Entrevista

“Ainda hoje eu sou a única mulher”

Regente Marin Alsop que, desde 2012, atua na Osesp, e se despede este ano do país, relembra sua trajetória, marcada pela disputa de espaços num ambiente dominado por homens

TEXTO CAMILA FRÉSCA

03 de Julho de 2019

Sob sua batuta, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) estreou no 'Royal Festival Hall de Londres'

Sob sua batuta, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) estreou no 'Royal Festival Hall de Londres'

Foto ALEXANDRE FELIX/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 223 | julho de 2019]

contribua com o jornalismo de qualidade

A vida da norte-americana Marin Alsop é marcada pelo pioneirismo. Desde que decidiu enveredar pela regência orquestral, ela desbravou muitos espaços – e continua a fazê-lo, ainda, aos 62 anos. No auge da carreira, Alsop foi premiada no último Fórum Econômico Mundial de Davos por sua liderança na promoção da diversidade na música. E, a partir de setembro, assume a Orquestra Sinfônica da Rádio de Viena (ORF), um posto prestigiado que, pela primeira vez, será ocupado por uma mulher.

Talvez sua primeira “estreia” possa ser marcada em 1989: foi quando venceu o Koussevitzky Conducting Prize, do tradicional Tanglewood Music Center. Era a primeira vez que uma mulher recebia o prêmio e, de quebra, ela ainda conheceria Leonard Bernstein, seu mentor e uma das mais importantes personalidades musicais do século XX.

Alsop passou a despertar olhares internacionais em 2007, ao assumir a direção musical da Sinfônica de Baltimore – era (novamente) a primeira vez que uma mulher comandava uma grande orquestra norte-americana. Em 2012, ela assumia a regência titular e, em seguida, a direção musical da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp).


A partir de setembro, a maestrina norte-americana assume a
Orquestra Sinfônica da Rádio de Viena (ORF).
Foto: Adriane White/Divulgação


Sob sua batuta, a Osesp estreou na Philharmonie de Berlim, no Royal Festival Hall de Londres, nos festivais de Lucerna e Edimburgo e na Konzerthaus de Viena. Também viajou pelo Brasil, em 2014, comemorando os 60 anos de criação da orquestra e lançou pela gravadora Naxos um ciclo com a integral das sinfonias de Prokofiev. Após oito temporadas, 2019 marca seu último ano à frente da orquestra – a partir de 2020, Alsop será a primeira “regente de honra” da Osesp.

Ela foi também a primeira mulher a dirigir a “última noite” do Proms, tradicional festival londrino, em 2013. Todas essas estreias carregam uma responsabilidade, que ela toma para si: gosta de dizer que se sente honrada em ser a primeira, mas se interessa mesmo em saber quem serão a segunda e a terceira. Também possui um programa, financiado por ela mesma, dedicado a ajudar jovens mulheres regentes.

Além da questão feminina, Alsop é uma regente conectada às demandas contemporâneas e sabe que a sobrevivência das grandes orquestras no mundo atual depende de seu vínculo com as comunidades locais. Como parte de seu trabalho em Baltimore (cujo contrato, renovado por duas vezes, vai até 2021), ela criou a OrchKids, que ensina música para os jovens carentes, e a BSO Academy, para músicos adultos amadores.

Casada desde 1990 com a trompista Kristin Jurkscheit, com quem tem um filho, Marin Alsop é uma pessoa reservada e de fala concisa. Educada e sempre muito profissional, ela parece só se deixar levar pelas emoções quando sobe ao palco. Alsop conversou com a Continente numa segunda-feira, em seu camarim na Sala São Paulo, no meio de duas semanas de trabalho com a Osesp.


Marin Alsop regendo o pianista Nelson Freire, em Berlim.
Foto: 
Alexandre Felix/Divulgação

CONTINENTE
Você estudou música desde pequena, seus pais são músicos. Consegue recuperar sua memória musical mais antiga? Ou aquela que teve maior impacto sobre você na juventude?
MARIN ALSOP Eu tenho muitas lembranças de meus pais tocando e estudando música em casa, de amigos que vinham visitar e fazer música de câmara. Mas a memória mais importante que tenho é a de quando meu pai me levou a um dos Concertos para a Juventude com a Filarmônica de Nova York e o maestro Leonard Bernstein, quando eu tinha nove anos. Curiosamente, eu não me lembro da música, apenas dele falando com o público. Tive uma espécie de revelação, e lembro-me de virar para meu pai e dizer “eu quero ser regente”. Então, esse foi um grande momento.

CONTINENTE Você tem bacharelado e mestrado em violino pela Juilliard School. Como foi a passagem da carreira de instrumentista para a de regente?
MARIN ALSOP Eu trabalhei como violinista por quase 10 anos. Fiz muitas coisas diferentes: toquei como freelancer, fiz cachê na Filarmônica de Nova York e música contemporânea. Também tive uma banda com a qual toquei jazz, o que me fez conhecida no meio das gravadoras, porque eu conseguia ler música e também sabia improvisar. Então comecei a fazer trabalhos para TV e cinema, com os quais ganhei bastante dinheiro. Economizei tudo para fundar minha própria orquestra, em 1984, quando tinha 28 anos (Concordia Orchestra). Ela era composta por todos os meus amigos, às vezes até meus pais tocavam. Eu não consegui achar outro caminho para a regência, foi preciso descobrir na prática. Foi uma experiência muito importante, não só por causa da regência, mas também pela administração: eu descobri como levantar fundos, lidar com marketing, montar um conselho de diretores, montar programas. Foi muito trabalhoso, mas também muito educativo. Um maestro não tem seu próprio instrumento, e eu tinha a necessidade de experimentar algumas coisas, estudar, praticar. Na época, eu gravava em vídeo absolutamente tudo o que eu dirigia para analisar depois. Virei minha própria professora nesse sentido. Eu também pedia críticas e conselhos aos meus amigos.

CONTINENTE Para ser uma boa regente é preciso ser uma boa instrumentista?
MARIN ALSOP Eu acho que ajuda. Não estou dizendo que é impossível ser regente de outra maneira, mas acho que subir no pódio e reger a orquestra, sabendo tocar, dá uma sensação de entendimento, familiaridade. É como ter crescido dentro do negócio que hoje você gerencia. É mais natural quando você já nasceu naquele lugar, em vez de ter sido “colocada” lá.

CONTINENTE Hoje, vemos seu sucesso, mas como foi chegar até esse ponto? A regência é uma área concorrida. Para as mulheres, os obstáculos – especialmente há algumas décadas – eram quase intransponíveis.
MARIN ALSOP Foi desafiador, sobretudo no estágio inicial – mas esse é o mais duro para a maioria dos jovens regentes. Os primeiros oito anos de regência foram, talvez, os mais difíceis: eu não conseguia audições, as coisas não aconteciam. Mas eu trabalhava ainda mais e então houve um momento no qual eu consegui subir aquele degrau que faltava. A partir daí, as pessoas passaram a me notar.

CONTINENTE Que momento foi esse?
MARIN ALSOP Fui aceita em Tanglewood como bolsista de regência. Ao mesmo tempo, consegui minha primeira audição como regente-assistente e ganhei o posto. Assim que fiquei diante de uma orquestra, eu consegui mostrar o que sabia. Quando fui a Tanglewood, percebi o quão importante era aquela oportunidade. Eu já tinha 32 anos, então tentei aproveitar todas as chances que me ofereceram, até que fui selecionada para reger um concerto com Leonard Bernstein. Era ocasião dos 70 anos de idade dele, foi um evento importante. Depois, consegui meu primeiro trabalho como diretora musical (fora a minha própria orquestra) em Oregon, na Costa Oeste; e, bem depois disso, consegui outro emprego, dessa vez na Costa Leste. Se, antes, eu regia cinco concertos por ano, passei a reger 30, foi um salto enorme. Já o topo, realmente, foi difícil de atingir. Ainda hoje eu sou “a única mulher”. Atualmente, há muita discussão sobre mulheres regentes, mas me preocupo com esse discurso, porque essas modas-relâmpago vão embora da mesma maneira que chegam. Procuro ficar atenta a isso, sem deixar de apoiar mulheres nas quais acredito.

CONTINENTE Quando penso na vida de algumas mulheres talentosas que poderiam ter sido compositoras notáveis, terem feito muito mais do que fizeram – como Clara Schumann e Fanny Mendelssohn, sinto tristeza por elas… Você pensa sobre essas questões?
MARIN ALSOP Não são apenas mulheres, mas, no caso dos Estados Unidos, são também os afro-americanos – eles têm que ir trabalhar na Broadway por não conseguirem entrar no meio da música clássica. Então, sinto que há um grupo maior de pessoas que foram desmotivadas e preteridas durante todo esse tempo. Não conhecer as histórias dessas pessoas é grande parte do problema. Compartilho uma delas que ilustra muito bem isso: dois ou três anos atrás, quando regi no Festival de Lucerna, decidi fazer uma masterclass apenas para mulheres. Uma idosa, já com seus 80 anos, veio falar comigo e pensei “Nossa, como ela sabe sobre regência! Que curioso…”. O nome dela era Sylvia Carduff, e eu não tinha ideia de quem era. Acontece que ela foi a primeira mulher a reger as filarmônicas de Berlim e Nova York. Foi assistente do Bernstein em 1966, e eu nunca tinha ouvido falar nela! Dá pra acreditar? Nem na internet tinha muita coisa sobre ela. Imediatamente, voltei com uma equipe de filmagem e gravei a masterclass com ela. Mas é terrível o que estamos fazendo, quando não contamos as histórias dessas mulheres, ou quando não as incorporamos nos nossos livros de história. Como recuperar isso? O que acontece é que as mulheres não têm as mesmas oportunidades e educação que os homens, então é muito mais difícil superar-se. Parece que sempre há só uma chance, e, quando não conseguimos, eles dizem “Ah, é que ela não era boa o bastante”.

CONTINENTE Poderia falar do projeto que você desenvolve com as jovens mulheres regentes? De que forma ele é financiado?
MARIN ALSOP Comecei com esse projeto em 2002, por causa da escassez de mulheres na regência. A ideia é criar oportunidades de treinamento para elas. Não temos instrumentos para praticar e precisamos abrir espaço para os erros. Durante dois anos, as selecionadas se aperfeiçoam diante de uma orquestra, percebem suas fraquezas, suas qualidades. Cerca de 25 mulheres já passaram por esse projeto, e todas elas se conhecem. Assim, quando elas têm problemas, questões, podem conversar – criamos uma comunidade. Não há muito dinheiro investido. Eu ganhei um prêmio grande em 2005, coloquei parte num fundo e usamos os juros para as bolsas. O resto fazemos de graça.

CONTINENTE O que representou para você ter sido aluna de Leonard Bernstein em Tanglewood? Como foi que ele a inspirou?
MARIN ALSOP Foi quando consegui seguir em frente com muito mais audições, mais oportunidades. Para mim, foi ótimo ouvir Leonard Bernstein dizer, tanto simbolicamente quanto literalmente: “Eu acredito em você”. Isso me incentivou muito; tornei-me mais confiante. Ele era muito generoso. Passei muito tempo com ele em Nova York também. A respeito da parceria entre a Sylvia Carduff e Bernstein, sei que eles tiveram que mudar as regras para conseguir colocar uma mulher no palco. Nos anos 1960, não havia mulheres nem trabalhando na orquestra. No meu ano em Tanglewood, havia três mulheres (estudando regência), o que foi bom, mas aquela também foi a primeira vez…

CONTINENTE No ano passado, pela Naxos, você lançou um box de oito CDs nos quais rege boa parte das obras sinfônicas de Bernstein. Ele me parece ter sido um compositor muito ligado à sua época, querendo se comunicar com seus contemporâneos.
MARIN ALSOP Ele era realmente uma pessoa de seu tempo, que se conectava não só com a elite, mas com todo mundo. Era também muito ligado à música popular. Uma vez estávamos conversando e eu comentei que uma melodia de uma das sinfonias de Schumann me lembrava uma música dos Beatles. Então ele tocou uma porção de músicas dos Beatles no piano para mim, sabia cantar todas (mas cantava muito mal, rs). A música dele, por isso, não tinha barreiras. Ele era assim como pessoa também. Meu interesse em música sempre foi muito eclético, o que fez do Bernstein um mentor perfeito.

CONTINENTE Como regente de grandes conjuntos sinfônicos, você faz com regularidade o grande repertório clássico, romântico e moderno. Mas você tem gêneros ou compositores de sua preferência? Quando coloca algo para tocar em casa, que tipo de música é?
MARIN ALSOP Ah, em casa não quero ouvir nada! Quando entro num carro, já peço para desligar o rádio. Para mim, música é tudo. Consome muito de mim, eu sempre acabo prestando muita atenção, seja na melodia, na harmonia, na qualidade da gravação. E com música pop é a mesma coisa. Eu adoro Brahms, porque ele foi o primeiro compositor com o qual me conectei quando era adolescente. Mas acho que não tenho um favorito.


Marin Alsop com Leonard Bernstein. Foto: Walter Scott/Divulgação

CONTINENTE
Você rege em muitos locais diferentes, como convidada ou titular de grupos. A preparação para um concerto é sempre igual? Reger uma mesma peça exige sempre a mesma preparação?
MARIN ALSOP Sim e não. Com o passar dos anos, fui adquirindo a habilidade de chegar na frente de uma orquestra (especialmente as que não conheço) e de imediato captar suas qualidades, direcionando minha interpretação para isso, em vez de tentar fazer todas soarem da mesma maneira. Eu aprendi a trabalhar as boas coisas de cada orquestra. Algumas precisam de muitos ensaios, já que esse é o padrão delas – as orquestras alemãs, por exemplo. Em comparação, quando trabalho em Londres, não tenho quase nada de tempo. Tento me ajustar a essas diferenças.

CONTINENTE A vida de regente é corrida, indo de um lugar para outro. Você tem tempo para perceber, desfrutar das cidades onde está?
MARIN ALSOP Eu acho que sim, eu gosto de passear pela cidade, visitar os museus. Mas também é possível sentir a cidade a partir da orquestra, o que é muito interessante.

CONTINENTE E nas cidades às quais você vai com frequência, como São Paulo? Deu tempo de desenvolver alguma relação – lugares prediletos, comidas, amigos?
MARIN ALSOP O melhor passatempo em São Paulo é ir jantar – aqui, há restaurantes excelentes! Tenho meus favoritos. Tenho alguns amigos que gostam de me levar para as cidades vizinhas. É incrível como em uma hora você pode chegar ao litoral, ou até à serra. Acho que as pessoas que vêm a São Paulo ficam extasiadas com a cidade grande e esquecem que podem sair daqui para um ambiente completamente diferente sem muito tempo de viagem.

CONTINENTE Parece-me que a sua relação com Baltimore é diferente das demais, tanto pela longevidade do relacionamento como por ser uma orquestra norte-americana. É isso mesmo?
MARIN ALSOP O fato de ser uma cidade norte-americana já traz uma conexão diferente em relação a São Paulo. Mas acho que Baltimore é uma daquelas cidades “excluídas”, daquelas que têm que lutar para se levantar o tempo inteiro, que não recebe ajuda, que é ignorada, que sempre tem problemas. Isso tem muito a ver com a minha personalidade, porque eu também passei por tudo isso profissionalmente, tive que fazer meu próprio caminho. Então acho que há uma questão filosófica que me conecta a Baltimore. E a orquestra de lá é muito mais parecida com a Osesp do que as outras orquestras norte-americanas, o que é interessante. Eles são muito apaixonados e musicais.

CONTINENTE Você consegue passar longos períodos em casa, ter uma vida familiar com sua companheira e seu filho?
MARIN ALSOP Quando passo três semanas em casa, minha família já pergunta quando viajo novamente (risos). Acho que muito da minha vida tem sido esse padrão de estar cá e lá a cada três semanas. É difícil ter uma família com essa dinâmica, já que é tudo inconstante. Meu filho parece não ligar muito, mas provavelmente deve ser porque ele já nasceu dentro dessa rotina. Ele tem 15 anos agora. Hoje em dia, ficou mais difícil, porque sinto que essa é uma fase na qual ele precisa mais de mim, por mais que um adolescente aja de maneira contrária. Mas temos nossas obrigações…

CONTINENTE E a sua relação com o público da Sala São Paulo? Estive aqui na última quinta-feira e, desde o início, o público foi muito caloroso com você. Foi sempre assim? Ou alguma coisa mudou ultimamente?
MARIN ALSOP Acho que sempre tivemos uma boa relação. Ela se desenvolveu, cresceu ao longo dos anos, especialmente agora que estou indo embora. Sempre há aquele sentimento de “não, não vá embora!”.

CONTINENTE Outra coisa que pude observar – eu estava bem próxima do palco – é que você parecia feliz, realmente contente de estar naquele palco, ao lado dos músicos. Foi aquilo mesmo? Foi uma boa performance, na sua opinião?
MARIN ALSOP Eu achei a performance de quinta-feira especial. Fico muito feliz naquele momento de parceria com os músicos. Meu filho gosta muito de escalar. Uma vez ele me disse: “Acho que escalar pra mim é como reger para você”. Estar no palco é sobre existir naquele momento, estar extremamente concentrada, quase num transe. Eu acho isso libertador.

CONTINENTE O Brasil é muito grande, e sei que você viajou em turnês, seja dentro de São Paulo ou para outros estados. O que conseguiu reter de nossas diferenças?
MARIN ALSOP Eu e minha família passamos algumas férias aqui. Uma vez fomos para o Amazonas – muitos brasileiros nunca foram para lá! Também fui à Bahia algumas vezes, para trabalhar com o Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia, projeto nos moldes do venezuelano El Sistema). Fomos uma vez para Bonito, no Mato Grosso do Sul. Não tive a chance de conhecer melhor o Nordeste, mas sei que as praias são lindas. Experimentei um pouco da comida brasileira também. Acho que a minha preferida é o pão de queijo! Eu também adoro carne, então aqui é um paraíso.

CONTINENTE Se tivesse que fazer um balanço de sua gestão na Osesp, o que você destacaria?
MARIN ALSOP Nossas gravações – é muito bom ter esses registros. Muitos concertos foram especiais: quando tocamos em Santos, na praia; quando tocamos no vão livre do Masp no ano passado. E eu fico feliz em manter nossa relação, já que voltarei todos os anos com um projeto.

CONTINENTE E um balanço profissional desse período? Quem era a Marin Alsop que chegava à São Paulo há nove anos, e quem é a que segue para Viena em setembro?
MARIN ALSOP Minhas oportunidades aumentaram, agora tenho mais voz para falar sobre os problemas de igualdade de gênero, sobre a educação musical para as crianças – discussões que transcendem a vocação de regente. Acho que minha voz pode ter um impacto maior no mundo. Mas continuo amando reger. Fico feliz em mudar meu foco de trabalho para Viena, que é uma cidade tradicionalmente misógina no meio musical – terei a chance de mostrar às garotas que mulheres podem ser o que quiserem, e espero apoiar ainda mais a causa das compositoras. O Brasil tem sido bem aberto em relação a isso, espero que não se feche com esse novo governo. O fato da Osesp ter tido a Naomi Munakata como regente de coro há 20 anos, a mim e depois a Valentina Peleggi (atual regente do Coro da Osesp), é um grande avanço. Espero que continuem com esse compromisso.

CONTINENTE Poderia adiantar algo sobre seu trabalho em Viena? Você inicia em setembro e creio que deva estar bastante envolvida com a nova temporada. 
MARIN ALSOP Participei ativamente da montagem dessa temporada. A ORF é uma orquestra de rádio que faz muita música contemporânea, muito repertório novo, e que toca em duas salas – a Konzerthaus e a Musikverein. Meu concerto de abertura, em outubro, vai começar com uma estreia mundial da compositora Lera Auerbach. O resto do programa é todo Hindemith, incluindo uma ópera curta chamada Sancta Susanna, centrada na temática feminina. Na semana seguinte, teremos peças de Agata Zubel (compositora e cantora polonesa) e Clara Iannota (jovem compositora italiana). Faremos também um simpósio para compositoras e outro para mulheres regentes. Além disso, dos sete regentes convidados, cinco são mulheres. Vamos também gravar pela Naxos.

CONTINENTE Olhando para o cenário internacional, eu diria que há 10 anos estávamos buscando soluções para questões como o envelhecimento do público, a falta de dinheiro e a queda de relevância da música clássica e das grandes orquestras na sociedade. Hoje, parece que muitos conjuntos têm conseguido se reinventar e repensar seu papel dentro das comunidades em que estão inseridos. Como você enxerga essa questão?
MARIN ALSOP Não podemos esquecer que há 10 anos tivemos uma crise financeira séria. Quando essas coisas acontecem, o primeiro corte é sempre nas artes. A partir do momento em que as economias passaram a se recuperar – quando as pessoas não estavam mais tão preocupadas com emprego e comida –, o interesse pela qualidade de vida, e consequentemente pelas artes, surgiu novamente. Mas sabemos que crises sempre acontecem, e temos que estar preparados. Algumas instituições se reinventaram, sim. Elas têm se integrado mais à comunidade e acabaram virando uma necessidade e não apenas um luxo. Em Baltimore, iniciei um projeto para as crianças dos bairros mais pobres. Essas crianças nunca imaginaram tocar violino um dia, e elas são incríveis. Começamos com 30, hoje temos 1.500 alunos. Uma das nossas primeiras crianças vai entrar na faculdade este ano.

CONTINENTE Nós vivemos uma onda de retrocessos, conservadorismo e violência. De que forma a música pode contribuir tanto para reverter os retrocessos como para ser um alento, um respiro, na vida das pessoas?
MARIN ALSOP Eu acho difícil reverter o ódio de algumas pessoas. É difícil lidar com isso. Mas acho que a música pode servir de ponte para muitas diferenças. Ela é apolítica – pessoas com visões diferentes podem sentar lado a lado e ouvir uma peça. Historicamente, a arte representa o lado mais humano que podemos oferecer, esse algo a mais que estamos sempre em busca e que o dinheiro não preenche.

CAMILA FRÉSCA, jornalista e pesquisadora. Doutora em Musicologia pela ECA-USP, colabora com veículos como Revista Concerto e Folha de S.Paulo.

Publicidade

veja também

Um Nordeste para além de registros identitários

O horror também como crítica à sociedade

Adriana Varejão