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O duelo entre Todo Duro e Holyfield

"A luta do século", de Sérgio Machado, rememora a disputa histórica entre o pernambucano e o baiano, tendo como ápice o último confronto, em 2015

TEXTO Luciana Veras

01 de Dezembro de 2016

A ideia de promover uma nova luta entre os dois pugilistas surgiu com a produção do documentário em curso

A ideia de promover uma nova luta entre os dois pugilistas surgiu com a produção do documentário em curso

Foto divulgação

[conteúdo da ed. 192 | dezembro 2016]

Corria a
tarde de um domingo de outubro e havia várias filas num shopping onde seis salas de exibição abrigavam a programação da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Dezenas de pessoas esperavam a vez de comprar ingressos, outras tantas aguardavam o início da sessão e duas delas fincavam posições diametralmente opostas, como se fossem duelistas a esperar a hora de desembainhar as espadas. O pernambucano Luciano Torres, 51, pernambucano, trajando terno escuro e gravata estampada em tons vermelhos, era assediado por fãs, que pediam autógrafos em pares de luva de box. A 10 metros de distância, o baiano Reginaldo Andrade, 50, vestindo camisa polo azul-marinho um tanto apertada nas mangas, fazendo sobressair os músculos do braço, era festejado por conterrâneos e paulistanos. Se alguém os chamasse pelos nomes de batismo, podia ser, até, que eles nem atendessem; mas, aos gritos de Todo Duro e Holyfield, os protagonistas de A luta do século (Brasil, 2016) tinham um momento de celebridade para além dos ringues.

No filme do baiano Sérgio Machado, exibido na mostra paulistana e também no Festival do Rio (de onde saiu com o prêmio de melhor longa-metragem documental), os dois pugilistas são, ao mesmo tempo, personagens principais e inimigos figadais. A luta do século resgata uma rivalidade que, em Pernambuco, na Bahia e em todo Nordeste, é legendária: entre o início dos anos 1990 e 2015, Todo Duro e Holyfield se enfrentaram sete vezes, com quatro vitórias para o pernambucano e incontáveis episódios nos quais os boxeadores trocaram tapas em público – ou, como explicita a sequência de abertura, atropelando apresentadores em estúdios de televisão, em frente a câmeras e “ao vivo e a cores”, como repetia Todo Duro enquanto a sessão na 40ª Mostra de SP não começava.

Durante a projeção, era possível ouvir o pernambucano repercutindo as cenas que se encadeavam na tela. “Tu vai apanhar de novo, baiano”, gritou Todo Duro, para gargalhada da sala. Ao término, Holyfield provocou: “A filha dele está apaixonada pelo negão. Ela quer casar comigo. Ela vai me ligar pedindo ‘por favor, não bata tanto em meu pai’”. Nova rodada de risadas e aplausos. Para ir embora, os dois mobilizaram os esforços da equipe de produção porque não aceitaram dividir o mesmo veículo. “A Mostra ofereceu um carro para levá-los, mas quem é que ficaria de costas para o outro? Tivemos que arranjar um carro para cada. Não é teatro ou marketing, eles são assim o tempo inteiro”, comentaria, dias depois, o diretor Sérgio Machado.

A luta do século nasceu da admiração que os atores baianos Lázaro Ramos e Wagner Moura têm pela dupla de boxeadores. Conta Lázaro, um dos produtores do longa, que a ideia inicial era que ele interpretasse Holyfield e Wagner fizesse o papel de Todo Duro. “Para mim, eles são heróis. Cresci acompanhando essa rivalidade, Wagner também, e chegamos para Sérgio com essa ideia. Eu adoraria ter interpretado Holyfield. Estava animado para isso. Mas aí Sérgio começou a pesquisar e percebeu que a história era rica demais. Surgiu o documentário. Várias pessoas chegaram a mim para dizer ‘ah, tenho curiosidade para ver como os dois vão se comportar sem ser diante das câmeras de Tv’. Eu respondia que eles eram exatamente daquele jeito, como o filme mostra”, diz o ator e produtor baiano à Continente.

APRESENTAÇÃO
O documentário foi rodado entre 2014 e 2015, a partir de prêmios amealhados em editais da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo (o orçamento final, segundo o diretor, gira na casa dos R$ 600 mil). Não foi por acaso que Sérgio Machado optou por dotar a narrativa de um certo didatismo. “Fora da Bahia e de Pernambuco, as pessoas não têm a menor ideia de quem eles são. Muitos nunca tinham ouvido falar em Todo Duro ou em Holyfield. Para mim, não tinha outro jeito. Primeiro, quis fazer uma espécie de curta, para recontar essa rivalidade, e depois enveredar na vida pessoal, no cotidiano desses personagens comoventes”, expõe o cineasta, que se interessou, de imediato, pelo arco dramático que unia os dois rivais.

“Como é chegar perto do topo, mas não conseguir se sustentar ali? Esses homens eram ídolos. Lembro que uma vez fui ao estádio para um jogo entre Bahia e Vitória e todo mundo se levantou para aplaudir Holyfield. No Recife, quando eu cheguei para visitar Todo Duro, perguntei se ali era a casa dele e um rapaz que passava me respondeu: ‘Todo Duro é orgulho de Pernambuco, devia ter uma estátua dele no centro da cidade, que nem a de Rocky Balboa’.” O que me impressionou muito é que o primeiro approach que fiz com os dois foi na véspera do segundo turno da eleição presidencial, em 2014. E os dois estavam distribuindo santinhos. Todo Duro no Recife, Holyfield em Salvador, homens muito queridos em suas cidades, que ganharam dinheiro e reconhecimento, naquele momento, faziam aquele bico para sobreviver. Filmei com a ideia de abrir o filme com essa cena”, recorda o diretor.

Contudo, o que ele descobriu, ao acompanhar os dois pugilistas nordestinos é que a capacidade deles para surpreender é tão diversa quanto o arsenal de golpes que desferem no ringue. O segundo documentário de Sérgio Machado já estava quase todo pronto, marcando seu retorno ao gênero que o lançara em Onde a Terra acaba (2002), depois de três ficções – Cidade baixa (2005), Quincas Berro D’Água (2010) e Tudo que aprendemos juntos (2015), quando um coadjuvante apontou um novo rumo. Em uma sequência-chave do filme, o empresário Raimundo Alves de Souza, o Ravengar, solto após cumprir pena por tráfico de drogas na Bahia, reencontra Holyfield e sugere que uma nova luta com Todo Duro seja marcada.

O baiano topou na hora, o pernambucano se empolgou ao receber o telefonema e o diretor ganhou um problema. “Eu tinha certeza de que seria mais uma provocação, uma galhofa, e achei que eles não teriam poder de mobilização para lutar. Já não tinha mais grana, tinha acabado todo o dinheiro da filmagem”, recorda Sérgio Machado. “Como eles foram em frente, eu pedi a amigos que filmassem a preparação de Todo Duro no Recife enquanto eu me virava para filmar Holyfield em Salvador. Até câmera emprestada eu pedi para filmar a luta”, acrescenta. A luta do século virou, portanto, o mote para o confronto ocorrido em 11 de agosto de 2015, no Clube Português, na região central da capital pernambucana.

Entre os cinegrafistas presentes naquela noite de terça-feira, quando cinco mil pessoas urravam em êxtase, estava o próprio diretor. “Foi a cena mais difícil que já filmei. Na época, eu também estava escrevendo um roteiro para Walter Salles sobre Popó e tinha visto muitos documentários de boxe, várias ficções e lido vários livros, um deles sobre Muhammad Ali voltando a lutar já velho. Fiquei com muito medo dessa luta. Já tinha me afeiçoado aos caras e ficava agoniado só de pensar em ver um batendo no outro. Para mim, foi violento demais. Era como se estivesse vendo dois amigos trocando socos. Na madrugada depois do combate, saí do Recife e embarquei para Locarno, pois tinha que participar de um festival, mas fui vomitando o voo inteiro, com febre e dor de cabeça”, rememora.

É interessante cotejar o espetáculo midiático armado para essa revanche, 11 anos após a última disputa, e os próprios registros dos primeiros conflitos. Entre a batalha que inaugurou a rivalidade, em 1996, e “a luta do século”, ambas vencidas por Todo Duro, decorreram 19 anos. Se as revanches iniciais aparecem em cena por meio dos recortes de jornais e de imagens precárias da época, a luta de 2015, filmada para o documentário com cinco câmeras, virou febre de audiência na internet. Esse percurso ao longo de quase duas décadas é explorado com minúcias por Sérgio Machado. Assim, entre uma luta e outra, o público aprende, por exemplo, que Todo Duro foi campeão mundial pela World Boxing Federation e Holyfield foi campeão brasileiro, sul-americano e mundial na categoria supermédio; que, após anos de estrelato, os dois atletas enfrentaram o ocaso, com o pernambucano chegando a ser preso no Recife e o baiano quase morrendo ao salvar dois sobrinhos em um incêndio; e que, embora sem o mesmo vigor de outrora, devotaram-se aos treinamentos a fim de vencer o conflito que dá nome ao filme.

“Muita coisa mudou no Brasil nesse tempo todo”, observa o produtor Lázaro Ramos. “Mas vejo o filme também como a possibilidade de fortalecer uma reflexão sobre o que não mudou: é preciso olhar para os brasileiros que estão nessa luta de Todo Duro e Holyfield a cada dia, a cada semana. E olhar com afetividade para a complexidade que têm esses brasileiros das classes populares, esses homens negros, pobres, periféricos que não desistem. O filme, para mim, é também uma metáfora do papel do esporte no país, do que é capaz de fazer, mesmo em condições adversas”, reforça o ator,

“Condições adversas” não assustam Luciano Torre e Reginaldo Andrade, descritos na agitada sessão da 40ª Mostra de São Paulo como “dois grandes boxeadores, dos maiores que a América do Sul já viu”, na visão do técnico de boxe aposentado Ademar Justo. “Sou Todo Duro, o matador de baiano. Ganhei dele no Recife, na última luta, e vou estraçaiar de novo em Salvador. Cuidado para ele não sair no caixão”; “Até hoje não entendo como ele ganhou no Recife se passou a luta inteira apanhando. Vamos lutar de novo na Bahia e quem vai sair num caixão é ele”, fizeram questão de ressaltar à Continente, entre risos e autógrafos, entre mugangas e fotografias.

A luta do século entra em cartaz, com distribuição da Vitrine Filmes, em março de 2017, mesmo mês no qual, em tese, acontecerá a oitava luta entre Todo Duro e Holyfield. “Queremos lançar com estardalhaço em Salvador e no Recife, ao mesmo tempo, também, em que estamos fechando a distribuição internacional. Apesar de ser um filme bem local, tem uma pegada internacional que é curiosa; essa mistura de rivalidade, amizade e inimizade tem algo de mitológico. Quantos jovens lutadores não têm esses dois como mentores?”, indaga Sérgio Machado. 

 

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