista. É dessa kaótica mistura que vem a fé inabalável no Brasil, mais próxima da visão de mundo de um Darcy Ribeiro. Em Não há abismo em que o Brasil caiba, a esperança é celebrada em faixas como Catulina, tocante homenagem às professoras do interior do país, e Bloco da Preta Gil, aquele que canta e espanta “tudo que é mal e ruim/ Ecoa só coisa boa/ felicidade sem fim/Alegria da alegria/ Todo mundo maluco/ Com esse frevo da Bahia/ Que é também de Pernambuco”.

Bahia e Pernambuco sempre deram régua e compasso para Mautner mapear os caminhos que nos afastam das trevas. Trata-se de uma paixão antiga, que remonta a 1954, quando assistiu – ainda adolescente, na inauguração do Ibirapuera em São Paulo – a várias apresentações de grupos nordestinos de cultura popular. Ao lado dos demais elementos da alquimia estética do cantor, compositor, violinista, cineasta, escritor e tantas coisas mais, ajudaram a forjar uma trajetória cuja importância só aumenta com o tempo.

Sua Mitologia do Kaos, em seis volumes, começou a ser relançada pela Azougue, com o romance Dança da chuva e da morte, já nas livrarias. Até o final do ano, a HBO estreia o documentário em quatro partes Jorge Mautner: Kaos em ação. E Não há abismo em que o Brasil caiba segue firme a colecionar elogios por onde é escutado. Com Mautner, voltamos a ser o país do futuro, essa velha utopia que ele deixa, com sua música, novamente tão possível.

RENATO LINS, jornalista e DJ, sendo um dos propulsores do manguebeat.

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