Resenha

Os vários ângulos de um mesmo Jorge

Em 'Jorge Amado – uma biografia', Josélia Aguiar constrói uma narrativa que reconta a trajetória do escritor baiano

TEXTO ASTIER BASÍLIO

01 de Fevereiro de 2019

Ilustração JANIO SANTOS SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 218 | fevereiro de 2019]

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"Procura acertar o caminho da Rússia." A frase é emblemática. Foi dirigida a um rapazola baiano, de 20 anos, que chegara de passagem por Alagoas. Quem a proferiu foi o crítico literário Aloísio Branco. A sentença pode muito bem servir como uma espécie de chave para iluminar o fio narrativo tecido por Josélia Aguiar, no seu Jorge Amado – uma biografia (Todavia, 2018, 640 págs.).

Nos momentos decisivos de sua vida, Jorge moveu-se em relação à União Soviética. E, cada movimento, de aproximação ou de recuo, foi transformador. Nos anos de formação exerceram-lhe grande influência não os clássicos russos, mas os romances proletários, em especial Cimento, de Fiódor Gladkov, precursor do realismo socialista. O impacto das leituras se refletiu na escrita do segundo romance. “A diferença é tão grande, na comparação com O país do carnaval, que quase se pode dizer trata-se de outro autor”, comenta a biógrafa.

MITO DO AUTOR PREGUIÇOSO

"A voracidade para publicar contrasta com o vagar de outros colegas de ofício. O filho de um self-made man da zona do cacau agia com um empreendedorismo que talvez não possuísse a classe literária da época, constituída por herdeiros de terras, ainda que falidos", anota Josélia que, ao detalhar a rotina de trabalho do escritor, desconstrói o mito de preguiçoso.

Em todos os seus livros, Jorge Amado costumava adiantar projetos futuros e não foram poucos os momentos nos quais trabalhava em mais de um romance ao mesmo tempo. Se a imagem que acabou se consolidando é a do romancista em seus últimos anos de vida, com camisas floridas, ar bonachão, Josélia traz à baila um Jorge Amado desconhecido: inquieto, metido em polêmicas, enfronhado na vida literária dos anos 1930.

Mais do que um romancista empenhando na criação de sua obra, o baiano encarregou-se de fazer chegar os seus livros por correspondência a nomes importantes da literatura, no Brasil e no exterior. Alguns dos quais viriam a ser elogiados por Jorge nas páginas dos jornais, onde exercia crítica militante.

Além disso, deteve uma posição de grande influência quando assumiu a publicidade da Livraria José Olympio, que se tornaria uma das mais importantes editoras daquele período. Veio a ser uma espécie de embaixador dos nordestinos, a quem originais eram despejados aos montes. Não raras vezes, indicava obras para serem publicadas. Dava palpites a respeito de tiragem, circulação e mercado em geral. Em carta a seu editor, chegou a escrever: "Vou repetir uma coisa que já te disse. Esses modernistas não vendem 100 livros, a não ser a governos".

PORTA ABERTA PELOS RUSSOS?

O sucesso no exterior não teve início com as traduções feitas nos países comunistas do Leste Europeu. Embora articulasse para ser publicado na União Soviética desde 1934, quem saiu na frente abrindo-lhe a primeira porta rumo ao prestígio internacional foi a França. "Aos 26 anos, Jorge era o primeiro brasileiro a ser publicado pela Gallimard, e foi o único ficcionista até 1956, quando Graciliano Ramos também caiu nas graças da editora francesa. Até o ano 2000, apenas mais três brasileiros chegariam ao catálogo", pontua Josélia. Curioso é que o feito foi alcançado em 1937, época de vigência da ditadura do Estado Novo, ocasião em que as obras de Jorge Amado, em português, estavam proibidas de serem comercializadas nas livrarias brasileiras.

Antes que obtivesse resposta do "país que mais o interessava", a União Soviética, Jorge Amado foi colhendo os frutos de uma intensa articulação e divulgação do seu trabalho. Tudo feito por ele próprio. Sem pistolão de partido ou indicação política. Em meio à espera dos russos, eis que as portas do inimigo ianque se lhe abriram. E outra grande proeza aconteceu. Jorge Amado, em 1945, teve sua obra Terras do sem-fim vertida para o inglês e editada nos Estados Unidos pela chancela de uma prestigiosa editora, a Knopf.

CAIXEIRO-VIAJANTE

A adesão à ideologia soviética deixou marcas tanto na sua obra como sua vida, sendo esta afetada de modo mais decisivo. Em 1935, quando o Partido Comunista tentou dar um golpe de Estado, ato que ficou conhecido como Intentona, 3 mil pessoas foram presas, entre as quais Jorge Amado.

"Jorge demorou pouco na prisão. É possível especular que era peixe pequeno", observa a biógrafa. Em 1937, Getúlio decreta o Estado Novo, persegue escritores, manda queimar livros; com dificuldades para trabalhar na imprensa, Jorge resolveu dar um giro. Conhecer a América. Não se tratava apenas de um passeio turístico. Por onde ia, o escritor era um caixeiro-viajante de si mesmo: procurava conhecer editores, autores locais, estabelecer contatos, fazer conexões, vender direitos de traduções suas, mandar sugestões para José Olympio. Esteve no Uruguai, Chile, Argentina, México e finalizou sua viagem nos Estados Unidos – país que visitou antes de conhecer sua amada União Soviética.

O POLÍTICO E O ESCRITOR

Desde que estreou na literatura, com 19 anos, Jorge Amado manteve um ritmo de publicação intenso. Até eleger-se deputado federal, foram publicados 13 obras no intervalo de 15 anos. Ao assumir papel de destaque nas atividades partidárias, a média, de quase um livro por ano, diminuiu de modo vertiginoso.

O mais longo jejum de produção literária de Jorge Amado coincide com o período de sua mais intensa ação como quadro ativo do Partido Comunista. Seu romance Seara vermelha é do ano em que se elegeu, 1946. Voltaria a escrever ficção quase uma década depois, com Subterrâneos da liberdade, em 1954, e demoraria mais quatro anos para publicar a obra seguinte, Gabriela, com a qual delineava outros caminhos para sua obra.

O escritor foi bastante atuante na política e chegou a ser eleito deputado federal, na década de 1940. Foto: Acervo Fundação Casa de Jorge Amado/Divulgação.

Devido à cassação do registro do Partido Comunista, em 1948, Jorge perde o mandato de deputado federal e é forçado a migrar. É em Paris que se exila e é onde fez amizade e aprofundou laços com intelectuais e artistas como Picasso, Neruda e Sartre, além de participar do movimento da paz. Coincidência ou não, é neste momento que finalmente chega a tão sonhada tradução russa. Ou seja, ao invés da União Soviética projetar um quadro seu, ocorreu o contrário. Quando o publicaram, Jorge era um escritor e ativista de respeito e reputação internacional.

FLERTE COM O NAZISMO

Um dos episódios mais controversos da vida de Jorge Amado se deu em 1940, época em que vigia o pacto de não agressão entre Hitler e Stálin. O escritor foi convidado para editar o suplemento cultural do jornal Meio-Dia, que recebeu financiamento da Alemanha nazista.

O fato é que, à época, Hitler ainda não era o que se tornou e o termo nazismo não estava arraigado ao extermínio de milhões de pessoas. Tanto é que, em seu romance de estreia, O país do carnaval, o debutante afirmou: "Este livro é como o Brasil de hoje. Sem um princípio filosófico, sem se bater por um partido. Nem comunista, nem fascista".

Ao reportar-se ao período, a biógrafa escreveu: "A sua gestão durou uma ou cinco semanas, a depender da versão que se escolha. Já na primeira semana, ficou surpreso ao ver uma foto pró-nazista e decidiu imediatamente deixar o jornal. Achava que 'teria controle sobre o material que saía na página (literária), mas não tinha'. Argumentava que, se seu nome continuou a aparecer na publicação depois disso, aconteceu por 'um abuso' de Inojosa'".

Em Hitler/Stálin – O pacto maldito, livro que escreveu com Joel Siqueira, desafeto público de Amado, o jornalista Geneton Moraes enumera as datas nas quais Jorge Amado editou e também os artigos que publicou. Em entrevista ao Observatório da Imprensa, Geneton falou: "Eu cheguei a entrevistar Jorge Amado sobre essa colaboração. Ele disse que só editou uma página, mas alguém editou uma foto de um soldado alemão e ele disse que deixou o jornal imediatamente. Mas eu fui aos arquivos da Biblioteca Nacional e não foi exatamente assim que aconteceu".

Josélia enumera que a entrada de Jorge no Meio-Dia teve registro na edição de 30 de julho. “Na de 4 de setembro de 1940, já não era mais editor, e para informar sua saída do jornal disse que Jorge viajava para Ilhéus, a fim de concluir seu tão anunciado romance Sinhô Badaró (…)”.

Foto: Acervo Fundação Casa de Jorge Amado/Divulgação.

Entretanto, após o referido episódio, a colaboração continuou. Cito, mais uma vez, o livro de Joel e Geneton: “Jorge Amado reaparece no suplemento no dia 9 de outubro com o artigo Notícias sobre um romancista brasileiro”. Embora ter editado e escrito por um jornal de inclinação nazista, na década de 1940, não transforme Jorge Amado num seguidor de Hitler, o episódio merece um exame mais acurado e a simples apresentação de suas versões.

PRESENÇA NA RÚSSIA HOJE

Ainda que, como a própria biógrafa disse, “imediatamente depois do fim da União Soviética, o interesse nos livros se reduziu, tanto entre editores quanto entre leitores”, é possível verificar as marcas de Jorge Amado na Rússia hoje em dia.

Quem for hoje ao Lenkom Theatre, em Moscou, vai encontrar no repertório daquela casa de espetáculos, a produção Dona Flor e seus dois maridos. Ainda na capital russa, essa mesma personagem de Jorge Amado dá nome a uma loja de música. Em São Petersburgo, na Avenida Yelizarova, é Gabriela quem nomeia um salão de beleza.

Quase toda obra de Jorge Amado, em russo, pode ser baixada em sites, nos quais e-books piratas estão disponíveis gratuitamente. Mas quem optar pelo formato tradicional, vai encontrar também edições recentes, lançadas nesta década, de praticamente tudo o que saiu do autor na Rússia. O maior fenômeno é Capitães da areia. Tem havido sucessivas edições: 2004, 2006, 2010, 2014 e, agora, em 2018.

A razão pela qual essa obra ainda é tão popular se deve a uma adaptação para o cinema, em 1971. Pouco conhecida no Brasil, a produção americana Capitães da areia, dirigida por Hall Bartlett, fez um sucesso estrondoso e marcou uma geração. Uma curiosidade. A música de Caymmi Suíte do pescador, presente na trilha do filme, foi vertida para o idioma russo e se tornou parte do cancioneiro local. Muita gente desconhece se tratar de uma versão. O romance se popularizou tanto, que há, inclusive, uma pista de corrida, em Volgogrado, que se chama Capitães da Areia.

SÍNTESE E APURO

Quem conhece os livros de memória de Zélia Gattai, nos quais se enumera uma infinidade de anedotas e histórias da vida do casal, com minúcia e detalhe, vai perceber o quão Josélia Aguiar teve de ater-se ao essencial.

A obra é um apuro de objetividade e síntese, escrita de forma sóbria, com um estilo conciso e enxuto. A simplicidade pode até soterrar o engenho e esforço empreendidos, mas Josélia cumpriu uma missão: encetou um fio, sem perder-se em digressões, de um biografado cuja vida ramificou-se em muitas áreas e fincou-se no coração do povo brasileiro.

ASTIER BASÍLIO, escritor, jornalista, autor de mais de 10 livros.

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