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Alerta vermelho para o ingrediente

Proibição do seu uso para fins culinários desencadeia reação de gastrônomos no Brasil, que pleiteiam, sobretudo, a permanência das tradições alimentares

TEXTO Eduardo Sena

01 de Dezembro de 2016

“O uso do sangue em alguns pratos regionais brasileiros teve influência de receitas tradicionais da Península Ibérica

“O uso do sangue em alguns pratos regionais brasileiros teve influência de receitas tradicionais da Península Ibérica"

Foto André Nery

[conteúdo da ed. 192 | dezembro 2016]

Bairro de Maranguape 2, Paulista, Pernambuco. A faca amolada no meio-fio, que divide a calçada da casa nº 860 da Avenida A, era um dos primeiros passos para o almoço familiar de qualquer domingo dos anos 1980 e 1990 na casa de dona Edna. Era a partir dali que a avó da chef de cozinha e iabassê (pessoa responsável pelo preparo dos alimentos sagrados no candomblé) Carmem Virgínia seguia com o objeto perfurocortante para a área de serviço em busca da ave que, algumas horas depois, se tornaria uma das mais emblemáticas receitas do que se entende por cozinha tradicional pernambucana, a galinha de cabidela.

Penosa devidamente encaixada entre as pernas. Centímetros à frente, um prato fundo com vinagre medido a olho – mérito que só as grandes cozinheiras conseguem alcançar. Uma pequena raspagem de penas no pescoço da ave, três batidas com a própria faca (“é para ‘chamar’ o sangue”, defendia), seguidas por um corte delicado que lançava sangue na louça embriagada de acidez. Enquanto isso, outra mão, tão habilidosa quanto, misturava os líquidos em batidas de garfo para evitar coagulações. No fogão, a chaleira apitava anunciando a fervura da água que seria jogada sobre o animal já sem vida para retirar-lhe as penas. Quem ousasse sentir aflição, logo ouvia: “Não tem pena que não saia com água quente”.

Era dona Edna. Arquétipo de milhares de cozinheiras que seguiam, e ainda seguem, o mesmo ritual, mantendo viva a tradição da receita que traz pedaços de galinha envolvidos em molho escuro e aveludado à base do seu próprio sangue. Mas aqui vale evidenciar a perspectiva do sociólogo da alimentação italiano Mássimo Montanari: “Nossa raiz está no outro”. “As ‘cozinhas de sangue’ estão em muitos povos e culturas, mostrando aspectos culinários funcionais, econômicos e, especialmente, simbólicos. A técnica culinária da cabidela mostra a necessidade de se aproveitar tudo o que os animais possam oferecer como alimento e, com isso, retomam-se os princípios ancestrais das cozinhas do mundo”, atesta o antropólogo Raul Lody, representante brasileiro na Comissão Internacional de Antropologia de Comida.

Ele cita o caso da Península Ibérica, em que a cabidela, seja de galinha, pato, coelho, porco ou cabrito, é consumida de forma que tudo do animal é aproveitado. “Desde o Império Romano, de maneira muito tradicional, e de alto valor simbólico, as vísceras dos animais estão nos cardápios da cozinha da nobreza, dos generais e dos sacerdotes. Línguas, cristas, vísceras, peles, cartilagens e o sangue ainda hoje são aproveitados na Europa”, pontua Lody. Da Itália medieval, por exemplo, ele cita o rigaglie, molho feito à base de miúdos de frango. Da Alemanha, o thüringer rotwurst; na França, o boudin, ambos embutidos feitos com sangue.

Mas vem de Portugal o embrião das cozinhas regionais brasileiras, principalmente a pernambucana, na qual são encontradas receitas que trazem o insumo como um notável ingrediente que compõe os sistemas alimentares. “Os preparos típicos das mesas dos espanhóis e dos portugueses estão presentes em receitas e conceitos de nossa mesa. Os chouriços de sangue, por exemplo, mostram a proximidade e as relações culinárias com a Europa. Nesse repertório, embutidos de sangue como a morcilla, e o sarrabulho (sopa de sangue), creditado à origem do emblemático sarapatel”, pontua Lody. “Em Pernambuco, algumas receitas permanecem ainda hoje como eram feitas originalmente na dieta portuguesa: bolo de bacia, canja de galinha, galinha de cabidela, pão de ló, sarapatel”, lista a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti, no livro Esses pratos maravilhosos e seus nomes esquisitos.

CULTURA X LEGISLAÇÃO
Trazendo no próprio nome a noção de comida como um fato social total, o restaurante Altar – Cozinha Ancestral é um dos endereços do Recife no qual essas tradições são exploradas. Com dona Carmem Virgínia à frente das panelas, a casa tem justamente na galinha de cabidela o seu carro-chefe. “Apesar de o restaurante ser reconhecido como um local de comida afro-brasileira, a receita não poderia faltar no cardápio, porque o prato traduz ancestralidade. Me remete à comida que veio antes de mim. Os artifícios e técnicas orgânicas de minha avó, dona Edna, para prepará-lo. É um prato que me diz quem sou e relata a vida que tive, quando digo de que forma comi cabidela”, relata a cozinheira, que prepara semanalmente mais de 40 kg da receita, utilizando mais de seis litros de sangue fresco da ave.

O Altar fica no Bairro de Santo Amaro, região central do Recife, cidade na qual ainda se pode ir a restaurantes para prestigiar o prato típico. Verdadeiras embaixadas da cozinha regional, o Restaurante da Mira e o Bar da Geralda, ambos em Casa Amarela, e o Bar do Luna, no Ipsep, são outros endereços nos quais a receita é referência de primeira ordem na capital pernambucana. Se o mercado local leva adiante a tradição, no ambiente doméstico, ela vem sendo cada vez menos executada. “Preparar receitas à base de sangue já não é uma realidade para uma nova geração na cozinha. E é preciso ter um cuidado muito grande com esse fato, que pode resultar na extinção da receita”, afirma Carmem Virgínia. 

O depoimento da iabassê está em consonância com o Manifesto Regionalista de 1920, assinado por Gilberto Freyre. No texto, de quase 100 anos, o sociólogo advertia que “toda essa tradição está em declínio ou, pelo menos, em crise no Nordeste. E uma cozinha em crise significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se”, lembrando a importância da comida como uma das maiores expressões do comportamento humano. “Muito do saber humano está naquilo que você come”, complementa Carmem.

A perda dessa referência já é fato nos estabelecimentos de comida da Grande São Paulo e da capital do Rio de Janeiro, que proíbem a comercialização de sangue para uso culinário, ancorados nas recomendações do Decreto 30.691, de 29 de março de 1952. Na lei, consta o “novo” Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtores de Origem Animal, que, em seu artigo 417, prevê brevemente a temática. Para o advogado Lucas Braga, existe atualmente no país um grande descompasso entre uma questão cultural e regulamentar. “Enquanto, de um lado, temos um contexto histórico e cultural, no qual são abarcadas inúmeras tradições de família, preservando o costume, na outra ponta, a Anvisa, bem como o Ministério da Agricultura, mesmo que não proíbam expressamente o uso de sangue animal para fins culinários, são extremamente rígidos com relação às condições de extração, conservação e comercialização desses recursos animais.”

As entidades sanitaristas, por sua vez, reforçam nos seus argumentos que o sangue consistiria em resíduo animal, e não um produto destinado à alimentação. “O entrave está no selo de Serviço de Inspeção Federal (SIF) do sangue, já que o do animal os frigoríficos não emitem. Os restaurantes não têm volume significativo de uso de sangue, para que seja viável comercialmente para os frigoríficos custear essa emissão, que é cara. O que inviabiliza a compra do mesmo”, relata a chef paulista Janaína Rueda, uma das líderes do movimento nacional Sangue é Ingrediente.

Outro entrave reside na insegurança jurídica causada pela ausência de definição na lei, permeada por lacunas. “Temos uma fiscalização que raramente permite a concessão de sangue animal para fins alimentícios, o que não é proibido, desde que siga as diretrizes do Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA). Falta regulamentação definitiva que garanta maior segurança legal aos produtores, norteando-os nos limites previstos”, atesta o advogado Lucas Braga. Ainda segundo o jurista, ao analisar a questão em âmbito nacional, é observada uma relatividade em torno das necessidades e da força cultural que tem o hábito alimentar em cada região.

Em São Paulo, por exemplo, como o sangue colhido não tem regulamentação federal para ser vendido como insumo culinário, não pode ser comercializado. Já em Pernambuco, que possui um forte consumo de produtos e derivados animais, aplica-se a legislação federal, que julga não existir maneira para certificar o produto legalmente. Em Belo Horizonte, a fiscalização não é tão rígida, pois, para a produção de produtos como a morcilla (embutido de sangue de porco), os abatedouros e frigoríficos possuem autorização para a coleta e industrialização, desde que seja feita imediatamente após o abate. “A tendência é que a Anvisa flexibilize a norma. Mas é preciso que sejam pesadas as questões envolvidas: culturais, econômicas e regulamentais. O papel do direito é moldar-se às tratativas e costumes da sociedade, a questão cultural vem se sobressaindo, ainda que considerada irregular”, explica Braga.

#SANGUEÉINGREDIENTE
Enquanto há brechas na legislação, o setor gastronômico, assim como outros segmentos culturais, também corre atrás de suas definições, agendando a problemática no debate político. Liderado pelos chefs Jefferson e Janaína Rueda, nasceu o movimento #SangueÉIngrediente, que conta com a participação de mais de 40 chefs de cozinha respeitados em todo país, que atuam na execução e defesa dos receituários típicos que usem o insumo em suas respectivas regiões. “Nosso intuito é lutar pelas tradições, fazer uso de todo o animal, já que isso também é sustentabilidade. O conceito nose to tail, ou do focinho ao rabo, é uma forma de garantir o uso total do animal”, argumenta Janaína.

A mobilização começou há dois anos, quando o próprio Jefferson, que à época comandava a cozinha do restaurante Attimo, de bandeira ítalo-caipira, foi proibido de comercializar galinha ao molho pardo (de cabidela) pela Vigilância Sanitária da capital paulista, sob ameaça de fechar o estabelecimento. “Passei a usar uma linguiça, feita com sangue de porco, comprada pronta para mimetizar o sangue na receita e aí me dei conta do tamanho do problema.”

Foi quando levou a questão para sua aula no maior congresso gastronômico da América Latina, o Mesa Tendências, em São Paulo. “No palco, ensinei o passo a passo da receita da galinha ao molho pardo, matando a ave ao vivo. ‘Tem que cortar o pescoço dela, deixar o sangue escorrer e imediatamente batê-lo com vinagre para não coagular’”, reproduz. Estava lançado o movimento Sangue é Ingrediente para cozinheiros, foodies, pesquisadores, historiadores e entusiastas do segmento no país. “Buscamos uma revisão de leis e normas sanitaristas que impedem práticas tradicionais da cozinha brasileira”, defende Rueda, que viaja por vários estados brasileiros em busca dos pratos tradicionais feitos com sangue e verificando a forma de armazenamento e modos de preparo. 

Mas nem tudo é só tradição. Para hastear a bandeira ainda mais alto, cozinheiros vêm usando o ingrediente em preparos, digamos, mais autorais, buscando gerar essa sensação de pertencimento. É o caso do chef Bruno Didier, do food truck La Camioneta, instalado no Parque da Jaqueira e especializado em cozinha espanhola. Realidade também na cozinha daquele país, a ave cozida junto ao seu sangue se transformou em croquetas, outro receituário típico da Espanha. “Buscamos fazer uma alusão ao prato-referência em uma proposta que dialogue com a comida de rua, que se possa comer com a mão, tornar a receita mais curiosa do que costuma ser”, situa Didier. 

A poucos metros dali, também na zona norte do Recife, André Saburó, referência entre profissionais de cozinha japonesa no Brasil, criou o sarapatum para o cardápio do nipônico Quina do Futuro. Conhecedor da anatomia do atum, ele utiliza a espessa linha de sangue que alimenta a musculatura do animal, mais membrana, cartilagem, coração, músculo e barbatana do peixe para mimetizar o sarapatel. “Responsabilidade é a palavra de ordem na cozinha moderna hoje. É preciso fazer o uso responsável do ingrediente, extraindo o máximo do produto que você tem em mãos. E, se esse valor ajudar em movimentos com esse, melhor ainda”, anota Saburó.

Para Carmem Virgínia, esse movimento de voltar ao antigo, à tradição como base para técnicas e referenciais de preparo é o futuro da gastronomia. “Tudo o que tinha de ser inventado já foi, a última grande revolução na cozinha foi a molecular. Vamos nos voltar ao que nos pertence, às receitas de família, que serão vistas como joias. Vamos retornar para o bom e velho caderno de receitas como forma de imortalizar tradições”, sugere, com a convicção de que falar de receituários no Brasil é falar de hábitos, de rotinas e, sobretudo, de identidade. 

 

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