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1967: um ano inesquecível para o rock’n’roll

Há 50 anos, eram lançados os discos de estreia de The Doors, Velvet Underground, Jimi Hendrix e Pink Floyd, que promoveram uma revolução total no gênero

TEXTO Débora Nascimento

01 de Março de 2017

Banda de Los Angeles, The Doors abriu o ano de 1967 com disco arrebatador

Banda de Los Angeles, The Doors abriu o ano de 1967 com disco arrebatador

Foto Joel Brodsky/reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 195 | março 2017]

Quando Lou Reed morreu, aos 71 anos, serenamente em sua casa, tendo ao lado sua esposa, Laurie Anderson, era uma manhã de domingo. Ele partiu em 23 de outubro de 2013, no mesmo dia ao qual se referiu em Sunday morning, faixa de abertura de The Velvet Underground & Nico, disco que, lançado há 50 anos, deu início à sua trajetória musical. Embora tenha abordado as drogas em faixas como Heroin e I’m waiting for the man, contrariou o que se esperava dele, morrer jovem e em decorrência do vício, como Jimi Hendrix e Jim Morrison, ícones do rock que também estrearam em disco em 1967, mas morreram precocemente aos 27 anos, fulgurantes e fugazes estrelas de um ano-chave para a música.

Não se sabe se foi uma conjunção astral, uma coincidência ou o resultado da linha evolutiva do rock aliada a uma revolução comportamental, ou tudo isso junto, mas aquele ano ficou assinalado por lançamentos memoráveis, como Sgt. Pepper`s Lonely Hearts Club Band e Magical mystery tour, dos Beatles, Between the buttons e Their satanic majesties’ request, dos Rolling Stones, Younger than yesterday, dos Byrds, Sell out, do Who. Além desses, foram lançados os primeiros álbuns do Kinks, Van Morrison e David Bowie. No entanto, as estreias notáveis ligadas ao rock foram as do Velvet Underground, Jimi Hendrix, Pink Floyd e The Doors.

O álbum de estreia do Doors, autointitulado, iniciou, em janeiro daquele ano, a sequência de discos que transformariam 1967 num marco para o rock. Com nome inspirado no livro As portas da percepção, de Aldous Huxley, sobre suas experiências com drogas psicoativas, título, por sua vez, retirado de uma frase do poeta inglês William Blake (“Quando as portas da percepção estiverem abertas, tudo parecerá como realmente é: infinito”), a banda abria as portas do gênero musical para as possibilidades sonoras que despontariam.

Caracterizado pelo duelo entre o teclado de Ray Manzarek e a guitarra de Robby Krieger sobre a bateria jazzística de John Densmore, o disco começa com a protopunk Break on through, engloba o pop barroco The cristal ship, a música de vaudeville Alabama song (Whisky bar),a sedutora Light my fire,o cover do blues Black door man, e encerra com a psicodelia épica e hipnótica protagonizada pelo canto majestoso de Jim Morrison em The end – faixa que, em 1979, abre Apocalipse now, de Francis Ford Coppola, uma ironia, pois o cantor, antes de montar o grupo, formou-se em Cinema na Universidade da Califórnia.

Após a morte de Morrison, em 1970, a banda ainda lançou três discos, mas sem a mesma repercussão. Em setembro de 1981, a Rolling Stone o estampou, em sua capa – com a manchete “Ele é quente, ele é bonito e ele está morto” – uma prova da crescente adoração em torno da banda e de seu líder. A mística foi estimulada ainda por The Doors – O filme (1991), de Oliver Stone, que angariou uma nova legião de fãs.

VELVET
O mesmo fenômeno aconteceu com a Velvet Underground. O nome da banda nova-iorquina ganhou reverberação após seu fim. E boa parte desse mérito deve-se à força de seu disco de estreia. Lançado em março de 1967, The Velvet Underground & Nico ia contra toda a vibehippie daquele ano. Trazia, assim como The Doors, mesmo que esse grupo fosse da ensolarada Los Angeles, uma atmosfera soturna à música pop.

Considerado um dos mais impactantes álbuns do rock, influenciou o surgimento de gêneros como punk, glam, gothic, noise, indie, lo-fi, atestando a frase de Brian Eno: “Apenas 30 mil pessoas compraram o disco de estreia do Velvet Underground na época, mas quem o fez certamente montou sua própria banda”. Inclusive o próprio Eno, com o Roxy Music.

A variedade de temas e sons presente nos cerca de 49 minutos é um dos fatores responsáveis por essa interferência no futuro do rock. Em meio a bandas americanas como The Mamas and the Papas, Beach Boys, Grateful Dead, Jefferson Airplane e artistas como Simon & Garfunkel e Bob Dylan, The Velvet Underground & Nico parecia um disco saído de um outro lugar, Inglaterra possivelmente, ambiente que mais ousava no gênero, através de bandas como Rolling Stones, The Who e Beatles, que já tinha lançado Revolver e aberto as comportas da psicodelia com Tomorrow never knows.

Essa pegada inglesa do disco do Velvet tinha a ver com a presença de John Cale. Nascido no País de Gales, era o único membro que frequentou escolas de música e que ambicionava escrever sinfonias. Ao final do curso de Composição Moderna em Massachusetts, ele viajou para Nova York, onde conheceu Lou Reed, que já tinha composto algumas das canções que fariam parte do primeiro LP do Velvet. “O que mais gostei em Lou é que nós dois não víamos o blues como uma religião e não queríamos ser virtuoses do instrumento e nem pretendíamos aprender cada riff de guitarra. Eu gostava, por exemplo, da guitarra de Chuck Berry, mas gostava muito mais de suas letras”, afirmou Cale.

Uma das peculiaridades desse álbum é o vocal insolente de Lou Reed (evidente em I’m waiting for the man e Venus in furs) e o canto bizarro de Nico, modelo e atriz húngara que tinha feito uma ponta em A doce vida (1960), de Fellini, e foi imposta à banda por Andy Warhol, agente do grupo. Sua interpretação pesada, com acentuado sotaque, fica à beira da desafinação e de estragar composições como Femme fatale, I’ll be your mirror e All tomorrow’s parties, mas curiosamente sua voz acabou se tornando parte do diferencial do Velvet Underground.

“O mais importante disco da história do rock”, ousou dizer, certa vez, o nada modesto Lou Reed, arrematando, “Pergunte para essa nova geração de onde eles tiram esse som.” Ele estava certo. A influência desse álbum e do VU pode ser percebida em diversas bandas e artistas, como David Bowie, Patti Smith, Television, Stooges, Roxy Music, Can, Neu!, Joy Division, Sonic Youth, The Jesus and Mary Chain, Strokes, Galaxie 500, Pavement, Pixies, Nirvana, Belle and Sebastian…

The Velvet Underground & Nico exalava frescor e rebeldia. O diretor italiano Michelangelo Antonioni ouviu algumas dessas músicas, antes de serem lançadas no álbum, e tentou, sem sucesso, levar a banda para tocar no seu filme que capta o espírito da Swinging London, Blow Up (1966). No lugar do quarteto nova-iorquino, tocou, na cena da boate, a inglesa Yardbirds, que, na época, tinha como guitarristas Jimmy Page (antes de formar o Led Zeppelin) e Jeff Beck (substituto de Eric Clapton).

O début do VU só não teve mais reverberação devido a questões externas à música, como, por exemplo, um imbróglio provocado pela contracapa. Enquanto a icônica capa, assinada por Andy Warhol, chamava a atenção por sua originalidade, o outro lado trazia uma foto da banda tocando, com o filme Chelsea girls projetado ao fundo. O ator Eric Emerson, que tinha sido preso por posse ilegal de ácido, moveu uma ação contra a gravadora por uso indevido da imagem, provavelmente para receber dinheiro para pagar seu próprio processo judicial. Em meio ao impasse, o disco sofreu uma má distribuição. Após a venda da primeira prensagem, não foi feita imediatamente outra tiragem. Quando o LP voltou a ser comercializado, já estava na praça, desde 1o de junho, um concorrente de peso, Sgt. Pepper`s Lonely Hearts Club Band, o “melhor disco de rock da história”.

Enquanto o Sgt. Pepper’s, mais famoso exemplo de “álbum-conceito” (algo difícil de ser explorado hoje, na época das playlists), era o resultado de uma superprodução oriunda do topo da cadeia da música pop, que transmitia aos ouvintes a sensação de ter sido gerado num Olimpo inatingível aos pobres mortais, o “disco da banana” era um produto saído da guerrilha do gueto do rock e a prova de que o gênero era uma poderosa forma de expressão acessível a qualquer um que conseguisse juntar três ou quatro acordes.

Ao mesmo tempo em que o Velvet Underground tentava divulgar o disco nos light shows (uma mistura de performance musical com projeção de imagens que se tornaria uma marca dos espetáculos no futuro, como os do Pink Floyd), promovidos por Andy Warhol, que abandonaria a banda após o fracasso comercial do LP de estreia, um jovem de 24 anos, ex-guitarrista de Little Richard, finalizava seu primeiro álbum, o estrondoso e visionário Are you experienced?

HENDRIX
Ao lado de dois competentes músicos ingleses, o baixista Noel Redding e o baterista Mitch Mitchell, o norte-americano de Seattle, Jimi Hendrix, fez uma das estreias mais surpreendentes da música, trazendo ao rock diversas inovações, como usar na gravação a manipulação da distorção, da microfonia e dos amplificadores. “Esse disco alterou a sintaxe da música de uma maneira, que eu comparo a, digamos, Ulysses de James Joyce”, disse o crítico e pesquisador norte-americano Rueben Jackson.

Além de despontar como verdadeiro deus da guitarra, ultrapassando Eric Clapton, Pete Towshend, Jimmy Page e Jeff Beck, Jimi Hendrix ainda se mostrava como um talentoso e diversificado compositor, com abrangente influência que ia do rock ao do blues, passando pelo soul e free jazz (presente no estilo da bateria de Mitch Mitchell), distribuída em músicas como Foxy lady, Manic depression, Purple haze, Red house, Remember, The wind cries Mary.

Em plena década de 1960, quando o gênero de origem negra estava sendo protagonizado por artistas brancos, Hendrix, com esse álbum, trouxe o negro de volta ao rock, potencializou o iniciante hard rock e se tornou, com suas letras provocantes, como Foxy lady, e seu jeito sexy de tocar guitarra, o primeiro negro a exibir e esbanjar sensualidade na música, como uma espécie de Elvis dos músicos – herança que Prince e Lenny Kravitz quiseram tomar para si.

Um mês depois do lançamento de Are you experienced?, Jimi Hendrix subiria ao palco do Monterey Pop Festival, primeiro festival de música pop da história. A inclusão do guitarrista na programação aconteceu por insistência de um dos curadores do evento, Paul McCartney.

O beatle e seus companheiros de banda tinha ido ao show de encerramento da turnê do trio Jimi Hendrix Experience na Inglaterra, que aconteceu em 4 de junho de 1967, no Teatro Saville, em Londres. Poucas horas antes da apresentação, McCartney deu a Hendrix uma cópia do Sgt. Pepper’s (lançado havia três dias). Ali mesmo, o virtuoso guitarrista contou ao seu baterista e baixista que queria abrir o show com a música título do álbum. Sim, sem ter ensaiado. Os Beatles, que estavam no camarote, ficaram chocados.

Após sua incendiária performance, em 18 de junho, no último dos três dias do Monterey Pop Festival, Hendrix, único roqueiro negro de todo aquele line-up, tornou-se uma estrela e uma lenda, cuja brilhante trajetória foi interrompida precocemente em 18 de setembro de 1970.

PINK FLOYD
Em agosto de 1967, três meses após o lançamento de Are you experienced?, a Inglaterra, responsável por gerar bandas como os Beatles, Rolling Stones, The Who, apresentava ao mundo seu mais novo segredo, o Pink Floyd. Mergulhando fundo na psicodelia presente no Sgt. Pepper’s e nas estreias fonográficas do Doors e de Hendrix, o grupo inglês lançou The piper at the gates of dawn. Psicodélico e experimental, foi também uma das melhores estreias de bandas, traduzia em fonogramas a cena alternativa do rock londrino.

Assim como Are you experienced? era a demonstração da genialidade de Jimi Hendrix, o début do Pink Floyd é o atestado de prodígio de Syd Barrett, autor de 10 das 11 faixas, com letras surrealistas sobre camadas de art rock de melodias sublimes e etéreas. Gravado no Abbey Road Studios, teve como produtor Norman Smith, um nome desconhecido na produção, mas que foi engenheiro de som dos discos da primeira fase dos Beatles, With the Beatles, Please, please me, Beatles for sale, A hard day’s night, Help! e Rubber soul. Ou seja, foi o braço direito do produtor George Martin até a chegada de Geoff Emerick, engenheiro de som do quarteto a partir de Revolver, e que ganhou um Grammy pela maestria em Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.

The Piper, que hoje rivaliza com Dark side of the moon (1973) a posição de melhor álbum do Pink Floyd, foi paralelamente o despertar e o crepúsculo de um gênio de apenas 20 anos. David Bowie diria, mais tarde, que a forma de Syd Barrett cantar, com desavergonhado sotaque inglês, o influenciou. Seguidoras do rock e blues norte-americano e com receio de não conseguirem penetrar naquele mercado, as bandas britânicas da época costumavam disfarçar suas origens.

Algumas das músicas de The Piper, como Astronomy domine e Insterestellar overdrive, também seriam responsáveis pela invenção do “rock espacial”, do qual Bowie se tornou maior representante com Starman e Space Oddity, que, lançada em 1969, foi utilizada pela BBC durante a transmissão da chegada do homem à Lua.

Assim como a narrativa do filme Psicose (1960) transfere abruptamente o protagonismo da secretária fugitiva Marion Crane para o jovem Norman Bates, o Pink Floyd também. Depois do LP de estreia, Syd felizmente não morreu vítima do vício como Hendrix e Jim Morrison, mas enveredou em suas viagens alucinógenas e nunca mais voltou delas. Enlouqueceu e faleceu no ostracismo, aos 60 anos, em decorrência da diabetes, em 2006.

Apenas quatro meses após o lançamento de The Piper, o baixista Roger Waters substituiu Syd pelo exímio e centrado guitarrista David Gilmour e a banda deu uma guinada para o rock progressivo. De sensação do underground inglês, o grupo tornou-se pioneiro nos gigantescos espetáculos de arena. Em 1975, o Pink Floyd fez uma homenagem a Syd na faixa-título do disco Wish you were here e na música Shine on you crazy diamond. A abertura das portas da percepção, em 1967, somada ao despertar da liberdade comportamental e cultural, refletiu na música, dando passagem a centenas de bandas e artistas e de lançamentos de discos. Dezenas delas se desfizeram, muitos morreram, diversos desses álbuns se perderam no esquecimento. No entanto, as estreias fonográficas do Pink Floyd, Velvet Underground, Doors e Jimi Hendrix foram algumas das mais duradouras marcas do esplendor da revolução de uma era, permanecem hoje tão à frente do seu tempo como há 50 anos. 

 

 

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