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Um urso polar ao telefone

O poeta Carlos Drummond de Andrade usava uma suposta timidez – desmentida pelos amigos íntimos – para manter longe de si, na medida do possível, as inconveniências da celebridade.

TEXTO GENETON MORAES NETO

01 de Outubro de 2002

Durante décadas, Drummond fugiu dos pedidos de entrevista.

Durante décadas, Drummond fugiu dos pedidos de entrevista.

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado ao dôssie de Carlos Drummond de Andrade | ed. 022 | outubro de 2002]

Atenção,
pesquisadores de curiosidades zoológico-poéticas: o apartamento 701 do prédio número 60 da rua conselheiro Lafayette, em Copacabana, era palco diário de uma cena esquisita. Lá, um urso polar adorava falar ao telefone.

O auto-intitulado "urso polar" chamava-se Carlos Drummond de Andrade. Desde que virou uma quase unanimidade nacional, Drummond ergueu em torno de si uma couraça para se proteger das investidas do mundo exterior. Era o exemplo acabado do mineiro arredio. Usava uma suposta timidez – desmentida por amigos íntimos – para manter longe de si, na medida do possível, as inconveniências da celebridade, descritas nos versos amargos do poema "Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz": "Ah, não me tragam originais/ para ler, para corrigir, para louvar/ sobretudo, para louvar (....)//Respeitem a fera. Triste, sem presas, é fera (...)// Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta/ quando nasceu./ Ele não nasceu./ Não vai nascer mais./ Desistiu de nascer quando viu que o esperavam garotos de colégio de lápis em punho/ com professores na retaguardada comandando: //cacem o urso polar,/ tragam-no vivo para fazer uma conferência (...).

Durante décadas, Drummond fugiu dos pedidos de entrevista. Preferia repetir a resposta-padrão: tudo o que tinha a dizer estava em seus poemas e crônicas. Mas mantinha um flanco aberto: o telefone. Amigos chegaram a definir Drummond como um "ser telefônico". Ziraldo escreveu que Drummond era, "ao telefone, um derramado, com uma voz entre rouca e afunilada, meio tênue e fina, com a respiração difícil como quem tem desvio de septo."

O "urso polar" cultivava esta pequena esquisitice: sempre que podia, fugia do contato pessoal, mas se mostrava surpreendentemente acessível a investidas telefônicas de intrusos como, por exemplo, este locutor-que-vos-fala. Um dos editores do Jornal da Globo, cultivei, pelos idos de 1986, o hábito de incomodar o poeta pelo telefone, em busca de declarações que eram transformadas, no ar, em frases que exibiam a assinatura de Drummond. O poeta jamais se esquivou de fazer rápidos comentários. A uma pergunta sobre o que pensava de uma reunião de professores de países de língua portuguesa em Lisboa para discutir uma proposta de unificação ortográfica, Drummond – tido como um dos maiores poetas já produzidos pela língua portuguesa – deu uma resposta tipicamente drummondiana: "Considero-me um usuário, não o proprietário da língua. Não sou filólogo, não sou professor, não sou gramático. Sou um leigo em língua portuguesa."

Tive a chance de entrevistar outro gigante da poesia brasileira, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, sobre a idiossincrasia telefônica de Drummond: "Era uma coisa engraçada: pessoalmente, ele falava menos" – constatava Cabral. "Mas tinha uma conversa longuíssima ao telefone. Quer dizer: quanto mais longe a pessoa, mais afetuoso ele era. Tenho a impressão de que ele não gostava era do contato físico".

O telefone terminou se transformando no caminho das pedras para a obtenção daquela que seria uma das maiores entrevistas já concedidas por Drummond. Em julho de 1987, Drummond respondeu a setenta e seis perguntas que lhe fiz por telefone, em duas sessões. Transcrita, a gravação da entrevista rendeu cerca de duas mil linhas datilografadas. As palavras do urso polar ficam. Recolho um possível decálogo de nossa entrevista:

1. "Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo contrário: tenho a impressão de que daqui a vinte anos – e eu já estarei no cemitério São João Batista –  ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz".

2. "A solidão em si é muito relativa. Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos, uma pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de ler nunca está solitária, nunca está sozinha. Terá sempre uma companhia: a imensa companhia de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos".

3. "Não fiz nada organizado. Não tive um projeto de vida literária. As coisas foram acontecendo ao sabor da inspiração e do acaso. Não houve nenhuma programação. Por outro lado, não tendo tido nenhuma ambição literária, fui poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético".

4. "A popularidade nada tem a ver com a poesia. A popularidade pode acontecer. Mas um grande poeta pode também passar despercebido".

5. "Tive apenas o desejo de exprimir minhas emoções. Eu sentia necessidade de que elas se soltassem; era um problema mais de ordem psicológica do que de outra natureza".

6. "O jornalismo é uma forma de literatura. Eu, pelo menos, convivi e mil escritores conviveram – com uma forma de jornalismo que me parece muito afeiçoada à criação literária: a crônica".

7. "O que lamento é que as novas gerações já não tenham os estímulos intelectuais que havia até trinta ou quarenta anos passados. As pessoas que sabiam escrever a língua se destacavam na literatura e nas artes em geral. Hoje em dia, há escritores premiados que não conhecem a língua natal".

8. "Sou uma pessoa terrivelmente corajosa, porque não espero nada de coisa nenhuma".

9. "Considero-me agnóstico. Sou uma pessoa que não tem capacidade intelectual e competência para resolver o problema infinito que é se existe ou não existe uma divindade".

10. "Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo".

Confira outras reportagens que integram o dossiê em PDF.

GENETON MORAES NETO foi um jornalista pernambucano e um dos principais cineastas ligados ao movimento do super-8 no Recife. Faleceu em agosto de 2016.

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