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Dando um gelo na mesmice

Ancorados na mixologia, profissionais de elaboração e preparo de drinques ampliam o repertório de combinações a favor da descontração e de novas experiências etílicas

TEXTO Eduardo Sena

01 de Março de 2017

"Se a arte é o simulacro da vida, nada mais natural que as pessoas se deixem fisgar pelos sabores envolventes que um drinque propõe"

Foto André Nery

[conteúdo na íntegra | ed. 195 | março 2017]

Era munido de taças de cosmopolitans à mesa que o famoso quarteto de mulheres do seriado norte-americano Sex and the City se reunia para discutir os problemas e brindar aos sucessos próprios de uma alegoria clichê chamada “universo feminino”. Muito antes dessa combinação de vodca, licor de laranja e suco de cranberry acolher as moças, o enigmático espião James Bond, da série cinematográfica 007, recorria ao dry martini com a célebre recomendação, “shaken, not stirred” (batido, não misturado). Ainda nas telonas, o magnata Sherman McCoy, do yuppie A fogueira das vaidades, não tramava de boca seca. Em mãos, sempre um potente sidecar, rimando conhaque, cointreau e suco de limão.

E, se é verdade que a arte é o simulacro da vida, nada mais natural que as pessoas se deixem fisgar pelos sabores envolventes que um drinque propõe, seja para aplacar o calor, relaxar, criar coragem ou descontrair. Sua prática é antiga, não estamos falando de uma invenção historicamente moderna. Segundo a pesquisadora gastronômica Maria Lucia Gomensoro, no livro Pequeno dicionário de gastronomia, a fórmula que deu origem ao que viria a ser batizado de coquetel surge na França, no século XVIII, quando uma parte de champanhe seco foi misturado a um torrão de açúcar embebido de brandy – qualquer bebida alcoólica destilada de vinho, frutas ou grãos. O conhaque, por exemplo.

A possibilidade de conjugar bases alcoólicas com outros ingredientes deu tão certo que, ainda em 1891, foi publicado um guia, o Cocktail boothby American bartender, que continha mais de 350 receitas, além de dicas para preparar os melhores drinques. Esse receituário clássico permanece até hoje, com algumas combinações tornando-se anacrônicas. Mas, em algumas delas, ninguém ousa mexer, como o dry martini, mojito, negroni e pisco sour. Quase que de forma compensadora ao que entra em extinção (como o bull shot – caldo de carne e vodca), uma nova escola, que atende pelo nome de mixologia, tem-se ampliado, dando novo sentido à produção de drinques e desenvolvendo um repertório de receitas e experiências gastroetílicas.

COQUETELARIA + MIXOLOGIA
Se, em outros momentos de transição, tivemos embates entre artesanato x arte, culinária x gastronomia; disputas entre a repetição de fórmulas consagradas e a criação de uma nova linguagem, os drinques seguem o mesmo caminho. “A mixologia nada mais é do que a ciência que estuda, desenvolve e aplica os diversos detalhes que envolvem a história, criação, reprodução e harmonização da coquetelaria como um todo”, descreve João Morandi, mixologista da Pernord Ricard Brasil.

Enquanto a coquetelaria pode ser descrita como o estudo dos coquetéis, de como surgiram suas técnicas de execução, trabalhos de rotina, hospitalidade e padrões de receitas clássicas e contemporâneas, a mixologia pode ser apontada como uma “pós-graduação” no ramo. É o que acredita o barman Thiago Teixeira, do oriental Mr. Lam, que margeia a Lagoa Rodrigo de Freitas, na cidade do Rio de Janeiro.

É que, na mixologia, além de dominar os conhecimentos em coquetelaria, é preciso estudar e conhecer as bebidas, insumos e apresentação para a elaboração de um bom coquetel. É uma prática que requer atualização frequente. Essas linhas de atuação podem até ser diferentes, mas são indissociáveis. “A coquetelaria é o objeto de aplicação da mixologia, que estuda os detalhes e fenômenos que cercam, interceptam e se relacionam intimamente com os coquetéis”, anota Morandi, que acredita que a diferença se faz notável mesmo é no exercício do ofício.

“Há o mixologista e há o bartender, aquele profissional que atende dentro do bar, podendo ele ser um mixologista ou não. Não existe hierarquia entre as duas profissões e, muitas vezes, os profissionais da área se apropriam do termo mixologista para dar um ar mais sofisticado à sua profissão, quando, na verdade, são profissões diferentes, mas intimamente ligadas e relacionadas”, esclarece.

O movimento mixológico está no auge, já que até na degustação de um drinque trivial os consumidores buscam sofisticar suas relações de consumo.“A sofisticação da coquetelaria vem surfando a onda da gastronomia mais complexa. Mas ainda estamos no comecinho de um movimento de acesso ao que há de mais interessante na gastronomia; e de forma mais incipiente ainda nessa aderência das novidades da coquetelaria. Em outros países, esse movimento já é bem maior. No Brasil, estamos plantando as sementinhas”, acredita

GIM-TÔNICA
Consenso entre os profissionais do setor é que uma sementinha secular, a de zimbro, por meio da qual é produzido o gim, é a que anda dando as cartas nos bares. “Hoje, a tendência é a apreciação pelo gim. O consumo dele, sobretudo por meio do gim-tônica cresceu muito no Brasil.  É um drinque refrescante, com bastante gelo, que tem tudo a ver com o  nosso clima tropical. Bebida que aceita muitas intervenções, as suas variações são o ponto alto da coquetelaria hoje”, aponta Thiago Teixeira, responsável pelo bar do Mr. Lam, em cujo cardápio há uma seção com cinco versões da bebida. 

No restaurante Kisu, instalado em um shopping da zona sul do Recife, com gastronomia nikkey (junção da japonesa com a peruana), desenvolvem-se várias possibilidades da combinação da bebida que, como reza a uma das máximas da coquetelaria, ‘dá ânimo aos confrangidos, conforta os cansados e aplaca os aflitos’. A bartender Sabrina Suzy lança diariamente sugestões autorais para os clientes, além das mais de 25 opões fixas do cardápio.

O gim-tônica que combina o destilado com chá (à escolha do consumidor), grapefruit, refrigerante cítrico e canela maçaricada é mistura queridados clientes da casa. Na carta de clássicos, o gim também é base do classudo dry martini, outro hit do Kisu. “O gim tem o potencial de frescor e alto teor alcoólico, que seduz o consumidor. Sem falar que é uma base bastante neutra, possibilitando muitas formas de servir”, conta Sabrina, que, durante o expediente, vai de mesa em mesa, buscando transformar o desejo dos clientes em produções etílicas.

Com um pouco menos de teor alcoólico (entre 40 e 42% – o gim tem 47%), a cachaça também é apontada pelos profissionais como a bebida do presente, mas também do futuro. O fermentado que colocou o Brasil no mapa da coquetelaria com a caipirinha espalha-se por toda a coquetelaria mundial, uma vez que possibilita o surgimento de diversas criações. “Além de um excelente destilado, o Brasil contribui com uma coleção rica e ampla de madeiras de envelhecimento da cachaça, promovendo a diversidade da nossa flora para dentro da coquetelaria”, diz João Marandi.

Essa opinião já é um consenso entre os profissionais. “O gim-tônica é uma realidade, mas é importante falar da evolução da nossa cachaça que, a meu ver, será melhor trabalhada nos bares. Vejo também como movimento futuro, nos bares, deixar de servir coquetéis nos copos e taças tradicionais e servir em recipientes exclusivos. Coisa que já vem acontecendo em alguns bares do Brasil”, comenta Thiago Teixeira. Outra contribuição nacional para as coqueteleiras do mundo é o hábito de trabalhar com produtos frescos e frutas da estação. “Enquanto a coquetelaria ‘gringa’ era refém de xaropes, licores e purês industrializados, o brasileiro fincou pés em uma forma mais simples, porém bastante natural. Isso possibilitou o sucesso de sabores”, opina Morandi.

HARMONIZAÇÃO
Trazer novos aromas e sabores para a taça elevou os coquetéis a vetores de harmonizações gastronômicas, caminho já bem trilhado pelos vinhos e, mais recentemente, pela cerveja. “Tudo, absolutamente tudo, harmoniza. Som, cor, aroma, sabor, tato… Tudo aquilo que possui propriedades organolépticas harmoniza com outros elementos. Coquetéis não fogem à regra, já são harmonizados. Reúnem bebidas, frutas e especiarias. Mas tudo aquilo que pode harmonizar pode também não criar a melhor das experiências”, sugere Morandi. Para o profissional, é aí que se dá a importância da mixologia, investigando os aspectos importantes que permitam à coquetelaria harmonizações de acordo com as paridades propostas.

Para o bartender Thiago Teixeira, os drinques nem sempre são feitos para harmonizar, mas trazem algum propósito, podendo ser mais secos, cítricos, com mais amargor – o que é necessário é que suas propostas fiquem claras. “Por exemplo, no Mr. Lam, criei uma releitura de gim-tônica com xarope artesanal de maracujá levemente picante à base de pimenta dedo-de-moça. Ou seja, cítrico e com pimenta pronunciada, que harmoniza perfeitamente com um dos nossos pratos mais famosos: camarão empanado com molho agridoce e especiarias chinesas. Sempre procuro saber qual a pretensão de consumo do cliente, assim consigo minimizar as chances de erro.”

SEM ÁLCOOL
Deslize é dizer que drinque sem álcool é suco. Isso porque estamos falando de uma das tendências da gastronomia apontadas para este ano: o mocktail, o coquetel com 0% de base alcoólica. Ele decorre do empenho dos mixologistas e bartenders em propor combinações não alcoólicas tão sedutoras quanto qualquer outro drinque. Como evita ingerir bebidas alcoólicas, a despeito da profissão, Sabrina Suzy, do Kisu, adora preparar e beber mocktails. “O segredo é que eles devem conter a mesma potência de sabor e complexidade de um alcoólico. A regra é clara: mocktail é drinque, não tem a ver com refresco”, sentencia.

“Não pode ser uma bebida simples a ponto de acabar rápido. Tem que ser algo que demore na boca, que dê vontade de curtir até o último gole. Caso contrário, enquanto os amigos bebem um drinque, a pessoa beberá uns cinco”, compara Sabrina. A bartender ensina: o gás é um forte aliado, assim como as produções com sabores marcantes. Densidade e temperatura também são determinantes. Dá para trabalhar com pimenta, temperos, chás, reduções e infusões. Apoiada na experiência, ela desenvolve uma cartela de opções sem álcool para o restaurante, onde se sobressai o Ginger Fresh, à base de infusão de gengibre, limão, chá e água com gás.

No restaurante carioca Sobe, o barman William Barão criou o Fake Wine (vinho falso), uma brincadeira que leva xarope de romã, redução de chá de flor de hibisco, purê de pêssego artesanal da casa e especiarias como cravo, canela, cumaru e casca de frutas cítricas. Ele explica que fazer um mocktail não é apenas excluir o álcool de uma preparação. “É necessário fazer do zero, pois tudo o que está ali faz parte de uma composição. Até o ano passado, não tínhamos drinques sem álcool na carta, mas toda semana alguns clientes pediam. Comecei então a pesquisar as especiarias e criei essa brincadeira com o vinho.” 

 

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